Tancos para todos os gostos


A hierarquia do MP, desta vez, assumiu as suas responsabilidades, sem complexos e com frontalidade.


No momento em que escrevo este texto, já decorreram as eleições para a Assembleia da República.

Muita tinta irá correr ainda sobre o significado e os efeitos que a acusação do processo de Tancos terá tido sobre os seus resultados.

Como antes escrevi, poucos são os países democráticos que se não confrontam hoje com intervenções judiciais que, de uma maneira ou de outra, confluem ou interferem com a atividade política.

Muitas são as razões para que tal aconteça, sendo que a mais relevante – a que abarca todas as outras – é a da crescente consciência cidadã sobre a relevância do estado de direito e, consequente e inextricavelmente, a valorização política da igualdade dos cidadãos ante a lei.

De nada serve, portanto, procurar encontrar outras justificações para o, assim chamado por muitos, ativismo judiciário.

O sistema judiciário não age, em regra, de motu proprio; antes é convocado pela sociedade, quer ela se mova por intenções privilegiadamente políticas, quer, sobretudo, por razões de ordem ética ou moral.

As leis existem, preveem e enquadram cada vez mais situações da vida – portanto também da vida política e da vida dos políticos – e são cada vez mais conhecidas da sociedade, sendo acionáveis por esta, mesmo que à margem de qualquer pretensa ou elevada e real consideração de natureza institucional.

É assim e tão cedo não se prevê que algo mude a este respeito.

Claro está que, sendo assim, também a atividade judiciária pode ser – e muitas vezes é, de facto – manipulada politicamente, tendo em vista atingir, por essa via, resultados que pouco têm a ver com os seus fins primordiais.

Contrariando muitas teorias conspirativas e outros tantos preconceitos sobre as motivações corporativas e economicistas dos magistrados – que apenas ilustram e qualificam quem as exprime –, desta vez ficou patente que o MP não age como um exército de soldadinhos de chumbo.

Com efeito, foram noticiadas – não sabemos se correta, ou incorretamente – dissensões e divergentes opiniões sobre a orientação e condução das investigações.

Uma coisa ficou patente: concorde-se ou não com as suas razões, a hierarquia, desta vez, assumiu as suas responsabilidades, sem complexos e com frontalidade.

Discute-se, é certo, na doutrina, se tal assunção de responsabilidades, no que respeita à direção do inquérito, deve ser feita diretamente no processo, ou não.

Tal como defende o mais profundo estudioso desta matéria – Paulo Dá Mesquita –, considero, também, que este tipo de intervenção hierárquica deveria ter o seu lugar apropriado no processo.

Várias são as razões jurídicas para tal entendimento.

No que ao caso concreto diz respeito, outras razões – porventura não jurídicas, mas nem por isso menos relevantes – ficaram evidentes.

Se assim tivesse acontecido – se a intervenção hierárquica tivesse sido plasmada no processo – ao menos desta vez, não teria sido possível a certa imprensa – dita “amiga” – reportar como maquinação obscura o que deveria ser só encarado como o exercício regular e responsável de um poder de direção que caracteriza a magistratura do MP.

O que sucedeu e o mais que, assim, pode ainda suceder, deveria aconselhar a que, na legislatura que se inicia, se avançasse para uma revisão do Código de Processo Penal que, entre outros aspetos, clarificasse, de vez, o plano em que a intervenção hierárquica do MP se deve fazer, quando se trata da direção do inquérito e da intervenção que nele pode e deve ter a sua hierarquia.

Em Itália, com um sistema processual idêntico ao nosso e onde este tipo de problemas há muito se colocou, o legislador, em diploma próprio, veio já, faz tempo, reordenar toda a matéria que se refere à definição da titularidade dos inquéritos no seio das Procuradorias e à forma da intervenção hierárquica nos processos.

Se isso acontecesse igualmente entre nós, reforçar-se-ia a transparência processual e diminuir-se-ia o espaço do manobrismo externo e interno.

 

Escreve à terça-feira