A escolha de não ver


Amanhã, quando sair de casa, olhe à sua volta. Procure a miséria, a tristeza, o desespero. Vai encontrá-los ao seu lado.


O país ficou apavorado com a notícia do bebé que foi encontrado num contentor do lixo, acabado de nascer. A perplexidade perante tal gesto, incompreensível para todos nós, fez com que muitos escrevessem sobre o assunto ou fossem convidados para ir a programas televisivos transmitir a sua opinião sobre o sucedido e adiantando hipóteses justificativas que nos ajudassem a compreender melhor o que teria estado na origem deste episódio horrendo.

Acordei tarde para esta notícia (e agradeço por isso, porque me poupou a um sofrimento que chegou depois), à semelhança de todas as notícias desta natureza, que contorno nos meus dias, numa tentativa de não me intoxicar com o jornalismo sensacionalista que explora, sem limites, a desgraça e miséria alheia.

Vi o nosso Presidente da República interessado em conhecer o herói responsável pela descoberta daquele pequeno ser. Quantos não teriam passado por ali e nem teriam dado conta daquele choro… mas, felizmente, um homem passou, ouviu, parou, espreitou e resgatou o bebé. Hoje em dia, estas características são raras e fazem a diferença pela positiva.

Na televisão, uma socióloga apresentou várias justificações para o comportamento daquela mãe, que a ser uma pessoa sem-abrigo (PSA) seria expetável que pudesse sofrer de uma demência, levando a um episódio psicótico que terminaria naquela pobre mulher a descartar-se do seu filho, sem ter consciência das consequências que daí poderiam decorrer.

Li um artigo que me despertou a atenção pela forma como abordou a situação, no seguimento da socióloga que elaborou vários enquadramentos possíveis para o comportamento da mãe do recém-nascido. A abordagem foi mais chocante, já que Henrique Raposo nos pede para partirmos do princípio de que estamos perante uma mulher que vem de um estrato social indigente, sem instrução, com uma família disfuncional, vítima de abusos sexuais perpetrados por um familiar ou um vizinho e, ainda por cima, gorda e ignorante no que respeita ao funcionamento fisiológico do corpo humano, até mesmo o seu. Com esta descrição miserável, o cronista invoca a empatia do leitor para não julgar o comportamento da mãe, porque as atenuantes que elencou podem bem estar na origem do ato inconsciente.

Um arrepio, ao pensar naquela mãe e no que poderá tê-la levado a tal abandono. A confusão e o desespero que não deverá ter sentido. E, para mim, não preciso de a rotular de louca, pobre, analfabeta, vítima de abusos ou até de jovem inconsequente para sentir compaixão pela mãe que já o era ainda antes de o sentir.

Uma mulher que passou entre os pingos da chuva aos olhares de todos, desde assistentes sociais a voluntários que diariamente tentam alcançar PSA como esta e rastrear novas situações que vão surgindo. Mas não foi só para estas pessoas que esta mulher não existiu. Foi para todos os que se cruzaram com ela no dia-a-dia e escolheram ignorar a sua existência. Escolheram não ver quem ali estava e do que precisava. Foram muitos os que fizeram isto. Porque somos assim. É o que fazemos.

Os mesmos que escolheram virar a cara quase de certeza foram os primeiros a denunciarem-se ao ver a notícia e, logo de seguida, dizerem do alto da sua sabedoria que já desconfiavam de qualquer coisa e que até já se tinham cruzado com aquela mulher. Foram os primeiros a julgar, por certo. Porque somos assim.

E o bebé? Ninguém quer saber do que vai acontecer àquela criança? Do que já lhe aconteceu?

Mais do que a mãe, que não sendo um caso perdido terá mais problemas para serem resolvidos e tratados, este recém-nascido ainda tem uma hipótese de sair deste ciclo de miséria e de dor. A urgência é providenciar, rapidamente, um colo quente a este pequeno ser que já esteve abandonado à sua sorte. Apagar, dentro do possível, toda esta experiência fria e indescritível de sofrimento humano com o calor do afeto e do toque, do beijo e do abraço, que fazem maravilhas na construção da nossa filigrana psicológica e afetiva.

Este bebé precisa que o salvem agora, neste preciso momento, de um futuro previsível de dificuldades no estabelecimento das suas relações com os outros, derivadas da sua falta de autoestima e de confiança. Neste presente, podemos fazer o que está ao nosso alcance para diminuir a probabilidade de este bebé vir a ter um comportamento que seja resultado do que passou. Mais do que julgar, temos de agir a favor do futuro e de todos nós, a começar pelo bebé e pela mãe, que sem qualquer sombra de dúvida necessitam que os vejamos com olhos de ver.

Amanhã, quando sair de casa, olhe à sua volta. Procure a miséria, a tristeza, o desespero. Vai encontrá-los ao seu lado: no miúdo que tem um olhar vazio, no colega que teve uma má noite mas que, afinal, já soma meses de más noites, na agressividade de uma resposta que não mereceu, no vizinho que envelheceu da noite para o dia… e também pode encontrar os mesmos problemas no vão de uma escada, escondidos do olhar de quem passa; num banco de jardim, a apanhar o sol do meio-dia; à noite, a circular pela cidade com sacos na mão, à procura do melhor canto para dormir…

Podemos ser nós, todos nós, espelhados nos rostos que vemos e que, implacavelmente, escolhemos não ver.