Espetros

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 Entre o céu e o inferno há o purgatório e será por aí que Toutinegra transcorre.


Se a infância é um país, como escreveu Antoine de Saint-Exupéry em Piloto de Guerra (1942) – fragmento de uma frase maravilhosa que já aqui citámos a propósito da manga de Takashi Murakami O Cão que Guarda as Estrelas –, há puerícias que melhor fora delas ser apátrida, pelos traumas e o sofrimento que se transporta pelo resto da vida. O relato desenhado por Bernardo Majer (Lisboa, 1990), que André Oliveira nos oferece, um dos mais profícuos autores da BD nacional, é, contudo, um pouco menos pessimista. Entre o céu e o inferno há o purgatório e será por aí que Toutinegra transcorre.

“Qualquer vida tem uma história. Começa a ser conhecida desde o dia em que nascemos/ e arrasta-se muito para além da nossa morte” (p. 72). Esta é uma narrativa de desconformidade. A ação passa-se na aldeia de Moinho, um desses muitos lugares do país à beira da extinção, com meia dúzia de habitantes quase sem crianças e no limiar da fantasmagoria. No centro da narrativa está Pedro, rapazinho de nove anos a quem a vida virou as costas, um desadaptado sem que saiba porquê, um incompreendido que mais se compraz na contemplação da natureza que na companhia das pessoas; entre a escola e a igreja, sem pai, a mãe devota e desequilibrada. Um estranho na sua pele, tem em Laidinha a única amiga e também única colega (a outra criança da aldeia), com pais relativamente idosos, “milagre, nascido à margem do tempo”.

E há também um velho moinho que esconde uma criatura fantástica e monstruosa, com quem Pedro e, depois, Laidinha estabelecem uma relação de confiança, espécie de esfinge, “com voz doce de mulher”, a Senhora do Moinho: “Estou nos capítulos finais de todas as histórias que conto” (p. 77). Um cenário para uma, várias tragédias dificilmente ultrapassáveis: “Aceitar o fim de alguém é consentir o nunca mais” (p. 33). Será no regresso às origens da memória que Pedro encontrará a sua redenção: “Nunca me senti ser dali e ao mesmo tempo/ nunca pertenci tanto a um pedaço de chão” (p. 8).

Os tons suaves do desenho de Bernardo Majer, vinhetas sem cercadura, traço como que de ilustrador, à partida poderiam não ser os mais indicados para uma narrativa trágica como esta, pois Toutinegra, sendo uma história sobre um miúdo, é tudo menos um livro infantil; e, por várias vezes, o nome de Didier Comès nos assomou à leitura e releituras – Toutinegra é um livro que se presta a revisitações. Mas à medida que o texto ia tomando conta de nós, mais se tornava evidente o erro e o preconceito dessa conceção do primado das trevas, aliás bem presentes, que carecesse de sobressair na parte desenhada desta narrativa: para muitos, o terror não é o negro que cobre, mas o branco que tudo desvela.

Toutinegra

Texto André Oliveira

Desenho Bernardo Majer

Editora Polvo, Lisboa, 2019

 

BDTeca 

 

Franquin antes de Gaston 

Em 1955, Franquin estava em conflito com o editor Charles Dupuis, proprietário da revista Spirou. O autor criara já alguns dos maiores títulos da aventuras do jovem groom, como Os Herdeiros e O Roubo do Marsupilami. Na revista concorrente, Tintin, Raymond Leblanc, homem da Resistência belga que deu o braço a Hergé no pós-guerra, torcia o nariz à circunspeção em demasia do hebdomadário – faltava-lhe humor. Estava, pois, criada a oportunidade para Franquin trabalhar na revista de Hergé e Jacobs. Modeste et Pompon, série discreta mas importante para o desenvolvimento do percurso do seu criador, gira em torno do irascível Modesto, a namorada Pompom, contraponto de bom senso, de Félix, um vendedor de inutilidades, além de três sobrinhos pestes – condimentos para diversas peripécias de grande comicidade. É aqui que Franquin ensaia os esquemas insanes que depois iremos encontrar em Gaston Lagaffe, já de volta à Spirou; mas poderemos também vislumbrar algumas situações que viria a explorar nas Ideias Negras, expressão do seu lado mais sombrio. A série foi continuada por Dino Attanasio (cocriador, com Goscinny, de Il Signor Spaghetti), Mittëi (O Incrível Désiré), entre muitos outros, com várias perninhas de alguns dos maiores autores do tempo: Peyo (Schtroumpfs), Tibet (Ric Hochet, Chick Bill), Greg (Achille Talon, Bernard Prince, Comanche), Van Hamme (História sem Heróis, XIII), Godard (Martin Milan)…

Modesto e pompom

Texto e desenho Franquin

Editora Asa, Porto, 2005