Até aqui adormecido no elenco das infrações antieconómicas e contra a saúde pública, eis que desperta nas bocas do mundo a referência a uma prática do comportamento humano, manifestado em especial em situações de crise – o açambarcamento. A propósito da greve dos motoristas de matérias perigosas, voltámos a ouvir falar da possibilidade de se verificarem excessos ante a escassez e a eventual consequente carestia, seja de combustível, géneros alimentares ou outros bens essenciais ou de primeira necessidade.
Se do ponto de vista conceptual podemos classificar este ato como de egoísmo puro e manifesta falta de civilidade ou até selvajaria, saiba que caso adote esta conduta pode ser acusado do cometimento de um crime. O contexto político-social geral sempre influenciou o recorte deste tipo de infrações criminais. Tal é característico do denominado direito penal económico, cujo cerne eleva os bens jurídicos protegidos a uma índole supra-individual.
Em 1939, vivia Portugal o regime económico protecionista, intervencionista e corporativista do Estado Novo e as consequências ainda que indiretas da deflagração da II Guerra Mundial, e já os produtores e comerciantes podiam ser punidos por ocultar existências de produtos ou mercadorias ou recusar a sua venda, segundo os usos normais e a preços correntes. Cerca de um mês depois do 25 de abril, em legislação de contingência e de correção dos desequilíbrios económicos verificados, a pena pela prática do ilícito de açambarcamento foi elevada à possibilidade de prisão maior de dois a oito anos.
Nas vésperas da adesão de Portugal à CEE, com a publicação do Decreto-Lei n.º 28/84 de 20 de janeiro, o crime de açambarcamento passa a visar, numa aproximação às legislações europeias que já o concretizavam, os próprios consumidores.
É, portanto, no artigo 29º daquele diploma que o cidadão comum pode, ao praticar o crime sob a epígrafe “Açambarcamento do adquirente”, ser punido com pena de prisão até seis meses ou ver ser-lhe aplicada uma multa de 50 a 100 dias. Por outro lado, no caso dos combustíveis, incorrerá ainda em procedimento contraordenacional pelo seu transporte imprudente ou a sua armazenagem em local inapropriado, como especificado em legislação mais recente.
Já no que concerne aos casos de recusa de venda, em situação de notória escassez ou com prejuízo do abastecimento regular do mercado, pode o crime tipificado no artigo 28º (“açambarcamento”) ser afastado, entre outras circunstâncias, se o ato for praticado para garantir a justa repartição dos bens entre a clientela, o que numa situação de condicionamento de venda de combustíveis conforme decretado pelo Governo, logo, de relativa instabilidade económica, releva.
Este tipo de crime tem natureza pública, pelo que a detenção em flagrante delito, pelas autoridades competentes, é possível. Mas para que as medidas legais e adequadas sejam prontamente encetadas, necessário se torna que a polícia com competência específica para a fiscalização e repressão destes ilícitos tenha antecipado a probabilidade da sua ocorrência, organizando-se internamente em conformidade. Mas sobre isso, ainda nem uma palavra.