Ang Lee. “Confio mais nos filmes do que confio na vida”

Ang Lee. “Confio mais nos filmes do que confio na vida”


Protagonizado por Will Smith, Projeto Gemini, que chega hoje às salas de cinema, é o novo filme de Ang Lee, o realizador de A Vida de Pi.


É um dos mais atrevidos e aclamados realizadores vivos, e é possível que não haja nada que Ang Lee não seja capaz de fazer. Talvez seja por isso que torna a vida tão difícil para si próprio. Projeto Gemini é a combinação de tudo o que Lee aprendeu ao longo de 30 anos, numa carreira sem rival no sucesso e na diversidade – desde os seus iniciais dramas familiares em Taiwan à ação do oscarizado O Tigre e o Dragão (2000), com o aclamado drama de época Sense & Sensibility (1995) e Tempestade de Gelo (1997) pelo caminho. Sem esquecer, claro, o filme que em 2005 lhe deu o primeiro de dois Óscares de Melhor Realização, o belo Brokeback Mountain. Lee começou a explorar as possibilidades do digital quando fez Hulk (2003), para a Marvel, apesar de se ter provado mais satisfatório quando voltou a usá-lo para o blockbuster com que adaptou o romance best seller A Vida de Pi (2012). Essa história – sobre um rapaz à deriva num barco salva-vidas com um tigre – venceu quatro Óscares, que vieram provar como o realizador e a sua equipa dominaram a tecnologia. “Passo a passo, estou a entrar num novo mundo”, diz o realizador de 64 anos. “[Projeto Gemini] é a derradeira [experiência de] realização”.

Alcançou tudo o que havia para alcançar no cinema – sucessos de bilheteira, Óscares, O que o leva a continuar a desafiar-se?

Não tenho uma checklist, do género “tenho de fazer isto e aquilo antes de me retirar”. Simplesmente adoro fazer filmes e há tantas coisas para aprender. Sou curioso, não consigo mudar isso. Quando sei o que tenho de fazer, interessa-me menos. Quando sei o que deveria fazer, é quando fico mesmo nervoso. Não sei o que isso diz sobre mim psicologicamente. Psicologicamente, tento não compreender. Se sei como fazer algo, sinto que algo de realmente mau vai acontecer. 

Foi sempre uma pessoa curiosa?

No cinema, não em tudo o resto [risos]. Como iPhones, uso-os para fazer uma chamada e é tudo. Mas o cinema é a minha forma de me ligar à vida; é através dele que descubro o mundo, e a mim mesmo. Confio mais nos filmes do que confio na vida. Os filmes fazem sentido. A vida não. Quando o vejo pela visor da câmara, o mundo faz mais sentido para mim. Interessa-me mais. Lidar com a vida, com pessoas, foi sempre assim. Assim que tive essa imagem, tudo mudou. [A vida] era muito confusa. Queria dar-lhe um sentido, para sair daquilo. Criar algo belo. 
O Will Smith ficou nervoso com o facto de estarem os dois a fazer algo completamente novo em Projeto Gemini?
Têm de lhe perguntar. Para mim, o Will abraçou tudo. Tivemos muita sorte em tê-lo. Para este trabalho precisávamos de uma grande estrela – uma estrela que fosse grande há 25 anos e que continuasse a ser hoje [de forma a que houvesse registos fílmicos a partir dos quais se pudesse construir Junior, a versão jovem da personagem interpretada por Will Smith, com a qual o próprio se cruza]. Havia apenas duas ou três pessoas [que cumprissem o requisito]. E era preciso também que fosse capaz de fazer um filme de ação. Portanto, tivemos mesmo sorte em ter o Will. E aconteceu ele querer trabalhar comigo também. É engraçado, não há muito tempo, vi-o no YouTube a promover um filme dele em Taiwan, numa passadeira vermelha, em que gritava para as câmaras “Ang Lee, onde estas? Estou a ficar velho, vem buscar-me! Estou na tua terra! Vim atrás de ti até ao teu país!” Foi talvez há dois anos e meio ou três. Pensei “olha que interessante…”.

O que é que o agarrou em Projeto Gemini?

O conceito: alguém que luta contra uma versão mais jovem de si próprio. Para mim, tem a ver com como lidamos com nós próprios – se vivêssemos outra vez, o que faríamos? E, no futuro, gostaríamos de ouvir esse conselho ou viver a nossa própria vida? Claro que estamos a fazer isso num filme de ação, em que chegamos a esse conflito interno pela ação, pelo drama. O que fiz foi usar um filme de género e tentar encontrar o meu caminho para uma nova estética naquilo que o 3D pede, no que lhe pertence. Não acho que conheçamos o cinema dimensionado, não passámos sequer da superfície. Temos feito filmes 3D como se fossem planos. Passo a passo, começando n’ A Vida de Pi, estou a chegar a um novo mundo. Com este quis chegar a uma nova estética, a um novo artifício, a uma nova beleza, a uma nova forma de iluminação, de atuação. Em direção a um novo mundo, descobrindo-o. É muito entusiasmante estar a descobri-lo a cada dia, cena por cena. E os atores foram maravilhosos. 

É conhecido por conseguir grandes performances dos atores. Como é que eles lhe respondem?

Acho que quando se está a dirigir atores num filme é preciso conhecê-los, ao seu método e à sua prática. Quando vim para os Estados Unidos, queria ser ator, era esse o meu background em Taiwan. Mas não falava inglês, não podia representar, não consegui nenhum papel. Tive de ser realizador. E achei realizar filmes muito mais fácil, senti sempre que era um ator falhado. Mas continuo a ver-me como um performer, um que usa câmaras. Encontrei o meu meio. Não tenho de estar no meio do palco ou sob a luz da câmara. Faço a minha performance através da realização. Portanto, senti-me sempre muito próximo dos atores, consigo sentir o que sentem. Sou a voz que lhes sussurra ao ouvido ou qualquer coisa do género. 

A tecnologia que utilizaram aqui é bastante complexa. Não se sentiu tentado a recorrer a alguns atalhos?

Nunca. Duvidei de mim umas três vezes ao dia, mas nunca disso. O caminho mais difícil é o caminho certo. Tinha de ser difícil. Não sou sádico nem nada do género, mas isso dá-nos mais material com que trabalhar. É muito desafiante e leva muito tempo, mas é muito mais rico. Fazer o Junior foi uma ciência e uma arte de representação, algo que nunca tínhamos visto. O Will de agora não é o Will de há 25 anos – o seu rosto faz coisas diferentes. O que retratamos em Projeto Gemini não é o Bad Boys [de Michael Bay, 1995], não é o que fez há 25 anos. O nosso meio é super genuíno: traz algo de diferente a uma coisa com que as pessoas já estão familiarizadas. 

O que conseguiu fazer aqui é uma nova forma de cinema. O que fez com que a tecnologia estivesse pronta?
Não está pronta [risos]. Mas essa é a parte mais entusiasmante. Descobrir – não apenas estar a fazer algo bom, mas a descobrir algo de novo. Espero que as audiências e o mundo partilhem do nosso entusiasmo. É a razão pela qual o fazemos. 

Este projeto deu-lhe um novo vigor?

Ah, sim. Percebemos que já não sabemos como fazer um filme. Que todas as coisas que sabíamos de antes já não resultam exatamente. É difícil, mas fascinante. Depois de terminarmos a rodagem, a equipa ficou deprimida, com uma espécie de síndrome de stress pós-traumático. É como ir à guerra e voltar. A adrenalina deste tipo de projetos. Nunca tinha sentido nada assim. Estar a recorrer a tudo o que se sabe, estar em alerta máximo o tempo inteiro. Esse tipo de adrenalina é maravilhoso. É fazer filmes mais do que nunca, é a derradeira [experiência de] realização.

Consegue imaginar-se a voltar a uma experiência de realização tradicional, depois disto?

Não, não consigo. Estou demasiado imerso nisto. É uma nova religião. No que diz respeito ao tradicional, não tem a ver com isto ser superior; é apenas diferente. Para a forma tradicional, sabemos o que precisamos de saber, e há muito tempo. Quero explorar aquilo que ainda não sei. 

E então qual é o próximo passo?

Quero experimentar o próximo passo. Desde A Vida de Pi que, a cada filme, ando à procura daquilo que o cinema digital tem para nos oferecer. É uma nova linguagem, e estou a tentar aprender a utilizá-la. É uma experiência diferente, um processo diferente, um resultado final diferente. Acho que no cinema, daqui a 500 anos, as pessoas vão olhar para trás e dizer “durante os primeiros 100 anos só fizeram aquilo”. As pessoas vão olhar para trás e perceber tudo o que estava por fazer. Recuso-me a pensar que nos próximos 50 anos teremos chegado ao lugar mais alto. Ainda só riscámos a superfície, ainda há muitas coisas por explorar. É como os filmes mudos. Como o surgimento do som, da cor. Atravessámos tudo isso. 

A tecnologia mudou a forma como dirige os atores?

Muito. Com muita frequência dava-lhes motivação, dizia-lhes: “Não se desviem disso. Têm uma tarefa, da atuação”. Mas não é o que fazemos na vida. Na vida, há outros pensamentos na cabeça. Então, passo-lhes uma série de pensamentos. É mais difícil, mas mais interessante, estar sempre a oferecer-lhes coisas diferentes para os manter vivos neste [novo] meio. É preciso trabalhar mais arduamente, com novos meios. Eles são bons profissionais, por isso têm vontade de experimentar coisas que nunca fizeram. E quando isso ganha vida, percebe-se.

O Projeto Gemini é o filme de que mais se orgulha?

Tenho orgulho em todos os filmes que faço. É como com os filhos, não se pode escolher o favorito. Mas com certeza tenho muito orgulho em ter feito isto, porque havia tanta coisa desconhecida. E este foi o melhor trabalho de equipa que já experienciei. Pessoas que estão dispostas a pôr de lado o seu orgulho e que sabem que ainda têm muito para aprender, para crescer, para descobrir. Não é fácil. Toda a gente tem de pôr os seus egos de parte para trabalhar em conjunto. É uma experiência muito comovente. Uma vez que se sente o gosto disso, não se quer mais nada. Sentimo-nos como o Junior; sentimos essa inocência outra vez. Tive um assistente [de câmara] que fez coisas tão incríveis que no fim do dia lhe disse “quero pagar-te o jantar”. Ao jantar, estávamos a falar e ele disse-me: “Este plano lembrou-me a razão pela qual quis fazer filmes no início”. E emocionou-se. Tive muito disto, pessoas fora de si próprias, perdidas nesta inocência. Tornamo-nos nos filmes que fazemos. Gradualmente, estamos num filme. É essa a nova vida, a nossa vida profissional. É muito reflexivo. E estamos sempre à espera que o filme seguinte repita a mesma dose, a mesma sensação.  

Como foi a primeira conversa sobre o Projeto Gemini?

Tenho idade suficiente para imaginar “se fosse encontrar-me comigo em mais novo, como seria?”. Se tivesse 40 anos, não pensaria nisso. Agora estou numa idade em que se é atingido por coisas deste género. O [argumento] original era um thriller de ação direto. Escrevi-lhes [aos produtores] a dizer “isto tem potencial para isto, para aquilo”, e estava preparado para, no caso de me dizerem “não queremos fazer isto”, não trabalhar com eles. Mas responderam-me logo, a dizer “sim, queremos fazer esse filme”. 

O que diria ao seu eu de 23 anos, se o conhecesse? 

Ah, dir-lhe-ia para me desamparar a loja. Não quero vê-lo. Se vir alguém a usar a mesma camisola que eu, fico chateado. Deixem em paz esse clone de mim! Uma pessoa exatamente igual? Imaginem o quão irritado ficaria! Não quero lidar com ele. Acho que, na vida, como na carreira, não deve haver arrependimentos. Fazemos o nosso melhor. É a vida, sabem? O que passou, passou. Acho que o importante é viver o momento. Quer se retire o melhor dele ou não, é o caminho de cada um. Acho que essa é a mensagem deste filme: deixar aquele tipo em paz. Ele está bem, nós estamos bem. Não pensem que não estão bem. Deixem as coisas ir. Não sejam tão duros convosco. Todos temos essa coisa de um ódio em relação a nós próprios, normalmente disfarçada de narcisismo. Todos nós achamos que há qualquer coisa que não está completamente certa connosco. Mas este é um filme que diz: “Está tudo bem. Feitas as contas, está tudo bem”. É o que quero dizer a mim próprio. 

Entrevista gentilmente cedida pela Paramount Pictures