“Porto Cidade Literária” revisitou dois séculos de história viva

“Porto Cidade Literária” revisitou dois séculos de história viva


O Mapa do Bairro, um guia nascido do projeto Bairro dos Livros, comemorou a sua segunda edição com uma visita às histórias e espaços literários do Porto.


O Porto, mesmo com a transformação turística que atravessa a cidade, continua a ser caracterizado por uma forte matriz liberal, sendo muitas vezes a sociedade civil a manter a urbe como um espaço privilegiado de cultura. Nesta senda, destaca-se a vivacidade da atividade literária da cidade, em que, a par da criação, resistem algumas livrarias seculares e algumas iniciativas de cidadãos e empresas do setor.

Isso mesmo ficou patente este sábado, em que nem a chuva dissuadiu os visitantes que se juntaram a um percurso inspirado no primeiro guia literário da cidade, o Mapa do Bairro, Guia Literário da Cidade – uma experiência do Porto para amantes de livros. A segunda edição, revista e aumentada, tem a chancela do Bairro dos Livros, o coletivo criativo que começou por ser um evento mensal nas livrarias e alfarrabistas da Baixa portuense e que nasceu para dar visibilidade a esse enorme património. O livro já está disponível nas livrarias, mas os seus autores resolveram sair para a rua para comemorar o lançamento da edição e calcorrear os mesmos espaços peculiares que, durante os dois últimos séculos, foram percorridos por algumas das figuras mais destacadas da literatura portuguesa.

Neste percurso, os autores ligados ao Porto foram o mote para um roteiro que explorou o património literário da Invicta, passando também pelas suas instituições, livrarias e esculturas mais emblemáticas. Uma visita guiada inédita a esta face do Porto, que abrangeu 200 anos de história da literatura da cidade, atravessando o séc. xix e as suas paixões e zaragatas, entrando no séc. xx com duelos e revoltas e chegando ao séc. xxi com muita fantasia e revolução.

Segundo o historiador Manuel de Sousa, da Gbliss, “o Porto é uma cidade literária”. Por isso, comenta, “não é preciso caminhar muito além da Baixa para perceber a sua atmosfera de livros, escritores, livrarias, bibliotecas, leitores e acesas paixões literárias” – paixões que chegaram a saltar para a vida real. “O Jardim de Arca d’Água, em Paranhos, chegou mesmo a ser palco de um famoso duelo por razões literárias” conta o guia, enumerando ainda histórias infindáveis na cidade.

Ao longo dos séculos, as dinâmicas literárias da cidade foram mudando. No séc. xix, por exemplo, “muitos dos autores têm relações entre si”, lembra Manuel de Sousa, elencando nomes como “Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e Ana Plácido, Júlio Dinis, Antero de Quental, Eça de Queirós e António Nobre”. Também desta altura nos chegam instituições importantes neste percurso, como “a Biblioteca Pública Municipal do Porto, o Ateneu Comercial do Porto ou a Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto”.

Foi efetivamente no séc. xix – e “apesar de Luís de Camões falar já do Porto n’Os Lusíadas [1572] como a “leal cidade donde teve origem (…) o nome eterno de Portugal” – que a “identidade literária da Cidade Invicta se começou a formar, em pleno romantismo e atravessando acontecimentos políticos como as Invasões Francesas e a Revolução Liberal do Porto”, explica o guia. “Poder-se-ia dizer que o tempo que vai da estreia literária de Almeida Garrett, em 1820, à fundação da Biblioteca Pública Municipal do Porto, em 1833, funciona como prólogo para esta história de 200 anos de leitores portuenses”.

A história literária portuense entra pelo séc. xx adentro, “com autores como Ramalho Ortigão, Carolina Michaëlis, Sampaio Bruno e Florbela Espanca”, continua o guia. “A criação das livrarias mais antigas ainda hoje em atividade, designadamente a Moreira da Costa, a Livraria Lello e a Livraria Académica, e polos culturais como o Teatro São João, o Clube Fenianos Portuenses, a Reitoria e os Cafés Majestic e Guarany, que acompanharam a instauração da República e o início da ditadura”, também são legados deste século, refere o historiador.

Na época da ditadura, a atividade livreira conheceu novo fôlego. “Durante o Estado Novo, os espaços livreiros multiplicaram-se com a criação da Livraria Latina, da Porto Editora, das cooperativas Unicepe e Árvore e da entretanto extinta Livraria Leitura”. Também a “própria produção de literatura de autores portuenses ou com relações com o Porto se intensificou”, comenta. Óscar Lopes, Jorge de Sena e Mécia de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Agustina Bessa-Luís e Eugénio de Andrade, ou mais tarde, já depois do 25 de Abril, Manuel António Pina, Jorge Sousa Braga e João Luís Barreto Guimarães são disso exemplo.

Esta visita não fala, contudo, apenas do que já lá vai, porque o “Porto enquanto cidade literária não é apenas uma história do passado”, defende Manuel de Sousa. “Há livrarias como a Utopia, a Poetria e a Flâneur, que atestam a modernidade literária da cidade, assim como projetos como o Café Pinguim e o Bairro dos Livros, a par de autores como Daniel Faria, Daniel Jonas e Andreia C. Faria”. Segundo o mesmo responsável, esta é “uma história que continua viva e em construção, sempre questionando a identidade da cidade e o seu papel no panorama nacional, pois mesmo sem selo de cidade literária, o Porto sempre o foi e será por mérito próprio”.

Os vários pilares da literatura As palavras do guia podem ser atestadas de várias formas. Para lá da nova geração de escritores, de noites de poesia regulares que funcionam como pontos de encontro há várias décadas e do florescimento de livrarias generalistas e especializadas, só na Baixa do Porto contabilizam-se cerca de 40 livrarias e alfarrabistas. É também aqui que se encontra o maior grupo editorial do país [a Porto Editora].

Foi neste território geográfico e afetivo que o projeto Bairro dos Livros nasceu há oito anos. Entretanto, ganhou dimensão, sempre trabalhando esse imenso património cultural e dando visibilidade aos agentes e públicos que o movem, como afirma a sua equipa, que é constituída pelo quarteto Catarina Rocha, Minês Castanheira, Paula Brás e Isabel Costa.