Afonso Reis Cabral. “Quando, aos 15 anos, publiquei o meu primeiro livro achava que já era tarde”

Afonso Reis Cabral. “Quando, aos 15 anos, publiquei o meu primeiro livro achava que já era tarde”


Tem 29 anos mas há já duas décadas que vive para a escrita. Na adolescência, pensava estar “atrasado” na sua ambição literária. Em 2014, venceu o Prémio LeYa com um romance inspirado numa realidade que lhe é próxima. Agora, Afonso Reis Cabral estreia-se na literatura de viagens com um périplo pela mítica EN2.


Começou a escrever os primeiros poemas pouco depois da morte de Amália Rodrigues a 6 de outubro de 1999. Aos nove anos, sentia-se cativado pela possibilidade de uma gaivota lhe levar o céu de Lisboa, pela ideia de haver quem defenda e compre o chão sagrado do povo que lava no rio e intrigado pela presença das coisas que já lá vão mas deixam marca.

Durante seis anos, Afonso Reis Cabral produziu perto de 200 poemas. No Ensino Secundário, após publicar a antologia Condensação, compreendeu que o seu caminho seria na prosa. Já na capital, ingressou na licenciatura em Estudos Portugueses e Lusófonos na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova. Na mesma instituição, avançou para um mestrado com uma dissertação onde interligou a teoria da literatura e os estudos da consciência.

Entre um part-time como adjunto de administração numa empresa ligada ao turismo, a investigação num arquivo histórico e a escrita da dissertação, Reis Cabral percebeu que o amor à ficção estava sempre consigo. Terminou O Meu Irmão e candidatou-se ao Prémio LeYa. Em 2014, aos 24 anos, tornou-se o vencedor mais jovem de um dos mais valiosos prémios da literatura lusófona.

Entre 2014 e 2018, desenvolveu atividade enquanto editor e consultor editorial e uma extensa investigação que resultou na obra Pão de Açúcar. Estudou os últimos dias de vida da transexual Gisberta Salce Júnior e partiu para a construção de uma narrativa em que a conclusão já era conhecida, a introdução foi desvendada e o desenvolvimento ficcionado.

Trineto do escritor Eça de Queiroz, não fica a descansar à sombra da genética nem das influências literárias familiares e trilha o seu próprio caminho na literatura. Entre 22 de abril e 15 de maio, percorreu os 738 quilómetros que separam mas, acima de tudo, unem Chaves a Faro. “Deixou que a estrada o guiasse ao encontro das pessoas, localidades e histórias. Atravessou montanhas, cruzou planícies, mergulhou em rios, caminhou debaixo de tempestades e de muito calor. Mas sobretudo parou para conversar com quem encontrava” diz a sinopse da obra que resultou desta jornada de 24 dias pela Estrada Nacional 2 (EN2). Leva-me Contigo, com edição de Maria do Rosário Pedreira, chega às livrarias amanhã.

Começou a escrever aos nove anos. O que o cativou no mundo da escrita?

Foi sobretudo influência da Amália. Ela morreu em outubro de 1999 e gerou um boom mediático. Depois da sua morte, fui quase forçado a ouvir os fados dela e, para além da voz extraordinária, fascinaram-me as letras de poetas como Luís de Camões, David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, Pedro Homem de Melo e tantos outros que a Amália cantou. Aos nove anos, encarava isto como um mistério e uma aventura: em resposta a esse fascínio, comecei a escrever.

Publicou o seu primeiro livro, Condensação, aos 15 anos. O significa hoje esse livro para si enquanto escritor?

Achava, muito infantilmente, que já estava atrasado na minha ambição de escrita; que ter lançado um livro de poesia aos 15 anos já era tardio. Aliás, frequentava muito a Biblioteca Municipal Almeida Garrett, no Porto, e queria juntar uma lombada àquelas estantes. Não tinha propriamente a ideia de escrever um livro, mas sim de ver uma lombada minha ali, não sei bem porquê. Quando, aos 15 anos, publiquei o livro achava que era tarde porque há muitos anos tentava ter material com qualidade suficiente mas também encontrar uma editora. Portanto, na altura, foi um ritual de passagem mais do que outra coisa. E também uma espécie de cerimónia fúnebre: incluí no livro toda a poesia que achava que merecia ser publicada embora, hoje em dia, ache que não e, depois, deixei de escrever poesia. Dediquei-me exclusivamente à prosa.

Que caminho trilhou até publicar o primeiro livro?

Escrevia muito e tinha – e ainda tenho – uma pasta no computador cujo nome é alter ego. Os meus pais brincavam comigo e diziam que, quando escrevia, tinha um alter ego porque como pessoa era feliz. Mas, quando escrevo, as coisas espelham o oposto disso. A partir de um certo momento, senti que a escrita tinha de corresponder à publicação. Não queria escrever só para guardar na gaveta. A partir de determinado ponto, talvez aos 12 ou 13 anos, comecei a ter o intuito de publicar o primeiro livro. Intuito e sonho. Aos 12 anos, a ideia de ter um livro meu era muito apelativa. Era uma quimera: totalmente inatingível por só os grandes – no sentido de faixa etária – o faziam. Queria publicar e o Condensação nasceu dessa vontade. 

No ensino Secundário integrou a única turma de Línguas e Literaturas do Porto. Que impacto tiveram estes três anos na sua ambição literária?

Foram cruciais. Vinha de um colégio onde não havia nada parecido: mesmo o curso de Línguas e Humanidades não abria todos os anos. Foi uma turma muito difícil de constituir porque se tratava de um curso científico-humanístico muito especializado e havia mais ou menos 30 pessoas, de todo o Porto, que decidiram ir para o mesmo. Fomos juntando, muito por iniciativa dos pais, os alunos dispersos. Acontece que muitas escolas não nos quiseram receber porque era um esforço grande ter apenas uma turma de Línguas e Literaturas. Muitos dos meus colegas desistiram da ideia a priori mas conseguimos formar uma turma na Escola Secundária Rodrigues de Freitas. Foi uma turma muito boa, de pessoas empenhadas e com muita vocação para a área. E tivemos a sorte de encontrar um grupo de professores incrível: foi a primeira vez na vida em que estava quase profissionalmente, digamos, dedicado àquilo de que gostava. Estudava Literatura Portuguesa, Português, Latim, Grego… estava realmente em casa! Por exemplo, a professora Maria Helena Padrão, de Português, prefaciou o meu livro: um prefácio incrível, excessivo e generoso da parte dela. Acolheu também o lançamento no Clube Literário do Porto – isso foi extremamente marcante.

O que o levou a criar o blogue Janelar aos 16 anos?

O Janelar está morto e enterrado, felizmente, mas escrevi diariamente nele entre os 16 e os 18 anos. Os blogues estavam na moda, já um bocadinho depois da criação do ABRUPTO de Pacheco Pereira ou do Blasfémias de Victor Cunha, e esse mundo cativava-me muito porque tinha que ver com a atualidade e a troca de ideias. O blogue surgiu nesse contexto, com um amigo, o José Tomás Gonçalves da Costa, durando dois anos da minha adolescência durante os quais exercitei a escrita.

Qual é a maior lição que retira da sua atividade na blogosfera?

Olhando para trás, o blogue tinha de ser alimentado: tinha de estar desperto para toda a atualidade e isso é salutar.

Em 2008, ficou em oitavo lugar na 7th European Student Competition in Ancient Greek Language and Literature. Como foi obter esse reconhecimento?

Tendo em conta que só tive um ano de Grego, estava em condições muito desfavoráveis em relação a muitos outros candidatos. Eles têm Latim e Grego desde o 7º ou 8º ano. Ou seja, foi completamente inesperado. 25 países e mais de 3500 concorrentes: primeiro, houve uma tiragem por país, a seleção dos representantes e fui o único português a participar. Ir à Grécia depois de ter estudado a língua, a cultura e a História do país foi muito empolgante.

Quando se candidatou ao Ensino Superior, escolheu vir para Lisboa. O que o levou a prosseguir estudos na FCSH?

Em primeiro lugar, queria conhecer novos sítios, novas pessoas e ter novos desafios. Em segundo lugar, achei que o plano de estudos era melhor e os professores tinham mais publicações – seguia-os mais atentamente, eram pessoas mais destacadas e percebi que seria o caminho certo. É evidente que Lisboa agrega tudo: na área da Literatura, está quase tudo concentrado na capital. Não tenho memórias muito entusiasmantes dos anos de faculdade: adorei a licenciatura, adorei o ambiente mas nunca participei muito na vida académica. Foram anos de estudo, de alguns novos amigos e de descobertas. Mas, do ponto de vista do élan da academia, não posso dizer que o tenha sentido.

Por que escolheu abordar a conexão entre os estudos da consciência e a teoria da literatura na sua dissertação de mestrado?

Tinha acabado de ler há pouco tempo dois livros que me interessaram muito: A Consciência e o Romance de David Lodge e A Mecânica da Ficção de James Wood. Estas duas obras apontavam já para uma possível ligação entre a literatura e os estudos de consciência do ponto de vista científico. E, em particular, António Damásio aponta sempre para esta ligação: a literatura como exemplo máximo da consciência humana que está radicada no cérebro e se pode até estudar cientificamente. Portanto, havia algumas luzes e julguei que era algo de tal maneira novo e cativante que queria estudá-lo e dar o meu contributo. Mas isto já foi há uns anos e, exatamente pela complexidade, é uma área que precisa de estudo constante. Hoje em dia, já não sou capaz de trabalhar o assunto com a profundidade de antes. Não sei se a minha abordagem foi bem conseguida, mas foi um desafio muito interessante: no ano da elaboração da dissertação, estava simultaneamente a acabar de redigir O Meu Irmão, tinha uma bolsa de investigação para a qual ia de manhã e um part-time num escritório de turismo à tarde.

Tinha concorrido a algum concurso literário antes do Prémio LeYa?

Sim. Da primeira vez, tinha 11 ou 12 anos e vi não sei bem onde – acho que no jornal Poetas & Trovadores – um anúncio a um prémio de poesia. Candidatei-me e tinha de enviar, num envelope, um poema de minha autoria e uma nota de 10 euros. Como é evidente, ficaram com a nota. Portanto, fui aldrabado! No meu colégio, havia também um concurso literário todos os anos letivos.

Em 2014, foi vencedor do Prémio LeYa com a obra O Meu Irmão. Em várias entrevistas, admitiu que este livro acabaria por ser inevitável devido ao facto do seu irmão ter trissomia 21. Para si, não é mais difícil escrever sobre uma realidade que lhe é tão próxima?

Em muitos momentos, é mais difícil. No entanto (e isso eu percebi com o Pão de Açúcar), no momento da escrita trabalha-se a realidade de forma íntima – quer seja mais pessoal, quer seja mais estrangeira. A escrita é um ato transformador e possessivo: tudo aquilo que se trabalha, passa a ser nosso. Nesse sentido, tive tanta dificuldade a escrever o primeiro livro como o segundo. Por outro lado, O Meu Irmão é particular porque escrevi-o durante três anos: houve momentos mais mortos, outros mais intensos e circunstâncias várias. Assim, a escrita d’O Meu Irmão foi muito irregular mas houve momentos muito complicados, tal como no Pão de Açúcar.

Em O Meu Irmão, o protagonista fica com a custódia do irmão, Miguel, após a morte dos pais. Têm quatro irmãs, mas o professor universitário torna-se o cuidador principal. É este o cenário que tem em mente relativamente ao seu futuro?

O cenário base d’O Meu Irmão é o típico de todas as famílias que têm alguém com síndrome de Down ou outra deficiência à guarda. Porque, inevitavelmente, os pais morrem e são os irmãos que assumem a responsabilidade. Tendo eu um irmão com síndrome de Down, é óbvio que esse cenário pode acontecer: felizmente, não como no livro.

Na página 98 d’O Meu Irmão, o protagonista assume que o texto é “uma confissão em forma de livro”. É a confissão do irmão do Miguel, a sua ou de ambos?

O cenário é literário e puramente uma transformação de uma realidade que conheço, que consigo trabalhar de tal maneira que deixa de ser minha. Separo muito bem as águas: aliás, não quero, de maneira nenhuma, cruzar as coisas. Não há nada que se cruze. De facto, a literatura é transformadora e nada que está no livro é particularmente meu. Nunca confundo os cenários do livro com os da minha vida.

Durante o ano de 2015, escreveu várias crónicas para o Observador. Essa colaboração serviu de treino enquanto estava à “procura de um novo livro”, como mencionou?

Sim, de certa forma. Não gosto de ter a obrigação de escrever de x em x tempo. Mas acaba por ser uma obrigação importante porque a escrita, para além de muitas outras coisas, consiste em trabalho e rotina. Treinar a mão é importante. Nesse sentido, serviu de treino enquanto aguardava por uma ideia para outro romance. Mas ter um momento de crónicas, apesar de não estar muito satisfeito com algumas, foi significativo.

Para a escrita do seu segundo livro, desenvolveu muito trabalho de campo: foi a diversos locais, conheceu muitas pessoas, entrevistou-as e consultou uma variedade de documentos. Sentiu, em algum momento, que se estava a aproximar do jornalismo?

Não, nunca. Não sou jornalista: estou inserido num contexto completamente diferente e não estou constrangido pelo código deontológico típico do jornalismo. Os escritores só se obrigam à literatura. Ponto. No Pão de Açúcar, era preciso conhecer aquela realidade: não só da Gisberta, mas também do contexto social dos rapazes e entender o enquadramento citadino. Não conhecia os acontecimentos a fundo. A investigação surge dessa necessidade: não propriamente para fazer jornalismo ou escrever um relato que se aproxime do jornalismo, mas sim para conhecer e interiorizar aqueles acontecimentos de modo a que fosse possível convertê-los em literatura. É evidente que a investigação pode suscitar algum interesse e, aliás, no livro dou alguns lamirés sobre isso mas não pretendo, em nenhum ponto, seguir o exemplo do Truman Capote e criar um romance de não-ficção. Para mim, de facto, é puramente ficção: quer aquele pormenor A, B ou C venha da realidade ou não. Tal como n’O Meu Irmão, a partir do momento em que interiorizei a realidade, passei a transformá-la.

Como funcionou esse processo de imersão no mundo da Gisberta e dos seus agressores? Em algum momento sentiu que não seria capaz de suportar tamanha violência?

Houve vários momentos de grande confronto mas a realidade é dura per si: temos de a enfrentar e estar ao nível dela. Nesse sentido, aquilo que sentia ou o meu estado de espírito em relação à história eram pouco relevantes. Estar impressionado ou sentir-me mais ou menos assoberbado não importava. Aquilo que senti várias vezes é que não estava à altura da história por o assunto ser demasiado complexo para o tratar. Isso, sim, até muito tarde no livro. Até estar quase a terminá-lo.

O Rafael, o Samuel e o Nélson mantinham uma relação próxima com a Gisberta, ao contrário dos outros rapazes. Sente que são mais culpados por terem traído uma amiga?

Tenho de fazer uma ressalva: estamos a falar de personagens. Eles não existem: são produtos literários, são ficção. Embora o livro se baseie num caso real, tudo é literatura. Não faço nem me interessa fazer uma análise moral das personagens. Aquilo que me impressionou na história foi perceber que um grupo de rapazes encontrou a Gisberta e, durante algumas semanas, lhe deu de comer e conversou com ela – e isso está, de algum modo, transposto para esse trio. Foi essa transição, entre a proximidade e a agressão, que me instigou a escrever. Foi isso que fez o livro. Se fosse simplesmente a agressão ou o estranhamento da Gisberta, não seria literatura. 

Tem preferência por algum dos seus livros?

Ultimamente, não tenho quase nenhuma empatia em relação ao O Meu Irmão. De certa maneira, a minha atenção canaliza-se para o Pão de Açúcar. Não sei se depois do terceiro livro acontecerá este mesmo processo, uma vez que esta experiência é nova. Quando me falam do primeiro livro, parece que foi escrito por outra pessoa. Por vezes, fico surpreendido quando as pessoas me recordam de certos detalhes. Tenho de parar e perceber que fui eu que o escrevi.

Era uma pessoa diferente, em termos psicológicos, quando o escreveu?

Não tem que ver com isso, mas sim com o facto de não podermos estar em permanente estado de empolgamento. Qualquer pessoa experimenta isso na vida: aqueles momentos que pareciam inatingíveis e, quando chegam, são extraordinários. Mas, depois, caem na rotina. E O Meu Irmão tornou-se na rotina porque, antes, achava impossível escrever e publicar um livro. Posteriormente, achei que seria impossível escrever um segundo livro e por aí fora. Temos de nos conformar.

Aos 13 e aos 25 anos, viajou até à Alemanha num camião TIR. Foi à procura de histórias?

Não sei exatamente aquilo que me levou a pedir boleia a um camionista. Queria uma aventura, descobrir novos sítios, pessoas e pôr-me à prova. Com 13 anos, foi uma viagem que me custou porque sair de casa e ver-me inserido noutro ambiente foi complicado. Depois d’O Meu Irmão, vi-me confrontado com a necessidade de escrever outro livro – para mim, ou seja, querer continuar a escrever – e, justamente por isso, lembrei-me da viagem e pensei que poderia ser a base para uma história. Nessa altura, doze anos depois da primeira viagem, já não me recordava de pormenores suficientes – até técnicos, de rotina da vida de um camionista de longas distâncias, por exemplo – e, assim, contactei uma empresa, expliquei o meu projeto e viajei com um camionista. 

O que fez com a informação recolhida?

Apontei tudo: as rotinas, as pessoas com as quais nos cruzámos, as conversas com o Leonel (camionista) e, a partir daí, comecei a escrever um romance. No entanto, trata-se de um romance sempre por acabar. Quando estou a escrevê-lo, aparece outro e “o TIR” fica para trás.

Mas vai explorar este tema?

Não sei porque já tenho outra ideia. Talvez “o TIR” seja o livro necessário para escrever outros.

Acha que se inspirou nessas viagens à Alemanha para percorrer a EN2?

De certa maneira, provaram-me que embora custe e seja um desafio, vale sempre a pena pormo-nos à prova. Mas até à semana anterior a fazer-me à Estrada Nacional 2, não sabia se conseguiria cumprir.

“O apelo físico juntou-se ao apelo analógico. Os corpos da minha geração têm partes digitais” pode ler-se no Leva-me Contigo. Habitualmente, não faz generalizações e não fala em nome de ninguém, porém, acha que a sua caminhada pode influenciar a sua geração? 

Vivemos cada vez mais agarrados a ecrãs e o mais habitual é vivermos através do telemóvel: isso tem qualidades como o acesso à informação – embora as pessoas estejam muito desinformadas – mas, muitas das vezes, a parte mais real da vida é negligenciada e achei que, nesta fase, era importante ligar-me a uma vertente mais natural. Assim, penso que é igualmente importante para pessoas da minha geração viverem experiências deste tipo. 

Quis fazer da estrada um holocausto. No fundo, o seu objetivo era fazer uma transição entre a juventude e a vida adulta?

Achei que esta seria a fase ideal da minha vida para uma espécie de ritual de passagem. E esse ritual, aos 29 anos, é muito tardio. Portanto, só pode ser encarado como uma coisa muito íntima e pessoal. Acontece que me pareceu que seria a única fase em que isto seria possível e, aí, holocausto é no sentido clássico do termo: um tributo e, com certeza, um sacrifício porque ninguém anda 24 dias a pé sem o considerar como tal. O objetivo era, através desse sacrifício, chegar a pessoas, paisagens e circunstâncias que eu intuía que existiriam. Entreguei um pouco de mim, ao caminhar, para chegar a novas pessoas, vidas e histórias e também fui pensando na minha vida.

Existe alguma situação que o tenha marcado de uma forma diferente ao longo do projeto?

Bem, há quatro situações que, para mim, são inesquecíveis. A primeira é a história dos iogurtes: tinha chegado a Vila Pouca de Aguiar, no primeiro dia, depois de 35km e já estava num estado mental alterado. Entrei num supermercado e queria comprar um pão ou alguma coisa que me ajudasse a fazer os 5km que faltavam para Parada de Aguiar, o sítio onde iria pernoitar. Nesse supermercado, encontrei uma caixa de seis iogurtes e queria levar um porque, para mim, que já tinha 14kg às costas na mochila, um pack seria demasiado. Dirigi-me à caixa e pedi para comprar um iogurte mas a funcionária explicou-me que não poderia vender-me um porque o pack era de seis. Desanimado, continuei a andar e, após 500m, uma senhora, num carro, parou e entregou-me um iogurte. Que me soube a banquete. E foi o alento para continuar a andar. Poucos minutos depois, outra senhora trouxe-me outro iogurte e isso foi absolutamente marcante. Na região de Góis, muitas pessoas ajudaram-me e lembro-me perfeitamente do João Reis Antão, que me acompanhou durante todo o dia, por iniciativa dele, que me filmou com um drone e, para além disso, eu estava a fazer 45km de montanha e mesmo assim, no fim do dia, ele não deixou de me acompanhar. Estava a andar na estrada, sozinho, desprotegido e, durante uma hora, ele pôs os quatro piscas e veio atrás de mim até à placa que assinalava a chegada a Pedrógão Grande. Os membros da família Vinagre, na zona de Brotas, foram uma espécie de anjos da guarda que pediam a familiares e amigos para verificarem se eu estava bem. São coisas que nunca poderia esperar e demonstram algo em que cada vez acredito mais: há mais bondade que maldade porque, senão, o tecido social desintegrava-se. E estes são exemplos concretos do entusiasmo de desconhecidos relativamente a um projeto que baseia-se simplesmente numa pessoa a andar a pé. 

Acredita que foi ajudado por ser o Afonso Reis Cabral ou por estar a levar a cabo uma experiência distinta?

Houve um pouco de tudo: desde pessoas que liam os relatos diários e sabiam que iria passar pela localidade onde viviam até àquelas que não faziam ideia de que sou escritor e que simplesmente viam uma pessoa a andar e ficavam à espera, ofereciam-me água, perguntavam se estava tudo bem.

Viveu alguma situação que considerasse pouco segura?

Temos um país muito pacífico. Andar a pé, numa estrada, não é uma coisa segura mas se pensarmos nas pessoas e nas localidades, nunca tive nenhum problema. Mas, imaginemos, no Alentejo, andar numa estrada por onde passam camiões a mais de 100km/h… não é propriamente seguro mas tentei desligar-me desse lado, caminhar pela berma e avançar. 

Que Portugal conheceu enquanto caminhava?

O abandono do interior é, de facto, um problema. No Alentejo, não há nada nem ninguém entre um ponto e outro. E o Centro ainda está muito marcado pelos incêndios. A minha viagem, paradoxalmente, permitiu-me conhecer muitas pessoas mas não muitas localidades: as pessoas que fazem a EN2 de mota, bicicleta ou autocaravana, conseguem visitar os locais mas eu estava de passagem e não conseguia desviar-me muito da estrada porque estava a pé. Tinha de fazer, em média, 30km por dia.

Ponderou a possibilidade de desistir?

Não. Houve vários momentos em que poderia ter desistido e em que me senti bastante sozinho, apesar de todas as ajudas e de todo o apoio. Em Santa Comba Dão, por exemplo, onde dormi uma das noites, estava desesperado porque tinha os tornozelos inchados e tive de ir ao centro de saúde. Só andei 12km, era muito pouco e senti-me desamparado. Mas durante o caminho propriamente dito, as coisas que descobria, o sentimento de sublimação por ver uma paisagem ou uma manada de cavalos a galopar numa herdade alentejana entre sobreiros, tudo isto enchia de tal forma o espírito que não me sentia desamparado. Outra coisa espetacular de se ver é uma montanha a aproximar-se: é uma experiência quase espiritual. Vi a Serra da Estrela aparecer e, desaparecer atrás de mim poucos dias depois. Parar à berma da estrada, comer uma sandes e beber um sumo e apreciar uma paisagem é extremamente recompensador.

Pensar em falhar mas ter em mente chegar a Faro acabou por ser motivador?

Antes de começar a viagem, estava convencido de que não conseguiria, de todo. A partir de determinado ponto, achava que fisicamente não seria possível mas apoiava-me no entusiasmo em redor da viagem, que era enorme, e nas pessoas que se comprometiam com a leitura dos textos.

Tinha medo de se desiludir ou aos leitores?

Queria concluir a viagem e, apesar da dificuldade física, as recompensas eram tão grandes – as coisas que via, sentia e as pessoas que encontrava – que, por um lado, queria continuar a ter isso mas também não desiludir quem me lia. A título de exemplo, se às 22h ou 23h não tinha publicado um texto, recebia mensagens privadas de pessoas que não conhecia a perguntarem-me se estava tudo bem. E isto, se por um lado motiva, por outro, também obriga a continuar.

As pessoas uniram-se pela sua causa.

O título do livro teve origem num episódio de um dos dias, porque a frase ‘leva-me contigo’ foi escrita por alguém mas também tem que ver com o espírito das pessoas que me pediam que as levasse. Muitas diziam “é como se estivesse aí contigo”. Senti-me obrigado a escrever durante os 24 dias, mais tarde ou mais cedo, justamente para levar as pessoas comigo e também julguei que podia ser enriquecedor, para mim, do ponto de vista literário. Por vezes, tenho dificuldades em escrever, dúvidas e sinto insuficiências e este desafio foi tanto físico como intelectual: chegar ao fim do dia e escrever um relato de uma página no telemóvel foi difícil mas, simultaneamente, despertava-me para mais coisas durante o dia.

Porque escolheu o Facebook como plataforma de eleição para partilhar os relatos?

Foi tudo muito natural. A única ideia que eu tinha era andar e, depois, as coisas foram crescendo. Escrevi um primeiro texto a explicar a viagem, a dizer que ia avisando onde estava e pediria ajuda e estadia. Escrevi uma primeira entrada de um diário que se tornou mais ou menos incontrolável. Para mim, o texto era a via natural e a imagem era muito gratificante porque as fotografias eram captadas em momentos-chave como a chegada ao rio Tejo ou ao quilómetro 500. Estava a gostar de fazer um balanço mas também queria que as pessoas viajassem comigo.

Que influência pensa ter exercido nos seus seguidores?

Simplesmente estou agradecido pelo apoio. Foi enriquecedor ter leitores empenhados e, apesar de estar sozinho na estrada, estive verdadeiramente acompanhado. Não me posso colocar na pele das outras pessoas mas sim dizer somente: obrigado.

Associam-no demasiado ao seu trisavô Eça de Queiroz?

Se existe essa comparação, é estúpida porque nenhum escritor do século XXI pode escrever como um do século XIX. Do ponto de vista familiar, é uma honra e algo que me alegra mas tento permanentemente fazer a distinção e a descolagem relativamente a Eça de Queiroz. Mas é mais ou menos impossível porque, a partir do momento em que essa informação se espalhou, há raros momentos em que essa referência não seja feita. Embora diga sempre que não há influências genéticas ou literárias, é um pouco fatal falar-se disso. Por outro lado, tenho verificado que, quando se debate os meus livros propriamente ditos, por exemplo em clubes de leitores, não é feita essa referência e isso alegra-me.

Qual é o seu próximo projeto?

Pensei em retomar o livro das viagens dos camionistas de longo curso mas tive outra ideia. Não me sinto à vontade para a partilhar. Isto é, ainda não está nada desenvolvido, tenho apenas umas luzes. Nas próximas semanas, terei de divulgar o Leva-me Contigo mas, mal tenha tempo, regressarei à rotina do escritório e à escrita. Só posso pedir mais um romance.