Alva.  Uma história de um homem só

Alva. Uma história de um homem só


Para o filme que marca a sua estreia na longa-metragem, Ico Costa obteve o financiamento de uma curta. Ainda assim, e com o ano acabado de começar, Alva será certamente um dos filmes portugueses de 2020.


Um filme pode ser um homem. Não mais esquecida ficou a vez em que Godard citou D. W. Griffith para, a propósito de Bande à Part (1964), escrever que para se fazer um filme bastavam “uma rapariga e uma arma”. Premissa contestável, e tantas vezes contestada, mas à qual se há de regressar sempre que vier um filme provar que entre Griffith, Godard e qualquer cineasta por vir, cinema é cinema. E que, sim, um filme pode ser um homem. Um homem só. Em Alva, este homem, Henrique, e uma caçadeira, mais um lugar. O Portugal remoto para onde Ico Costa acabou por levar a personagem que foi criando e fazendo crescer até que dela nascesse a sua primeira longa-metragem, que depois de no ano passado se ter estreado em Roterdão chega amanhã às salas.

Chamou-lhe Alva, esse lugar indeciso do dia em que se espera pela luz que não chegou ainda. Ao personagem, Henrique. O nome do homem que assim que conheceu o convenceu de que talvez fosse possível contar até uma história como esta com um ator não profissional. “Gosto de trabalhar com atores não profissionais porque acho que trazem sempre algo de inesperado ao filme, por um lado, e por outro porque me parece que às vezes é possível que sintam a personagem de uma forma mais real, sem a necessidade de intelectualização do que poderia ser o seu passado”.

Para a personagem que carregaria Alva, um filme de um homem só, de um ator para um homem deixado (ou que se terá colocado, nalgum ponto, porque são mais as perguntas com que nos confronta do que as respostas que Ico Costa nos oferece) à sua mercê, um filme sobre um homem a quem não sobra nada, Ico Costa chegou a pensar que precisaria de um ator profissional. “É um filme quase sem diálogos, teria de ser um ator fenomenal, então cheguei mesmo a pensar que precisaria de um ator profissional. Mas no momento em que encontrei o Henrique pela primeira vez fiz logo um casting, um ensaio com ele, e em cinco minutos percebi que ia ser ele a pessoa que ia fazer o filme. Percebi que me ia dar muito mais do que qualquer ator poderia dar”.

A partir daí, desse momento em que se materializou na figura de Henrique Bonacho (um homem da Linha de Sintra, um desses homens dos quais se diria serem um “homem comum” mas que, numa tradição que no cinema português se terá inaugurado com Belarmino no documentário homónimo de Fernando Lopes, se fazem maiores do que qualquer filme), o protagonista de Alva deixaria de ser apenas o homem que Ico Costa tinha imaginado. “Também ele tinha tido uma vida um bocado complicada, também ele tinha passado por situações de exclusão social, também ele, em situações de desespero, tinha em momentos da sua vida perdido o juízo”, nota o realizador-argumentista. “Havia muitas coisas nele que faziam espelho com a personagem que já tinha começado a criar mas, depois, claro que fui muito influenciado por ele próprio e o filme mudou bastante quando decidi que ele seria o ator. Ele deu muito ao filme e a forma como trabalhei com ele fez com que se fosse envolvendo também”.

E se, em Henrique Bonacho, Ico Costa encontrou caminho aberto para alcançar uma verdade rara, nesse jogo de fazer a realidade entrar pela ficção que a traria, à personagem acabou por entregar também o seu nome. “No início, a personagem não tinha nome e depois acabei por me dar conta de que seria um bocado complicado ele ter outro, e isso foi importante para ele, para sentir que aquela também era, ou poderia ser, de certa forma, a história dele. Viveu-a tão intensamente que isto ajudou. Obviamente que ele não intelectualizava a personagem, mas através de alguns jogos que fazia, que às vezes é preciso fazer com atores não profissionais, ele incorporou-a mesmo. Metade do filme é dele, como é óbvio”.

“Não acredito que as pessoas sejam monstros” A diferença entre Henrique Bonacho e o Henrique-personagem está na resposta à pergunta que nos assombra do início ao fim de Alva: quando, perdendo tudo, um homem se perde, sobra o quê? “Queria fazer um filme que não julgasse de forma direta a personagem, queria que houvesse alguma complexidade nisso, porque não acredito que as pessoas sejam monstros. As pessoas, quando muito, ou se tornam monstros ou têm ações monstruosas ao longo da vida. Queria que o espetador pensasse o que quisesse da personagem”.

Antes da rodagem, feita por ordem cronológica (“estávamos sempre a voltar à casa, estávamos sempre a voltar aos sítios, a voltar para trás” e “comparando um fotograma do início do filme com um do fim, vemos que a barba dele cresceu e que emagreceu”), Ico Costa mudou-se ainda sem equipa para Avô, vila do concelho de Oliveira do Hospital onde em três semanas de janeiro de 2017 foi filmado Alva. Era inverno, mas aqueles lugares, as duas encostas que Henrique percorre ao longo da hora e 38 de Alva, o realizador andou por todas as estações. Primavera, verão e outono de 2016. “Passei muito tempo em Avô a andar pelos lugares que aparecem no filme, sozinho no mato, a pensar, a pôr-me na pele da personagem, a pensar no que poderia estar a pensar, para onde poderia estar a olhar, a sentir os cheiros, a tocar nas coisas”.

O mesmo exercício pediu a Henrique que fizesse assim que a equipa se instalou em Avô. “ Disse-lhe ‘dá aí umas voltas, vê os sítios onde gostas de estar, os sítios onde te sentes à vontade, observa as coisas, vive um bocado isto’, e ele foi fazendo isso. Houve sítios onde filmámos algumas situações em que ele já tinha passado algum tempo: não estava a sentar-se ali ou a encostar-se àquela árvore pela primeira vez”.

Mas não é apenas nesse jogo de trabalho com o ator que a realidade entra pela ficção nesta primeira longa-metragem de Ico Costa, produzida pela Terratreme com financiamento para uma curta (o apoio que o realizador obteve do ICA), ao qual foi depois preciso somar pequenos apoios (da Argentina e de França) para a fase de pós-produção. Em Alva, tropeça-se no real por toda a parte. Tropeções como aqueles que, pelo meio do mato, obrigaram por vezes a repetir takes num filme que o realizador garante ter sido quase todo feito em takes únicos.

“Filmámos muito pouco, filmámos 31 latas [de película de 16 mm] de 12 minutos. Na montagem acabaram por até ficar algumas coisas de fora de takes que não estão completos porque, quando começámos a filmar, percebemos que o Henrique tinha o seu próprio ritmo e eu também não o queria interromper, porque tudo o que ele estava a fazer era muito valioso. E ele nunca parava, nunca olhava para a câmara, estava sempre concentrado. As partes com diálogos foram, por vezes, mais complicadas, de resto saiu tudo muito bem à primeira”.

Reais são também todos os décors do filme, como a casa que é a de Henrique, que era nesse tempo a casa de um homem que vivia em circunstâncias semelhantes e que no outono seguinte à rodagem foi, como toda a paisagem de Alva, devorada pelos incêndios que destruíram a região Centro. Tudo isso se transpôs para a forma de Alva, em tantas cenas rodado quase ao género documental. “Obviamente, para mim, o filme sempre foi uma ficção, mas sim, tinha um bocado essa ideia de criar para o espetador uma dúvida sobre o que poderia estar a ser este filme”.

E se não se dá pela presença de uma câmara perseguindo Henrique por todos os dias em que, depois do ato desesperado quase inicial de Alva, se mantém a monte, também na vila não se deu por ela durante a rodagem. “Não queríamos estar a invadir muito o espaço com pessoas à volta [do Henrique]. Nós próprios andávamos ali no meio do mato sem que quase ninguém na aldeia soubesse que andávamos por lá. Isso também foi importante”.