O street racing pode até parecer uma realidade distante para muitos portugueses, mas basta estar a determinadas horas da noite em alguns pontos da cidade de Lisboa para ouvir o som das corridas. As autoridades conhecem há já vários anos o problema, mas este está longe de ser travado.
Em 2014, uma grande investigação do i mostrou por dentro estas corridas – na A1, A2, Eixo Norte-Sul e pontes das Lezírias. O grande destaque da capa parecia uma trágica antecipação das notícias mais recentes sobre o acidente que vitimou três homens na Segunda Circular, em Lisboa: “Corridas chegam aos 300 km/h e matam nas estradas portuguesas”. Na altura foram várias as reações públicas, tendo a Procuradoria-Geral da República deixado uma garantia, um mês após a publicação do trabalho: estava a “avaliar quais os procedimentos a adotar no âmbito das suas competências”.
À data liderada por Joana Marques Vidal, a PGR assegurou ao i que se encontrava “a acompanhar as questões relacionadas com este fenómeno”, estando inclusivamente a proceder à “recolha de elementos junto do Ministério Público e também das entidades policiais”.
Questionada no início desta semana, depois de serem conhecidas mais mortes e corridas a 300 km/h nas estradas nacionais, a PGR limitou-se a repetir que, após a investigação do i, “procedeu […] à recolha de elementos junto do Ministério Público e das entidades policiais”.
Disse que “no âmbito desse trabalho foi possível localizar” cinco processos. Um de 2007, “no âmbito do qual foram condenados 4 arguidos pela prática de crime de condução perigosa”, outro do mesmo ano que acabou com absolvição, um processo do ano seguinte, que foi arquivado, e outro de 2012 “no âmbito do qual foi condenado um arguido pela prática do crime de condução perigosa”. E, por fim, um de 2013, que também acabou arquivado.
Ou seja, nada terá sido feito em 2014 (ou posteriormente) após ter tido conhecimento público de situações graves que punham em risco a vida de pessoas e passíveis de consubstanciarem crimes, a não ser a consulta de processos antigos, sem qualquer consequência aparente. Perante uma nova insistência do i, feita ontem, sobre se a PGR abriu algum inquérito, não houve resposta até à hora de fecho desta edição. Ficou ainda por se saber quais foram as informações recolhidas junto das autoridades policiais. Recorde-se que as reportagens publicadas na altura indicavam os locais, os esquemas e as velocidades.
O i questionou igualmente a GNR na última quarta-feira sobre quais as ações dirigidas a combater e prevenir este fenómeno desenvolvidas nos últimos anos, assim como os respetivos resultados, não tendo recebido qualquer resposta. A PSP enviou ao início desta sexta-feira um esclarecimento no qual refere não dispor "de dados concretos de mortos associados a este fenómeno", acrescentando que "todos os acidentes de viação de que resultem vítimas mortais são objeto de inquérito".
“A PSP, através da sua componente de fiscalização de trânsito, pese embora tratar-se de fenómeno complexo de cercear, atendendo à sua elevada mobilidade, às novas tecnologias (uso de SMS, e redes sociais) que permitem uma rápida ação dos intervenientes, tem realizado diversas ações de fiscalização. A mais recente, realizou-se durante a noite de 7/8 de fevereiro de 2020, na área de serviço da A29 – Vilar do Paraíso – Vila Nova de Gaia, tendo sido remetidos para inspeção extraordinária 41 veículos. Foram, ainda detetados veículos com falta de seguro, IPO e uma detenção por condução ilegal. Na área do Comando Metropolitano de Lisboa, foram realizadas ações diretamente direcionadas para este fenómeno na noite de 8/9 de dezembro de 2019 e 18/19 de janeiro de 2020, conforme comunicados em anexo”, concluiu fonte oficial.
Também a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), contactada por email, a meio da semana, não respondeu às diversas questões formuladas, incluindo a pergunta: “A ANSR considera que falhou?”
As corridas ilegais e fatais que o antigo presidente da ANSR desconhecia
Em janeiro de 2014, quase um ano após ter tomado posse como presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, Jorge Jacob desconhecia ainda o drama das corridas ilegais nas estradas portuguesas, acusando mesmo as autoridades policiais de nada comunicarem à ANSR sobre o fenómeno.
“Desde que cá estou, há 11 meses, ainda não tivemos contacto com esse problema porque ainda não se colocou. É algo que está do lado das forças de segurança. A existir – que não sei se existe –, acredito que já estará controlado. Mas não tenho tido reporte das forças de segurança sobre esse fenómeno. Pensamos que não é já um problema”, assegurou o homem que presidiu à ANSR até ao verão de 2018 numa longa entrevista ao i, na qual sublinhava a dificuldade em conter este tipo de condutores: “Trata-se de um fenómeno difícil de controlar, mesmo para a polícia, porque acontece em estrada aberta (em autoestrada), vias com boas características físicas e que permitem velocidades razoáveis, embora limitadas na lei. Para se conseguir controlar, ou se degradam as vias com lombas (o que não pode acontecer nas autoestradas) ou então é preciso um controlo que envolveria muitos recursos, o que não se pode fazer no dia-a-dia”.
A falta de meios foi, aliás, por diversas vezes destacada por Jorge Jacob: “Para o street racing ser erradicado era preciso um trabalho mais profundo de ir às oficinas que fazem estas modificações e transformações. Se se chegar até aí, controla-se. Mas não há meios para fazer esse trabalho tão profundo”.
No início desta semana, o subintendente da Divisão de Trânsito da PSP Virgílio Sá disse ao Observador que as autoridades têm feito diversas operações de fiscalização, nomeadamente a montante, ou seja, na transformação de veículos. Admitindo que o “fenómeno está em crescendo”, também frisou que há “falta de meios” para travar estas corridas de carros ilegais: “Não há meios para acorrer a todas as situações”.
Justificando com o perigo acrescido de perseguições – uma vez que muitas vezes estão em causa velocidades próximas das da Fórmula 1 –, Virgílio Sá explicou que o foco continua a ser o da fiscalização das transformações dos carros.
As mortes que são noticiadas como resultado de acidentes comuns
Na investigação levada a cabo ao longo de vários meses, o i descobriu inclusivamente mortes que foram noticiadas como sendo resultado de acidentes comuns mas que, entre os street racers, eram atribuídas a corridas que correram mal.
A GNR admitia, no início de 2014, que morreram seis pessoas entre 1999 e 2010 – todas na área de Setúbal. O i, contudo, contabilizou mais quatro mortes nos dois anos anteriores relacionadas com o street racing (algumas na área de jurisdição da PSP).
Parte destes casos foram noticiados como consequência de banais acidentes rodoviários, sem que se tenha aludido às corridas, organizadas através da internet.
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