Viva o povo brasileiro

Viva o povo brasileiro


É um lugar-comum dizer-se que no estrangeiro vemos o torrão natal com mais acuidade, e o exemplo que logo surge é o de Eça de Queiroz, cujos romances foram escritos em Inglaterra e França. É verdade, embora todo o espírito crítico e toda a empatia do autor de O Primo Basílio já estivessem contidos nas…


É um lugar-comum dizer-se que no estrangeiro vemos o torrão natal com mais acuidade, e o exemplo que logo surge é o de Eça de Queiroz, cujos romances foram escritos em Inglaterra e França. É verdade, embora todo o espírito crítico e toda a empatia do autor de O Primo Basílio já estivessem contidos nas páginas de imprensa, da Gazeta de Portugal e O Distrito de Évora. Marcello Quintanilha (Niterói, 1971) vive há longos anos na Europa, mas nem por isso aquelas qualidades estão ausentes, pelo contrário: as seis narrativas de Folia de Reis constituem-se como um olhar pleno de ternura, mas sem embelezamento, dirigido ao povo brasileiro.

E quem são estes “reis” de Quintanilha? Gente de paz e trabalho, gente de bem; o povo falando na sua língua errada, que é a sua língua certa de onde chega a vida com verdade, dizia o grande Manuel Bandeira; que procura levar cada dia por diante, com o auxílio mágico/místico sincrético do “Senhor Jesus” em combinação com a religiosidade popular de extração africana, que tão perseguida foi. E do lenitivo dominical do futebol. Todas as seis histórias deste livro estão encorpadas por esse desafio do quotidiano, do torcedor do Flamengo a.J. (da era antes de Jorge Jesus…), doentiamente supersticioso (como vemos em “De como Djalma Branco perdeu o amigo em dia de jogo”), ao trabalhador negro que ainda não extirpou do seu interior a condição submissa inculcada pela persistência duma mentalidade gerada numa sociedade escravocrata (no impressionante “Dorso”); do matuto inofensivo ajudante dum circo de província, vítima da “autoridade” brutal (“A fuga de Zé Morcela”), ao futebolista medíocre duma equipa dos baixos escalões regionais, tornado, por cómico equívoco dos vizinhos, como potencial e quase certo jogador de seleção, sedentos que estão dum “milagre” que lhes transforme a modorra de vida num lugar onde o diabo perdeu as botas (“De pinho”).

No meio destas narrativas de muito bom nível, destacamos uma joia intitulada “Escola Primária”, história de Selma e Tiago, este seguidor da religião do candomblé, aquela evangélica. A jovem adulta a frequentar os cursos de alfabetização pede ajuda a Tiago, pescador instruído (sabe ler e escrever), para um trabalho de casa sobre a história do Brasil, de modo a ficar com tempo livre para poder ir à festa da aldeia nessa noite. Selma bebe-lhe as palavras sobre os navegadores portugueses, os índios, os negros escravizados, as guerras – as dos estados e a deles mesmos: “A vida da gente já é uma guerra!”, exclama. Na prancha final, cujo conteúdo não se revela, espelham-se e esplendem as qualidades autorais de Marcello Quintanilha, argumentista e desenhador de quadrinhos.

FOLIA DE REIS

Texto e desenhos: Marcello Quintanilha

Editora: Polvo, Lisboa, 2019

Os persas

Autobiografia de Marjane Satrapi (Rasht, Irão, 1969) até ao início da idade adulta, no seio duma família desafogada do Irão contemporâneo; trecho de vida que assistirá à Revolução Islâmica, à carnificina da Guerra Irão-Iraque e à normalização da repressão. História pessoal, história duma família, história dum país, Persépolis (quatro tomos, 2000-2003) é um bom exemplo de como a novela gráfica elevou a BD a outro patamar, tema a desenvolver noutra ocasião. 

Um livro especial que traz ao proscénio uma criança de dez anos, Marjane Ebihamis, que se tornará Satrapi (nome nada casual), figura real que se transporta para o mundo da BD, enquanto personagem, espécie de mistura feliz da Mafalda de Quino com a Esther de Riad Sattouf. Família especial, moderna e cultivada, classe alta, pais comunistas, ele descendente do xá Nasser Aldim, da dinastia Kadjar, que governou o país entre 1794 e 1925; aristocratas e marxistas num Estado cujo tirano foi substituído pela não menos brutal teocracia dos aiatolas. Um país especial, o Irão (os gregos antigos chamaram-lhe Pérsia), berço duma grande civilização, encerrando todas as contradições em que se confrontam tradição e modernidade. Aspirações, refúgio no Ocidente, depressão, até à tomada de consciência de si, numa sociedade esquizofrénica. 

Uma observação a propósito do desenho minimalista de Satrapi: reparem nos olhos das personagens e comparem-nos com os dos arqueiros do friso do palácio de Dario III (em exposição no Louvre), cuja capital era… Persépolis.

PERSÉPOLIS
Texto e desenhos:
Marjane Satrapi

Editora: Bertrand, 2015