Conflitos de interesses e nossas cegueiras éticas


Uma das principais portas para a fraude e a corrupção são os conflitos de interesses – confrontos entre o interesse público e o privado, que implicam em prejuízos para o interesse coletivo ou para o desempenho da função pública.


Ao tentarmos compreender a fraude e a corrupção, uma pergunta simples vem à tona: como indivíduos de bons antecedentes, aparentemente probos e honestos, envolvem-se nesses atos? Com frequência lemos notícias e relatos de escândalos nos meios de comunicação, mas ainda discutimos muito pouco sobre os motivos que levam pessoas comuns a cometerem tais atos. Logo imaginamos que os indivíduos corruptos são seres “desvirtuados” ou “maçãs podres”.

A verdade é que, dificilmente nos tornamos grandes desonestos do dia para a noite. Na maioria das vezes, a corrupção entra através de pequenas frestas, de forma subtil para quem observa de fora –mas do mesmo modo pode ser difícil de perceber também para aqueles envolvidos. No entanto, há um potencial para essas ranhuras se abrirem e possibilitarem o cometimento de crimes mais graves e a incrível façanha de fazer propinas de milhões parecer algo normal.

Uma das principais portas para a fraude e a corrupção são os conflitos de interesses – confrontos entre o interesse público e o privado, que implicam em prejuízos para o interesse coletivo ou para o desempenho da função pública. Como exemplo, podemos citar casos de servidores públicos que prestam serviços a empresas com interesses em suas decisões, ou servidor com informação privilegiada sobre determinada obra de infraestrutura comprar um imóvel na região, antevendo sua valorização.

A maioria dos servidores públicos tem a noção de que não devem confundir seus interesses pessoais com os profissionais, ou de que as informações que possuem em razão de seus cargos não devem ser divulgadas ou utilizadas para proveitos pessoais. Ademais, muitos países possuem dispositivos que regulamentam situações de conflitos de interesses, explicitando as atividades vedadas para titulares de cargos públicos, assim como preveem procedimentos administrativos para punir os funcionários que se enquadrem nessas situações.

Mas por que continuamos a ver casos de conflitos de interesses nas notícias dos jornais com tanta frequência? Podemos considerar que as pessoas envolvidas sabem das consequências de seus atos? Será que as organizações públicas estão enfrentando o tema da melhor forma?

Para compreendermos melhor as causas dos conflitos de interesses e as possibilidades de como tratá-los, vale refletirmos como realmente nós, seres humanos, tomamos nossas decisões.

Costumamos assumir que tomamos decisões de forma plenamente racional, que somos imunes às tentações éticas e conseguimos antever situações de conflitos de interesses. É muito comum ouvirmos, ou até mesmo expressarmos, frases do tipo: “Isso nunca vai acontecer comigo”, “Sou honesto em qualquer situação” ou “Se eu estivesse nessa situação, agiria de forma correta”.

Estudos experimentais nos campos da psicologia social e da economia comportamental têm apresentado diversas evidências de que somos muito otimistas e irreais na forma de prevermos nosso próprio comportamento. Como seres humanos, possuímos uma racionalidade limitada e, muitas vezes, não reconhecemos as complexas nuances que envolvem aspectos éticos e morais de nossas decisões. Como a nossa racionalidade, nossa ética também é limitada, intuitiva e, muitas vezes, falível.

Essas pesquisas também demonstram que quase todos desejamos nos comportar de forma correta, cumprir as leis e manter uma autoimagem íntegra e honesta. Todavia, podemos agir de forma desonesta sem consciência plena, de forma a não percebermos as consequências de nossos atos. Dessa forma, somos capazes de nos envolver em situações de conflitos de interesses sem termos uma completa noção de que estamos cometendo um ato potencialmente desonesto.

Nossas referências morais podem ser mais elásticas do que imaginamos. A depender do contexto social, das pressões do grupo ou da nossa capacidade de racionalização, podemos "esquecer" momentaneamente de alguns de nossos padrões éticos e agirmos de maneira contrária às nossas convicções. A dimensão ética não está sempre visível aos tomadores de decisão –as “cegueiras” ou “pontos cegos” éticos, assim como situações que podem levar a conflitos de interesses, podem não ser tão evidentes a uma primeira vista.

Os treinamentos e as formas de prevenção tradicionais sobre conflitos de interesses na administração pública, ainda são bastante focados na premissa de que reconhecemos ou evitamos tais conflitos como decisões puramente racionais – quando na maioria das vezes não o são.

E como o poder público poderia avançar no tratamento dos conflitos de interesses? Cabe explicitarmos as situações de conflitos de forma mais clara para cada organização e buscarmos intervenções mais tempestivas e pontuais, ao contrário de treinamentos genéricos e distantes dos momentos decisórios mais importantes. Outro importante passo é as organizações buscarem compreender em maior profundidade como seus colaboradores realmente tomam suas decisões e como convertem essas decisões em práticas éticas. Ou seja, cientes de que mesmo as boas pessoas podem cometer atos de desonestidade, prescinde estarmos sempre atentos ao que os indivíduos fazem, como fazem e, principalmente, por que eles fazem. Somente através de uma abordagem que avance além das premissas da racionalidade podemos evoluir no tratamento dos conflitos de interesses, buscando um novo paradigma para a prevenção à fraude e à corrupção no século XXI.

Daniel Espínola


Conflitos de interesses e nossas cegueiras éticas


Uma das principais portas para a fraude e a corrupção são os conflitos de interesses - confrontos entre o interesse público e o privado, que implicam em prejuízos para o interesse coletivo ou para o desempenho da função pública.


Ao tentarmos compreender a fraude e a corrupção, uma pergunta simples vem à tona: como indivíduos de bons antecedentes, aparentemente probos e honestos, envolvem-se nesses atos? Com frequência lemos notícias e relatos de escândalos nos meios de comunicação, mas ainda discutimos muito pouco sobre os motivos que levam pessoas comuns a cometerem tais atos. Logo imaginamos que os indivíduos corruptos são seres “desvirtuados” ou “maçãs podres”.

A verdade é que, dificilmente nos tornamos grandes desonestos do dia para a noite. Na maioria das vezes, a corrupção entra através de pequenas frestas, de forma subtil para quem observa de fora –mas do mesmo modo pode ser difícil de perceber também para aqueles envolvidos. No entanto, há um potencial para essas ranhuras se abrirem e possibilitarem o cometimento de crimes mais graves e a incrível façanha de fazer propinas de milhões parecer algo normal.

Uma das principais portas para a fraude e a corrupção são os conflitos de interesses – confrontos entre o interesse público e o privado, que implicam em prejuízos para o interesse coletivo ou para o desempenho da função pública. Como exemplo, podemos citar casos de servidores públicos que prestam serviços a empresas com interesses em suas decisões, ou servidor com informação privilegiada sobre determinada obra de infraestrutura comprar um imóvel na região, antevendo sua valorização.

A maioria dos servidores públicos tem a noção de que não devem confundir seus interesses pessoais com os profissionais, ou de que as informações que possuem em razão de seus cargos não devem ser divulgadas ou utilizadas para proveitos pessoais. Ademais, muitos países possuem dispositivos que regulamentam situações de conflitos de interesses, explicitando as atividades vedadas para titulares de cargos públicos, assim como preveem procedimentos administrativos para punir os funcionários que se enquadrem nessas situações.

Mas por que continuamos a ver casos de conflitos de interesses nas notícias dos jornais com tanta frequência? Podemos considerar que as pessoas envolvidas sabem das consequências de seus atos? Será que as organizações públicas estão enfrentando o tema da melhor forma?

Para compreendermos melhor as causas dos conflitos de interesses e as possibilidades de como tratá-los, vale refletirmos como realmente nós, seres humanos, tomamos nossas decisões.

Costumamos assumir que tomamos decisões de forma plenamente racional, que somos imunes às tentações éticas e conseguimos antever situações de conflitos de interesses. É muito comum ouvirmos, ou até mesmo expressarmos, frases do tipo: “Isso nunca vai acontecer comigo”, “Sou honesto em qualquer situação” ou “Se eu estivesse nessa situação, agiria de forma correta”.

Estudos experimentais nos campos da psicologia social e da economia comportamental têm apresentado diversas evidências de que somos muito otimistas e irreais na forma de prevermos nosso próprio comportamento. Como seres humanos, possuímos uma racionalidade limitada e, muitas vezes, não reconhecemos as complexas nuances que envolvem aspectos éticos e morais de nossas decisões. Como a nossa racionalidade, nossa ética também é limitada, intuitiva e, muitas vezes, falível.

Essas pesquisas também demonstram que quase todos desejamos nos comportar de forma correta, cumprir as leis e manter uma autoimagem íntegra e honesta. Todavia, podemos agir de forma desonesta sem consciência plena, de forma a não percebermos as consequências de nossos atos. Dessa forma, somos capazes de nos envolver em situações de conflitos de interesses sem termos uma completa noção de que estamos cometendo um ato potencialmente desonesto.

Nossas referências morais podem ser mais elásticas do que imaginamos. A depender do contexto social, das pressões do grupo ou da nossa capacidade de racionalização, podemos "esquecer" momentaneamente de alguns de nossos padrões éticos e agirmos de maneira contrária às nossas convicções. A dimensão ética não está sempre visível aos tomadores de decisão –as “cegueiras” ou “pontos cegos” éticos, assim como situações que podem levar a conflitos de interesses, podem não ser tão evidentes a uma primeira vista.

Os treinamentos e as formas de prevenção tradicionais sobre conflitos de interesses na administração pública, ainda são bastante focados na premissa de que reconhecemos ou evitamos tais conflitos como decisões puramente racionais – quando na maioria das vezes não o são.

E como o poder público poderia avançar no tratamento dos conflitos de interesses? Cabe explicitarmos as situações de conflitos de forma mais clara para cada organização e buscarmos intervenções mais tempestivas e pontuais, ao contrário de treinamentos genéricos e distantes dos momentos decisórios mais importantes. Outro importante passo é as organizações buscarem compreender em maior profundidade como seus colaboradores realmente tomam suas decisões e como convertem essas decisões em práticas éticas. Ou seja, cientes de que mesmo as boas pessoas podem cometer atos de desonestidade, prescinde estarmos sempre atentos ao que os indivíduos fazem, como fazem e, principalmente, por que eles fazem. Somente através de uma abordagem que avance além das premissas da racionalidade podemos evoluir no tratamento dos conflitos de interesses, buscando um novo paradigma para a prevenção à fraude e à corrupção no século XXI.

Daniel Espínola