Manuel Resende (1948-2020). “Uma lágrima cai de leite sobre cinzas”

Manuel Resende (1948-2020). “Uma lágrima cai de leite sobre cinzas”


Aos 71 anos, desaparece o poeta e tradutor apaixonado mas tímido, deixando-nos versos cheios da comichão do mundo e ainda o silêncio com as melhores passagens sublinhadas.


Tem paciência – dirá a morte do poeta –, ainda haverá tempo para actos inesperados, para clamores e para o viço das coisas que persistem, para o que se decalcou, ouviu e leu com grande vagar, e assim frutificou. Tudo isso agora se prepara para lhe suceder. Manuel Resende vivia há anos com o fôlego muito recortado, como quem vai a apanhá-lo um tanto aflito, respirando num exercício de maestro silencioso, já que, falhando um compasso, era como se o próprio chão lhe faltasse. Com os pulmões a desfazerem-se depois de anos a fio a fumar dois e três maços por dia, morreu esta quarta-feira na sequência de um acidente vascular cerebral. Tinha 71 anos. Depois de algumas crises, internamentos, complicações, com a sua morte desenvolveu uma espécie de rábula. E que belo par fizeram: ele desfazendo dela, daquela exuberância lúgubre em que a vemos passar, como nas fitas do Bergman, e ela mantendo-se impassível, sem se rir, por mais que lhe achasse graça, sem quebrar o personagem, mas também sem ter nenhuma pena dele.

“Também o que é eterno morre um dia”, escreveu o poeta, e logo a provocava: “Eu rio à morte com um riso largo:/ Morrer é tão banal, tão tem que ser!/ Disto ou daquilo, que me importa a mim?” E noutro poema parecia que nos consolava: “Morrer não custa meu irmão/ Quando vier a celestial ramona/ Para a última rusga/ Um pano sobre o microscópio/ e/ apaga-se a luz”.

Se a luz se apaga de um lado parece que uma lâmpada se acende agora interior aos versos. Morre o autor e o que nos lembramos é de dobrar a folha, fazer do coração um vinco. Para as despedidas, o corpo ficará amanhã em câmara ardente a partir das 17h no Centro Funerário de São João de Deus, na Praça de Londres, em Lisboa. Uma cerimónia de homenagem terá lugar no mesmo local, no sábado, às 14h. E no domingo o funeral sairá para o Cemitério dos Olivais, onde o corpo será cremado pelas 16h.

Num tempo e num espaço literário em que o que mais há são cowboys, Resende era o Índio, e os três livros de poemas que publicou – com intervalos enormes como desfiladeiros para deixar que ecoassem de forma divinal os seus gritos –, e as tantas traduções literárias de que se ocupou têm em comum a sensação de uma pele viva, quente, essa superfície elástica, como a descreveu Le Clézio, que “contém os órgãos, o sangue, a respiração, saco que encerra todos os segredos, todos os monumentos, todas as energias”.

A imagem que melhor ilustra o seu processo, a sua aplicação amorosa, colhemo-la no texto a que se referiu como o seu testamento, “Apocalipse”, aquele que encerra o terceiro livro – O Mundo Clamoroso, Ainda (2004). “Era tudo fácil e preguiçoso. Não tocava nas coisas, elas nasciam-lhe como um fruto.” Esta foi a sua urgência antes de se tornar uma segunda natureza, aquela que o guiou na escrita, “a aprender a lentidão dos gestos, passando horas, semanas e anos a ver surgir o mundo das mãos, como um fruto”.

Nascido no Porto a 9 de março de 1948, Manuel Resende começou a traduzir ainda na adolescência, como quem compusesse a própria boca, dentes de toda a parte, e lá ia dando-lhes com a língua, aprendendo a exprimir-se, e várias vezes fez questão de sublinhar que a sua poesia nasce sobretudo como “uma colagem de muitos poetas, romancistas, músicos…” Num poema intitulado “Escrever nas costas”, às tantas diz: “Eu sou desses cuja única aristocracia/ É ficar de noite duramente a ler memórias/ De tipógrafos cultos militantes.”

Em 2018, após a edição da sua Poesia Reunida – volume que, como acontecera já com os títulos ali recolhidos, se ficou a dever ao empenho dos amigos, e neste caso particular aos bons ofícios de Rui Manuel Amaral, que é o verdadeiro editor daquela obra –, disse ao Jornal de Letras que não via a literatura como um combate, mas sim como um acto de amor: “Aceito todas as influências. Afirmo-me com o que recebo. É daí que vem o gosto pela tradução, a procura de me exprimir e ser outro pela voz alheia.”

Traduziu a vida toda, fosse de forma profissional ou num heroísmo ocioso. Deu-nos a ler vários nomes da moderna poesia grega, com destaque para Kaváfis e Elytis, e uma série de clássicos, mais ou menos raivosos, desde Shakespeare a Karl Marx, Brecht e Kafka, Beckett e Lewis Carroll… E além dos tantos títulos, há uma antologia de formidáveis acasos, gritos e ruídos vindos das profundezas, espalhados por uma série de publicações e que valeria a pena reunir.

Foi do pai que Manuel Resende herdou o gosto pelos livros e os ideais de esquerda pelos quais se guiou toda a vida e que, no fim de contas, o levaram a um certo pessimismo, tendo-se mostrado preocupado até com a perda deste chão comum que é a língua portuguesa. Naquela entrevista ao JL, mostrou a sua dificuldade para ler o futuro com alguma esperança em face das ameaças da crise ambiental, da inteligência artificial e da robotização da vida. “A Humanidade só aprende quando pratica. O ser humano vai ser cada vez mais burro. E quem mandará nas máquinas? Estão a sugar-nos a inteligência, a expropriar-nos da nossa própria vida.” Resende, que se habituou a ter o ouvido encostado ao chão da língua, antecipando grandes movimentações no plano histórico ou sintonizando o bailado das formigas no plano mais geral das coisas, via na tecnologia um modelo de alienação, um cerco que nos devolve à maior das debilidades: a inexpressão. “Se não soubermos plantar não saberemos o que é a Natureza. A relação com o mundo desaparecerá e as palavras perderão o seu significado. A linguagem estará condenada.”

De si para os seus, não hesitava em afirmar: “nós estamos do lado da derrota”. Tinha a noção clara, como Ovídio, de que o amor do ganho se tornou um novo Deus feito da sombra de todos os outros, mas não abdicou, apesar dos mais terríveis sinais dos tempos, da capacidade das palavras afectarem ainda a História ou, pelo menos, de comovê-la. “Sabe por que razão um exército não pode marchar por cima de uma ponte?”, questionava o poeta depois de o entrevistador lhe perguntar o que podem hoje as palavras. “O movimento ordenado e cadenciado de um pelotão pode articular-se com a oscilação natural de uma ponte e levar ao seu colapso. Certas palavras ditas na altura certa têm uma força imensa (…) Mas para isso é preciso encontrar a música, e sobretudo o ritmo, de cada tempo. É muito difícil.”

No fim, os seus poemas de cinco ou mais sentidos, as suas traduções, sabiam como levantar os dias e as noites, por que saliências puxar, entre que rastos buscar vestígios, os ventos nos quais se ouve o “exército em manobras da solidão”. “Depois de ter andado aos círculos/ Numa guerra de mil anos contra um povo vencido,/ Mas eternamente cercado”, depois de ter visto a juventude e os seus ideais encalharem d’encontro à vida quotidiana, e de sentir “o corpo estropiado junto às doenças”, Resende salvou-se pelo seu modo de “descarnar pacientemente as horas”, e, se se sentiu próximo dos surrealistas numa prática amante de se entregar ao mundo e desejá-lo congeminando a revolução, poderia agradecer, como Gérard Nerval, que a musa tenha feito dele “um Grego de outra idade”. E é assim, como uma estátua improvável, que nesta hora o vemos preparar-se para o que se segue, e podemos ouvi-lo a afastar-se com o seu incansável humor rezinga, barafustando entredentes: Que maçada isto! Então agora ainda me exigem que tenha paciência para aturar a eternidade?  

Deve e haver, a contas com a poesia. Um testemunho de Carlos Leite

Vimo-nos pela última vez de Setembro de 1971 a Setembro de 2018, falámos talvez do tempo, a tarde caía co’a calma e os anos passaram.
Naqueles momentos em que a vida não tinha nenhuma paciência consigo mesma, mas fazia um gesto, uma atenção, julgava adivinhar, saber onde está ele, quem é, o que é, mas não adivinhava nem sabia nunca, isso só era verdade antes ou depois, já no eléctrico ou na livraria, na estante, na notícia a milhares de quilómetros. Partilhámos o que havia e se podia dividir, quase tudo, mas quando eram os papéis ainda com os riscos da esferográfica todos à mostra, era aí que o enigma estava, era esse o enigma, sem solução nem emenda, como a folha feita em bocadinhos onde havia um poema, a ânsia do poema, como depois se veio a saber. Como quando, em Bruxelas, lhe disse que vinha viver para a Grécia e ele me respondeu que me invejava, que ele é que devia vir viver para a Grécia. Reconheço, é uma dívida que não poderei pagar.
Balanços todos nós fazemos, crus ou lisonjeiros, com ou sem espelho, matinais ou nocturnos, mas para mim basta este: com o Manuel Resende, já me morreram três poetas mais um editor.


Responsável pela reunião da Poesia Reunida de Manuel Resende, Rui Manuel Amaral lembra o amigo

Habituei-me a imaginar que o Manuel Resende sobreviveria a tudo. Em 2017, esteve hospitalizado durante semanas em estado muito grave. Alguns amigos temeram perdê-lo. A verdade é que voltou directamente dos cuidados intensivos para lançar a Poesia Reunida, em 2018. O livro de poemas português mais importante deste século. 
Cada novo leitor que esse livro conquistou é como um sinal de que o nosso mundo entrou nos eixos. A grande poesia do Resende já não é um segredo de meia dúzia de leitores fanáticos. O mapa literário do país assumiu, por fim, a forma correcta. 
O Resende não jogou uma única carta neste jogo. Não fez nada para que os poemas fossem mais ou menos conhecidos. Não lhe competia a ele. Ele era apenas um poeta. Escrevia porque tinha de escrever. Os três livros que publicou, antes da antologia de 2018, surgiram por intervenção de amigos ou em resposta a convites de editores. A antologia também. Não foi o Resende que a propôs e não foi ele quem a organizou. 
Nada disto tem a ver com alguma espécie de arrogância ou falsa modéstia. É exactamente o contrário. Trata-se de pura timidez. Da mais pura noção de que nada disto é assim tão importante. De que a literatura é muito maior do que qualquer escritor. Ninguém que eu conheça estudou e amou mais a literatura. Conhecia-a a fundo, sílaba após sílaba, verso após verso, capítulo após capítulo. 
Traduziu milhares de páginas. Dos grandes, mas também dos outros, dos chamados “menores”. Anos e anos de trabalho deram-lhe a sabedoria de pôr as coisas em perspectiva. A literatura é feita de tudo isto: grandeza e miséria, humildade e presunção, silêncio e fogo-de-artifício.
Talvez por isso se tenha transformado num misto de sábio e “palhaço triste”, no sentido chaplinesco do termo. Não sei explicar melhor. Havia nele uma qualquer tristeza profunda, que embrulhava em humor e auto-ironia. Porque todos somos feitos da mesma matéria: poeira da estrada e pó dos livros. Porque a história acaba da mesma maneira para todos. Não está certo nem errado, é simplesmente assim.
Talvez isto explique também a dose de pessimismo com que olhava para o mundo, apesar de o seu coração ter batido sempre à esquerda. Desde a juventude, no Porto, até ao último dia da sua vida. Não há camarada dos tempos da luta política que não o adore. Não conheci companheiro ou adversário que não gostasse do Manuel Resende.
O Resende concedeu-me a sua amizade e eu nunca tive nada de especial para lhe dar em troca. Tudo o que podia e posso fazer é ler os seus livros. Uma e outra vez. E tentar aprender com ele os pequenos truques para enganar a morte até onde é possível.