O mais estranho dos transplantes


Se o transplante de rins, fígado ou medula óssea não nos causa já particular espanto, o mesmo não se poderá dizer daquilo que parece ser uma das últimas excentricidades médicas na área: o transplante fecal.


Rins, fígado, coração, sangue, medula óssea: o transplante destes órgãos e tecidos é hoje uma prática corrente, com impacto significativo na vida de muitos recetores. Se este tipo de intervenção não nos causa já particular espanto, o mesmo não se poderá dizer daquilo que parece ser uma das últimas excentricidades médicas na área: o transplante fecal. Não obstante a aparente bizarria do procedimento, estes transplantes provaram já a sua eficácia no tratamento de infeções intestinais severas e começam a emergir como uma terapia credível em condições como o autismo ou a doença de Parkinson. Mas quais as bases científicas por detrás de tão estranhos transplantes?

O nosso sistema digestivo é habitado por uma comunidade complexa de microrganismos que designamos por microbiota intestinal. Numa primeira instância, herdamos estes microrganismos das nossas mães durante o parto. O ecossistema que a partir daí se instala desenvolve-se e evolui, e inclui cerca de 100 biliões de bactérias de 500 a 1000 espécies diferentes. O tipo e a proporção de microrganismos intestinais são influenciados por fatores como alimentação, estilo de vida, higiene e uso de antibióticos. Cada indivíduo possui um conjunto específico de bactérias que, em sincronia e harmonia, auxiliam a digestão, produzem vitaminas, regulam o sistema imunitário, mantêm os intestinos saudáveis e protegem-nos contra agentes patogénicos [1].

É por demais evidente que a microbiota intestinal desempenha um papel central na nossa saúde. Não é por isso de estranhar que desequilíbrios caracterizados pela diminuição das espécies dominantes à custa de espécies habitualmente minoritárias ou invasoras tenham sido associados a diversos problemas de saúde. Estes incluem doenças gastrointestinais como infeções e a síndrome do cólon irritável e, menos obviamente, alergias, doenças autoimunes e desordens do foro neuropsiquiátrico. Por estas razões, o restauro de uma microbiota intestinal saudável tem sido proposto como uma via de tratamento quando existe uma associação clara entre uma dada doença e alterações na microbiota. As estratégias mais comuns de restauro incluem a adoção de dietas específicas ou a ingestão de probióticos e prebióticos. A solução mais drástica passa, no entanto, por transplantar um ecossistema microbiano inteiro, por exemplo, a partir de uma amostra de fezes de um indivíduo saudável.

Descrito originalmente na China há cerca de 1700 anos, só a partir dos últimos anos é que o conceito de transplante da microbiota intestinal (TMI) começou a ser estudado cientificamente de forma sistemática. O procedimento envolve a transferência de material fecal de dadores sãos para o intestino dos pacientes através de colonoscópios ou da ingestão de cápsulas [1]. Uma vez que nem todos os microrganismos da microbiota podem ser cultivados em laboratório, a utilização de fezes é incontornável. Os TMI têm demonstrado uma eficácia surpreendente (mais de 90%) no tratamento de infeções causadas por Clostridioides difficile, uma bactéria responsável por inúmeras fatalidades [2]. Só nos EUA, milhares de pessoas com infeções impossíveis de debelar com antibióticos foram salvas por TMI. A terapia afigura-se miraculosa já que, em muitos casos, as melhorias surgem poucas horas depois de um único transplante. Mais recentemente, no entanto, a morte do primeiro paciente após um transplante devido à contaminação do material fecal com uma bactéria multirresistente veio arrefecer o entusiasmo da comunidade médica em torno dos TMI.

Existem hoje bancos sem fins lucrativos (e.g. OpenBiome) que são responsáveis pela seleção criteriosa de dadores e pela recolha, análise, preservação e distribuição de microbiomas intestinais. Em paralelo, o número de empresas criadas com a expetativa de desenvolver e lucrar com transplantes fecais para tratar condições como obesidade, colite, autismo ou as doenças de Alzheimer e Parkinson não tem parado de aumentar. Muitas questões permanecem, no entanto, por esclarecer. Não só é fundamental realizar mais ensaios clínicos de modo a sustentar a segurança e eficácia dos TMI como é necessário desenvolver esforços ao nível da regulação, seleção de dadores, padronização de protocolos de preparação e administração, e compreensão científica dos mecanismos de restauro da microbiota. O receio de que as empresas farmacêuticas possam monopolizar o negócio da administração dos TMI, controlando preços e dificultando o acesso à generalidade dos pacientes, é também um tema de discussão recorrente [1].

Associar poderes curativos aos dejetos humanos é uma ideia contraditória à luz do senso comum que mais aparenta ser originária da alquimia que da medicina. Mas a realidade mostra que os transplantes fecais são já efetivos em alguns casos e potencialmente valiosos em muitos outros. Na verdade, os eventuais sentimentos de repulsa que possamos sentir face a esta prática não podem deixar de ser insignificantes face à perspetiva de curar doenças crónicas debilitantes ou de alto risco por intermédio de uma intervenção que tem tanto de simples quanto de estranho.

 

[1] Choi, H.H., Cho, Y.-S. (2016) Fecal Microbiota Transplantation: Current Applications, Effectiveness, and Future Perspectives, Clinical Endoscopy, 49:257-265.

[2] Kim, K.O., Gluck, M. (2019) Fecal Microbiota Transplantation: An Update on Clinical Practice, Clinical Endoscopy, 52:137–143.

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