No princípio era o erro (como uma medieval “cantiga de amigo”)


O silêncio não pode ser a resposta a uma frase tão errada quanto “no amor não se cobra”. De um lado, dizer-se isso e, do outro, silenciar-se são dois grandes erros, potencial e provavelmente fatais.


“Não gosto que me cobrem, no amor não se cobra”. Disse um, e não teve resposta, a outra metade de cabeça e coração ficou apenas a matutar, em silêncio, o princípio de muitos – dias, meses, anos de silêncios. Dois erros: um, achar que no amor não se cobra; outro, tão ou mais grave do que aquele, não responder, não contestar, não dizer logo que não, não cortar cerce. E, depois disso, não cobrar. No amor cobra-se; sim, cobra-se, é imperioso. Tem de se cobrar no sentido de ser, de pedir, afirmar o que se quer e procura, reivindicar aquilo de que se precisa, gritar (tranquila mas afirmativamente) como se é, e como se espera que seja o “nós” – mesmo que depois, pouco a pouco (e a cada par e a cada um sua velocidade), se ceda, se construam equilíbrios, se procure, se erre, se tente, se falhe, se avance e se recue, se prescinda, se escave, se mude, se troque isto por aquilo. Et cetera. Mas achar que se não cobra, ou calar em face dessa afirmação ou dessa convicção, isso não. Isso conduz ao equívoco, ao ressentimento, à frustração, à anulação; e, quanto mais, mais ainda, acumulação, camadas e camadas, uma inexorável e esmagadora bola de neve ou de fogo. O que acaba em intransponível desencontro. Fatalmente, embora a fatalidade da gestão de cada desencontro seja uma ciência (ou falta dela) de cada par. Mas talvez não seja fatal, e não seja necessário, que à deceção se siga sempre a mentira e/ou o desgosto – como diriam alguns poetas, ditos “malditos”. Não.

Por exemplo, à paixão segue-se sempre a deceção, é mesmo assim, inevitável, porque a paixão é um estado de encantamento, de meias verdades, de ilusão, de esperança, de caminhar um palmo acima do chão. Mas, depois disso, o que vem é, em grande parte, o que cada par sabe ou consegue construir, e não tem de ser a mentira e/ou o desgosto, por muito que cada um encerre no mais fundo de si sempre uma parte que é só sua, íntima, não partilhável e, muitas vezes, também não gostosa. E também é verdade que, como bem e desapiedadamente escreve Leonardo Padura, no seu recente A Transparência do Tempo, há que reconhecer um amor “salpicado de pinceladas de ódio, como todo o amor que vale a pena”. Mas, no mais, tudo depende de não cometer os dois erros do princípio: achar que se não cobra, e calar. O silêncio é preciso, o silêncio é, no amor como na vida, tão importante quanto as palavras, e há que saber usá-lo. Usá-lo com a mesma sabedoria com que se usa o carinho ou a rispidez, a ação ou o sossego, o desejo ou a frieza, o afastamento ou a intimidade, a hipotonia ou a tensão, a ironia ou a desarmante sinceridade, a fraqueza ou a força, o riso ou o choro. Sim, tudo isso, tudo isso é a vida, tudo isso é o afeto, e o amor. Mas o silêncio não pode ser a resposta a uma frase tão errada quanto “no amor não se cobra”. De um lado, dizer-se isso e, do outro, silenciar-se, são dois grandes erros. Dois erros potencial e provavelmente fatais. Como diria Cruzeiro Seixas, sábia e poeticamente, o amor são sempre dois erros frente a frente. Mas – descontando a incontornável verdade e a beleza áurea da imagem poética – não tem de ser total e exatamente assim. Basta não cometer o primeiro erro, ou pelo menos não cometer o segundo. O de calar. Este pode ser a barragem contra o Pacífico, o antídoto do veneno, a salvação, talvez. Mas, para isso, é preciso já saber, ter aprendido e ter coragem. Muita. Porque a soma de dois erros destes acaba, mais tarde ou mais cedo, por dar zero.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira


No princípio era o erro (como uma medieval “cantiga de amigo”)


O silêncio não pode ser a resposta a uma frase tão errada quanto “no amor não se cobra”. De um lado, dizer-se isso e, do outro, silenciar-se são dois grandes erros, potencial e provavelmente fatais.


“Não gosto que me cobrem, no amor não se cobra”. Disse um, e não teve resposta, a outra metade de cabeça e coração ficou apenas a matutar, em silêncio, o princípio de muitos – dias, meses, anos de silêncios. Dois erros: um, achar que no amor não se cobra; outro, tão ou mais grave do que aquele, não responder, não contestar, não dizer logo que não, não cortar cerce. E, depois disso, não cobrar. No amor cobra-se; sim, cobra-se, é imperioso. Tem de se cobrar no sentido de ser, de pedir, afirmar o que se quer e procura, reivindicar aquilo de que se precisa, gritar (tranquila mas afirmativamente) como se é, e como se espera que seja o “nós” – mesmo que depois, pouco a pouco (e a cada par e a cada um sua velocidade), se ceda, se construam equilíbrios, se procure, se erre, se tente, se falhe, se avance e se recue, se prescinda, se escave, se mude, se troque isto por aquilo. Et cetera. Mas achar que se não cobra, ou calar em face dessa afirmação ou dessa convicção, isso não. Isso conduz ao equívoco, ao ressentimento, à frustração, à anulação; e, quanto mais, mais ainda, acumulação, camadas e camadas, uma inexorável e esmagadora bola de neve ou de fogo. O que acaba em intransponível desencontro. Fatalmente, embora a fatalidade da gestão de cada desencontro seja uma ciência (ou falta dela) de cada par. Mas talvez não seja fatal, e não seja necessário, que à deceção se siga sempre a mentira e/ou o desgosto – como diriam alguns poetas, ditos “malditos”. Não.

Por exemplo, à paixão segue-se sempre a deceção, é mesmo assim, inevitável, porque a paixão é um estado de encantamento, de meias verdades, de ilusão, de esperança, de caminhar um palmo acima do chão. Mas, depois disso, o que vem é, em grande parte, o que cada par sabe ou consegue construir, e não tem de ser a mentira e/ou o desgosto, por muito que cada um encerre no mais fundo de si sempre uma parte que é só sua, íntima, não partilhável e, muitas vezes, também não gostosa. E também é verdade que, como bem e desapiedadamente escreve Leonardo Padura, no seu recente A Transparência do Tempo, há que reconhecer um amor “salpicado de pinceladas de ódio, como todo o amor que vale a pena”. Mas, no mais, tudo depende de não cometer os dois erros do princípio: achar que se não cobra, e calar. O silêncio é preciso, o silêncio é, no amor como na vida, tão importante quanto as palavras, e há que saber usá-lo. Usá-lo com a mesma sabedoria com que se usa o carinho ou a rispidez, a ação ou o sossego, o desejo ou a frieza, o afastamento ou a intimidade, a hipotonia ou a tensão, a ironia ou a desarmante sinceridade, a fraqueza ou a força, o riso ou o choro. Sim, tudo isso, tudo isso é a vida, tudo isso é o afeto, e o amor. Mas o silêncio não pode ser a resposta a uma frase tão errada quanto “no amor não se cobra”. De um lado, dizer-se isso e, do outro, silenciar-se, são dois grandes erros. Dois erros potencial e provavelmente fatais. Como diria Cruzeiro Seixas, sábia e poeticamente, o amor são sempre dois erros frente a frente. Mas – descontando a incontornável verdade e a beleza áurea da imagem poética – não tem de ser total e exatamente assim. Basta não cometer o primeiro erro, ou pelo menos não cometer o segundo. O de calar. Este pode ser a barragem contra o Pacífico, o antídoto do veneno, a salvação, talvez. Mas, para isso, é preciso já saber, ter aprendido e ter coragem. Muita. Porque a soma de dois erros destes acaba, mais tarde ou mais cedo, por dar zero.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira