As Batukadeiras que conquistaram Madonna

As Batukadeiras que conquistaram Madonna


Na tour de apresentação de Madame X, Madonna faz-se acompanhar no palco por membros da Orquestra de Batukadeiras de Portugal. Falámos com uma das representantes deste grupo para perceber a sua ligação.


O burburinho causado pela mudança de Madonna para Lisboa foi tendo momentos mais altos do que outros e atingiu volumes ensurdecedores quando, como forma de celebrar o seu 60.o aniversário, a Vogue italiana publicou uma produção fotográfica da rainha da pop pelas ruas e casas de fado de Lisboa, a acompanhar uma entrevista em que confessava o seu amor à cidade e à sua música. Numa das fotografias partilhadas pela revista de moda de referência no Instagram surgia o músico cabo-verdiano Dino D’Santiago, uma das figuras de proa da música portuguesa, posando com a diva sentada ao seu colo numa noite no Tejo Bar, em Alfama.

Tinham-se conhecido numa festa em que o músico cantou Sodade, de Cesária Évora, rainha da morna, estilo tradicional de Cabo Verde. O que o cantor não sabia era que esta festa era organizada por Madonna, uma grande fã de Cesária. Só depois ela interpelou o cabo-verdiano e acabaram por criar um forte laço de amizade. “Dá-me um abraço, graças a ti encontrei um motivo forte para ficar na cidade”, recordou no ano passado ao jornal brasileiro Folha de São Paulo.

O autor de Mundu Nôbu acabou por se tornar um dos guias da cantora por Lisboa, onde esta travou amizade também com a fadista Celeste Rodrigues (1923-2018), irmã de Amália, que chegou a levar a Nova Iorque para passar o ano com ela. Se em Celeste encontrou uma ligação com a música mais tradicional, o fado, Dino apresentou a Madonna o futuro, ao dar-lhe a conhecer os ritmos que, trazidos pelas comunidades africanas, a cidade acolheu já como seus.

Por esta descoberta andaria Madonna enquanto ondas de histeria se levantavam ora sobre parques de estacionamento, ora sobre um cavalo num palacete em Sintra. Certo é que, mesmo depois de uma ameaça de que deixaria Lisboa, aonde chegou em 2017, continua por cá – e o filho, David Banda, continua nas escolas do Benfica (marcou dois golos no último jogo pelos encarnados).

Àquele primeiro encontro com Dino seguiram-se muitos outros e, num deles, Dino acabou por apresentar à artista a Orquestra de Batukadeiras de Portugal, um conjunto de mulheres que interpretam peças de batuque, um dos mais antigos estilos musicais e de dança cabo-verdianos, praticado exclusivamente por mulheres, tradicionalmente em festas como casamentos e batizados.

Assim que assistiu à performance da Orquestra de Batukadeiras de Portugal no B.Leza a que Dino D’Santiago a levou, Madonna ficou encantada. A primeira colaboração entre a cantora e o grupo aconteceu em junho de 2018, quando a americana convidou as Batukadeiras para gravar o áudio do batuque para a faixa Batuka, que surgiria no álbum Madame X.

Mas essa relação não ficaria por aí. Em abril do ano passado, Madonna fez um documentário em sua casa (o mês em que deixou o Palácio do Ramalhete, nas Janelas Verdes, que entretanto trocou por outra casa próxima do Adamastor, alugada a um empresário da noite de Lisboa e do Porto) para o qual voltou a chamar as Batukadeiras. Convidou-as ainda a participarem no videoclipe dessa faixa – gravado na Praia de São Julião, em Sintra, com realização de Emmanuel Adjei e agradecimentos a Dino. No mês seguinte, a autora de Like a Prayer convidou o grupo de mulheres cabo-verdianas para irem a Londres fazer um workshop.

“A partir daí escolheu um grupo para a acompanhar na tour que está atualmente a fazer”, conta Maria de Lurdes Monteiro, vice-presidente da Associação de Mulheres Cabo-Verdianas na Diáspora em Portugal (AMCDP) e membro da Orquestra de Batukadeiras de Portugal que, ao contrário das mulheres que têm acompanhado Madonna na digressão, obrigadas à confidencialidade por uma cláusula do contrato que assinaram, pôde falar ao i.

A peça musical é feita com as executantes a disporem-se em círculo e uma solista a deslocar-se para o centro enquanto efetua uma dança, feita apenas com o oscilar do corpo e com o movimento alternado das pernas a marcar o tempo forte do ritmo. Num segundo movimento, enquanto quem está no círculo interpreta o ritmo e o canto em uníssono, a dançarina que se encontra ao centro muda a dança para o chamado ku tornu, feito com um requebrar de ancas conseguido através de flexões rápidas dos joelhos, acompanhando o ritmo.

 

uma prática proibida no período colonial O batuque é considerado património cultural e Cabo Verde e, conforme explica Maria de Lurdes, é uma tradição passada de geração para geração e que nasce logo em casa.

“Esta prática era proibida durante o regime colonial pela Igreja Católica e era feita pelos mais velhos às escondidas”, explicou a mulher de 60 anos, apenas menos um do que Madonna. “Se uma mulher, na véspera do seu casamento, tivesse feito batuque, era provável que fosse proibida de se casar. Era uma dança muito sensual”.

A Orquestra de Batukadeiras de Portugal foi formada por uma seleção de diversas intérpretes de variados grupos de batucadeiras no país. “É complicado trabalhar com centenas de batucadeiras, por isso reunimos as representantes e estas, depois, mostram o que vamos fazendo nos outros grupos”. O grupo é formado por diversas mulheres cabo-verdianas, com idades entre os 20 e os 80 anos, que pretendem manter a tradição do batuque viva e disseminá-la não só por Portugal, mas também pelo mundo.

A relação entre Dino e a orquestra nasceu em 2017, segundo Maria de Lurdes. “Fizemos um encontro de grupos de batucadeiras, o primeiro foi em Portugal, depois em França, no Luxemburgo, e este ano vai ser no norte de França. A orquestra de batucadeiras, em 2017, convidou um artista para ser o padrinho do evento. Escolhemos o Dino D’Santiago e uma embaixatriz, a D. Manuela Brito, que aceitaram este papel”.

Apesar de confessar que não vai assistir ao concerto porque não tem dinheiro para comprar o bilhete (o ingresso mais barato custava 75 euros), Maria de Lurdes considera que a colaboração com Madonna contribuiu para chamar a atenção para este género musical e está a “contribuir para levar o batuque ao resto do mundo”, mas fica bastante aquém de uma verdadeira atuação de batuque.

“A parte que gravámos com a Madonna é uma participação pequena. Quem quiser ouvir uma peça de batuque do início ao fim, vibrar com ela e entender, tem de ver uma peça ao vivo”.

Na hora de avaliar o momento que atravessa a música cabo-verdiana, que no mês passado viu a morna ser elevada a Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, a vice-presidente do AMCDP disse que a música do seu país natal está a crescer pelo mundo fora e recordou géneros como funaná, tabanca, coladeira, mazurca e valsa. “Em Cabo Verde podemos não ter ouro, diamantes ou petróleo, mas a nossa riqueza é a música”.