Galopim de Carvalho. “A escola está a amestrar crianças para passarem nos exames”

Galopim de Carvalho. “A escola está a amestrar crianças para passarem nos exames”


Aos 87 anos, Galopim de Carvalho fala da paixão pelas rochas e pelo ensino e da batalha que lhe valeu a alcunha de avô dos dinossauros. As pegadas de Carenque que o país ajudou a salvar estão ao abandono. 


Primeiro foi “pai” dos dinossauros, depois passaram a chamar-lhe avô. Galopim de Carvalho sorri à alcunha e à passagem do tempo, que não o atormenta. Não foi ele quem descobriu o trilho com 132 metros numa pedreira desativada de Carenque, mas dois alunos, Carlos Coke e Paulo Branquinho. Tornaram-se uma causa: bateu-se – bateram-se – para que a construção da CREL, que viria a ser inaugurada em 1995, não arrasasse essa porta aberta para o passado. Em abril juntou-se a um cordão humano contra o estado de abandono a que foram votadas as pegadas que o país ajudou a salvar. Aos 87 anos, não esconde que é dos sonhos que mais gostava de ver concretizados: poder ver nascer ali um espaço de interpretação, o museu que nunca saiu do papel. Curioso desde pequeno, na escola aprendeu sobretudo que tipo de professor não queria ser. Hoje vê desalento e frustração numa classe maltratada e currículos estereotipados que anulam o gosto por saber e ensinar. Recebe-nos na sua casa na Lapa, em Lisboa, rodeado de livros, gravuras, pedras, dinossauros e outros bichos de antigamente, ao lado da mulher, Isabel, com quem começou a namorar no Liceu de Évora. São 62 anos de casamento e o essencial é fazer todos os dias o balanço, diz. Nunca foi de dormir muito. Hoje deita-se cedo e acorda pelas quatro da manhã. Dedica-se à escrita, livros, blogues, aos seus seguidores no Facebook. É de contar histórias que gosta – são a melhor forma de aprender.

A história de Galopim de Carvalho começa em Évora. Nasce em 1931. Era um país muito diferente?

Muito. Vou publicar um livro que se chama Évora, Anos 30 e 40, deve sair no próximo ano. Mostra bem o que era a vida. Lembro-me perfeitamente da Guerra Civil de Espanha. Havia uma estrutura no tempo do Estado Novo que era a Legião Portuguesa. Combateram em Espanha ao lado do Franco. Fomos vê-los chegar, vieram a pé de Badajoz. Tinha oito anos quando a guerra acabou. Foram tempos terríveis. Morreram muitos, outros foram fuzilados. Os anarquistas e comunistas portugueses iam combater ao lado dos republicanos, os fascistas e falangistas estavam ao lado de Franco. Quando os republicanos perderam, muitos foram fuzilados em Badajoz. Marcou-nos muito.

O que o leva a escrever esse livro tantos anos depois?

Tinha muitos elementos, muitos testemunhos, muitas vivências. No tempo da ii Guerra Mundial vivemos o racionamento. Tínhamos senhas para comprar arroz, açúcar, manteiga. Só não era racionado o feijão, a batata, o que era produzido nas aldeias. 

Havia fome?

Não houve, mas havia filas enormes. Os alentejanos iam buscar muitos produtos do campo, havia esse engenho.

Era melhor do que na cidade.

Sim, sempre. As populações do campo suportaram sempre melhor as crises do que a cidade. Tinham as hortas, tinham as galinhas, tinham um porco.

Que ambições tinha um rapaz que nascia em Évora nesse tempo?

Em criança queria ser carpinteiro.

Chegou a ser aprendiz de carpinteiro e de sapateiro.

Aprendi, a brincar, esse e outros ofícios. No tempo da guerra dava ajuda numa marcenaria, o que valeu um bocado à minha família nessa questão do racionamento, havia sempre um bocado de açúcar.

Ao mesmo tempo andava na escola?

Só entrei para a escola na terceira classe. Era muito pequenino e a minha mãe dizia que eu era muito frágil. Na escola batia-se muito nas crianças, eram autênticos criminosos. Alguns professores desse tempo, hoje, seriam condenados. A minha mãe não me deixa logo ir, mas ainda fui a tempo de apanhar muitas reguadas.

Os seus pais tinham estudado?

O meu pai tinha feito o quinto ano do liceu, e a minha mãe a quarta classe. Era costureira. O meu pai era empregado de escritório.

Não gostou desses tempos de escola: disse uma vez que foi uma prisão.

Não gostei por isso, porque as crianças eram maltratadas na escola. Não era por nos portarmos mal, era por errar, por não saber resolver um problema, por não saber a tabuada. Mais de três erros num ditado era uma reguada. Se tivesse nove erros, eram seis reguadas.

Fazia com que tivessem ódio à escola?

Ódio autêntico. Quando acabei a quarta classe nunca mais falei ao meu professor. Se ia numa rua, passava para o outro lado. Nunca mais o cumprimentei. Uma criança de dez ou 11 anos, para tomar esta atitude, é porque está profundamente magoada. Depois entro para o liceu e já não havia reguadas, já havia outro tratamento. Mas aí só gostei das disciplinas quando gostei dos professores. Quando não gostava, a minha reação era não estudar. Fui bom aluno numas disciplinas e medíocre noutras por causa dos professores. Os bons professores fizeram de mim pessoa interessada nas matérias, os maus professores desinteressaram-me.

Imaginava já que seria um dia mais tarde professor?

De maneira nenhuma. Quando fiz o quinto ano do liceu tive um professor de Ciências que era aqui de Lisboa, do Liceu Gil Vicente. Foi substituir um professor que esteve o ano todo de baixa médica. Pegou nuns caixotes cheios de pedras que havia na escola e foi aí que começou tudo. Na altura havia muitas minas em Portugal, mais de cem. Tirava-se um ou dois quilos de volfrâmio e vendia-se. Era um artesanato mineiro. Havia poucos liceus, um liceu por distrito; por isso as escolas estavam cheias de material que as minas davam. Tínhamos caixotes e caixotes cheios de pedras.

Por abrir?

Sim. Esse professor chega e começa a desembrulhar essas pedras, algumas em jornais antigos, com mais de 50 anos. Nós lavávamos as pedras debaixo da torneira com uma escova e ele identificava-as: isto é granito, isto é basalto, uma pirite. Fazíamos as etiquetas com uma letra muito bonita. Foi uma experiência maravilhosa. Descobri o prazer de ver o resultado de uma obra, ao mesmo tempo que aprendi. Marcou-me. Quando fiz o sétimo ano quis ir para Geologia. Estávamos no ano de 1950. Ninguém sabia o que era.

Os seus pais não sabiam?

Não, queriam que eu fosse para Biologia, para ser professor de liceu. Ser geólogo era insignificante. E foi o que eu fiz: vim para Lisboa fazer Biologia. Chumbei no primeiro ano, chumbei no segundo, e depois a tropa chamou-me e acabou-se. Vou para Évora, passo dois ou três anos lá, com um bom ordenado, com a namorada que já era a minha mulher, estava nas minhas sete quintas. Estive três anos assim.

Não foi para a guerra.

Felizmente, não fui. No meu ano houve incorporações para a Índia, eu era aspirante e só podiam ir alferes. Quando acabei a tropa, volto para Lisboa. Com o meu dinheiro matriculei-me então na licenciatura que eu queria, Geologia, e aí foi um sucesso.

Porque gostava mais dessa natureza morta?

Nunca simpatizei com a biologia. Tinha vocação para as pedras, para os minerais, para os fósseis, para as rochas. A biologia, aqueles bichos, insetos, lagartixas… Naquela altura, a biologia era muito naturalista; hoje mete bioquímica, muito protão, eletrão, proteína. Naquele tempo eram os lagartos.

Não se via tão bem como funcionava.

Sim, eram os zoólogos e os botânicos. Mas foi assim que me lancei na geologia, com empenho. E entretanto casei.

Conheceu onde a Isabel?

Éramos colegas de liceu. Fiz o curso com tão boas classificações que, quando terminei, convidaram-me a ficar como assistente. Acabei em julho e em outubro comecei a trabalhar.

E os pais babados…

Com certeza. Ser professor era uma coisa importante. Naquela altura, mesmo o professor de liceu ou o professor primário eram uma entidade de grande prestígio na cidade. 

Pela experiência que tinha tido em aluno, sentiu logo que tinha de ser um professor diferente?

Sim, já ia corrigido, já sabia o que não devia ser um professor. E depois fui afinando.

O que se revelou mais importante?

O afeto, dar autoestima ao aluno, mesmo aos alunos mais desinteressados. Há sempre um aluno mais desinteressado. Temos de criar situações que os levem a tirar uma conclusão inteligente para que os possamos elogiar em frente aos colegas. Ainda hoje tenho rapazes de 70 anos que me beijam. O afeto na relação professor-aluno é fundamental. Se houver uma relação de afeto, o aluno vai para a escola com prazer. Aquele professor distante, austero… Tive um professor de Francês que abria a caderneta dos alunos. Nós éramos numerados e íamos contando à medida que ele ia virando as páginas. Eu era o nove. Quando via “sete, oito”, começava a engolir em seco; quando passava, suspirava. Mas ele chegava ao fim e voltava ao princípio. Era sádico. Um professor assim não conquista um aluno. No liceu não sofri tanto, mas na escola primária ia muitas vezes no caminho com dores de barriga, com medo.

Sente que a escola melhorou?

Melhorou em muitos aspetos. Tenho ido a muitas escolas, todas as semanas vou, do Minho ao Algarve. Hoje, o único problema é que têm de me vir buscar, já não me meto em comboios e táxis. Hoje, nas escolas, domina a professora: 80% são mulheres. E os homens estão imbuídos naquele espírito. Há afeto, há família. Mas os professores, hoje, estão muito maltratados. Tiraram-lhes o prestígio, a dignidade, atentou-se contra a disciplina com uma liberdade excessiva nas escolas. Confundiu-se liberdade com um liberalismo, fez-se da disciplina fascista, e em 45 anos não melhorámos. Melhorámos muito nas estatísticas do ensino. Democratizámos o ensino, todas as crianças vão à escola, tiram o 12.o ano. Mas, no meio disto tudo, os programas são maus e os livros também.

Porquê?

Trabalham para as estatísticas, não trabalham para a formação de cidadãos. Os manuais do ensino, estereotipados, copiam-se de uns anos para os outros, são um negócio das editoras. O professor não tem tempo para divagar, tem de cumprir e pronto. Não está a ensinar, está a amestrar as crianças para responderem bem num exame e poderem passar.

Vê com mágoa esse ambiente.

Muita, tenho discutido muito sobre isso com os professores.

Apaixonou-se pelo ensino da geologia muito anos antes de lhe aparecerem pela frente os dinossauros. 

Hoje, a geração de professores foram todos meus alunos. E já são rapazes e raparigas nos 60, 70 anos. Alguns já se jubilaram. Na Universidade dos Açores tenho um que já se jubilou.

Sente-se velho quando lhe chegam essas notícias?

Um bocadinho, termos um aluno com 74 anos…

Doutorou-se na Universidade de Sorbonne em 1964. Como foi a viagem para Paris?

Como tinha boas classificações consegui uma bolsa de estudo. Isto era uma história que nunca mais acabava. Mas ao início ia para fazer o doutoramento em Paleontologia. 

Então já havia um interesse em dinossauros?

Não, a minha entrada no mundo dos dinossauros é só com a batalha de Carenque. Tinha ido para estudar uns bichinhos que estão ali desenhados, briozoários. Têm 11 a 20 milhões de anos. Permitem perceber como era Portugal nessa altura. Ia ficar um ano em Paris e, quando já estava quase para me vir embora, a Shell, vendo a panóplia de portugueses que estavam espalhados pela Europa, foi ver quem estava a estudar uma área que lhes interessasse e entraram em contacto comigo para ver se eu quereria prolongar a bolsa. Acabei por fazer o doutoramento em Sedimentologia e esqueci-me da paleontologia. Quando regresso, como tinha ficado com o doutoramento cá em aberto, cinco anos mais tarde doutorei-me em Geologia pela Universidade de Lisboa. E fiz assim a minha carreira de professor. Em 2001 puseram-me na rua, quando fiz 70 anos.

Custou-lhe?

Custou-me um bocado porque queria continuar a trabalhar. Era diretor do Museu Nacional de História Natural. Ainda fiquei dois anos depois de jubilado na direção do museu. Mas, depois, o Conselho de Ministros não autorizou mais. Entenderam que já era muito velho e que tinha de dar lugar aos novos. Custa. Fiquei na prateleira. Tinha secretárias e fui aprender a mexer no computador. Não fiquei parado. Da jubilação para cá já publiquei 20 livros.

Das histórias todas que as rochas contam, qual a fascina mais?

São tantas. A serra de Sintra é muito interessante. É uma espécie de um furúnculo. Temos os sedimentos recentes. Recentes… [risos] Sedimentos de há 200 milhões de anos. Formam, no caso da serra de Sintra, talvez 3 mil metros. Mas por baixo tem 35 quilómetros de crosta, rochas. E por baixo desses 35 quilómetros, aqui há uns 80 milhões de anos, aproximadamente, vindo lá do interior da Terra, do núcleo quente, uma espécie de bolha de calor bate na base desses 35 quilómetros e começa a derreter essas rochas. Vai derretendo e vai subindo, e a serra de Sintra nasce. Por baixo está o granito, a rocha derretida que solidificou. Com o tempo, a erosão desgasta. No meio da serra, hoje, vê-se o granito; dos lados, o calcário.

Mas, entretanto, a serra está parada ou não?

Está temporariamente parada – temporariamente, em termos geológicos. A serra foi empurrada de sul para norte. A geologia que tem sido ou que era ensinada nas escolas não conta muito estas histórias. Aprende-se que o granito é quartzo, o feldspato, a mica – isto não diz nada a ninguém. Quando se ensina a geologia desta forma, as pessoas querem saber mais. Olhe esta experiência que já tenho feito nas escolas. O calcário forma-se no mar com base no cálcio que está na água, levado para o mar pelos rios, que dissolvem as rochas. O cálcio do mar com o dióxido de carbono da atmosfera faz o calcário das conchas, dos corais. É feito pelos organismos vivos com base no cálcio do mar e no ar da atmosfera.

Todo o calcário resultou de vida?

Isso, e aprisiona o ar do passado. Se pusermos o calcário em água com ácido, começa a efervescência e liberta o dióxido de carbono. Vê, nesta fotografia? O rapaz põe a cara por cima para receber as bolinhas de ar do tempo dos dinossauros.

Nunca lhe disseram: “Está a simplificar”. Aquela ideia de que a ciência é para entendidos?

Os medíocres é que fazem da ciência um bicho-de-sete-cabeças. É simples desde que seja bem explicada. Consigo ser rigoroso sem fugir aos conceitos. Claro que chegamos aqui a uma altura em que já não sei dizer muito sobre o que é um eletrão e por aí fora. 

No tempo dos dinossauros, como era o território onde é hoje Portugal?

No Jurássico estávamos numa latitude mais baixa, no paralelo 30, tínhamos um tempo quente e húmido como nas Caraíbas.

Era por isso que havia cá muitos?

Havia muito alimento, muita vegetação. Também os houve noutras zonas mais frias, mas a grande população, como os que temos cá, estavam numa latitude mais baixa.

Porque têm sido descobertos tantos fósseis na zona da Lourinhã?

Os terrenos eram um delta, como o delta do Mekong ou o delta do Ganges, zonas de aluviões com muita argila, muito barro, onde os animais facilmente morrem e ficam ali. Também os havia no Alentejo ou em Trás-os-Montes, mas não ficaram tapados no barro e desapareceram os ossos. O que estavam nos deltas, em zonas baixas, ficavam afundados naquelas inundações e ficavam assim preservados, ao abrigo do oxigénio. Hoje escavamos e encontramo-los.

Quando começou a trabalhar nesta área já se sabia que havia fósseis de dinossauros em Portugal?

Há muitos anos, agora é que houve um boom, mas há trabalhos desde o final do séc. XIX. A pouco e pouco foi-se descobrindo. E a certa altura há um grupo de curiosos da Lourinhã que começa a descobrir muita coisa. O Horácio Mateus, a Isabel, os pais do Otávio Mateus e do Simão. E aí, de facto, percebe-se que a Lourinhã é um ninho de dinossauros.

Tem-se dado o valor suficiente a isso?

Não. Os políticos estão sempre mais interessados nas eleições, no que dá votos. A geologia não dá votos, tem sido um bocado um parente pobre. E se hoje os dinossauros não morrem é porque há um conjunto de jovens que não os deixa morrer. Muitas das investigações são feitas à custa deles ou de diligências feitas junto das autarquias. Neste momento não há projetos de investigação sobre dinossauros pagos pelo Ministério da Ciência.

Antes de continuarmos nos dinossauros, outras riquezas como petróleo, há ou não? 

Petróleo, há; se há petróleo em quantidade comercializável, não sabemos. Já no século passado traziam petróleo cá para cima, em 1940, frascos de petróleo tirados ali na zona de Torres Vedras. Mas foram sempre quantidades que não dava para explorar. Mas ainda bem que não: um país com petróleo é um país com fome. 

Como vê o interesse crescente no lítio?

Parece-me importante. Há uns fundamentalismos contra o lítio, quanto a mim, inexplicáveis. Que eu saiba, o lítio não provoca problemas de poluição para a saúde. Explorar lítio, granito ou calcário é a mesma coisa. Explorar petróleo já é diferente. O potencial do lítio é enorme nesta era que se adivinha, dos automóveis movimentados a eletricidade. O lítio é o metal mais utilizado na fabricação das pilhas. São pilhas porque são umas placazinhas umas em cima das outras e há uns processos de transferência de energia que geram a eletricidade. Essas placas são de lítio. Não há muitos países com tanto lítio como nós.

Porque é que o temos?

Aconteceu assim, pela forma como a terra evoluiu. Houve zonas em que se concentrou mais lítio, outras mais cobre, mais volfrâmio… Nós temos muito granito e bom. Muito mármore. Temos o sienito no Algarve. Temos a pirite e minerais de cobre na Neves-Corvo mas, estupidamente, vendemos as minas aos canadianos. Estão a dar lucro e o dinheiro está a ir todo para o Canadá. E agora acho que estão a fazer a mesma asneira: estão a vender a exploração de lítio a uma empresa qualquer.

Falou da eletrificação. A preocupação em torno das alterações climáticas, imagino que não fizesse parte da equação quando começou a trabalhar.

Não. Começou a ter-se a perceção do risco, de quanto a temperatura pode aumentar até ao final do século. Também não se falava no plástico e hoje sabemos o impacto que tem a poluição. A gente pensava que a Terra era uma coisa imensa.

Eram mais otimistas.

Sim. Até porque hoje conseguimos ver a Terra; quando comecei a estudar, era algo inabarcável. Não pensámos num planeta finito e, hoje, tudo isto se vê. Não só se vê mas sente-se. A oriente dos Açores nota-se a poluição europeia, a ocidente a poluição americana, vê-se isso no lixo que se apanha no mar, nas embalagens, nos metais pesados.

Indo então aos tempos em que se tornou primeiro pai, depois avô dos dinossauros: que descoberta foi essa que o tornou conhecido do país e o fez desdobrar-se em intervenções, idas a escolas?

Aconteceu quando, em 1986, dois alunos meus andavam ali em Carenque no fundo de uma pedreira. As pedreiras são locais ideais para os geólogos porque as rochas estão à vista, não há tantas árvores, ervas. Descobriram o primeiro trilho de pegadas de dinossauros do país. Eu era diretor do museu e encabecei a luta para salvar essa jazida. Ia-se construir a CREL, ia passar por cima. Foi uma luta tremenda, mas conseguimos.

Há muitos trilhos desses?

O de Carenque é importante porque é o maior trilho dos dinossauros mais modernos. O da serra de Aire é o mais antigo dos saurópodes. Pensava-se que os saurópodes tinham aparecido há 150 milhões de anos e vamos encontrá-los lá há 175 milhões, 25 milhões de anos antes.

Em Carenque, que dinossauros eram?

Só sabemos que era um bípede. As pegadas têm 60 a 70 centímetros de diâmetro. A pedreira foi aberta para explorar a pedra;, quando chegaram àquela camada, já não interessava e pararam os trabalhos. Foi essa a sorte. Os rapazes viram uma pegada e deram com o trilho. Estava sujo, tinha erva, limpou-se tudo. Hoje está tudo tapado, ao abandono.

Percebeu logo que ia ser uma grande batalha?

Foi muito difícil. Cavaco era intransigente, não queria de maneira nenhuma abrir os cordões à bolsa para se abrirem os túneis por baixo da pedreira e preservar os trilhos. Mas acabaram por ser feitos.

O que foi determinante?

Conseguimos pôr o país inteiro a favor das pegadas, foi isso.

Chegou a haver ameaças?

Isso não. Houve atitudes menos corretas de alguns ministros, mas outros foram muito favoráveis. A Teresa Patrício Gouveia [ministra do Ambiente e Recursos Naturais] ajudou muito, o Ferreira do Amaral, que era ministro das Obras Públicas, também. Mas levei muita pancada do Miguel Sousa Tavares, dizia que eu estava a gastar o dinheiro dos contribuintes para fazer uma coisa que não tem interesse nenhum, só para ensinar as criancinhas. Sabe muito, é um homem inteligente, mas é desagradável.

Voltaram a fazer um cordão humano este ano para salvar as pegadas, uma iniciativa de alunos da Escola Básica Professor Galopim de Carvalho. Sente o quê? Desilusão?

A CREL foi inaugurada em 1995, salvaram-se as pegadas, foram limpas, pôs-se uma tela por cima e, passados estes anos todos, aquilo está tudo ao abandono. O arquiteto que desenhou o túnel fez de um lado uma cabeça, o dinossauro visto de frente, e na outra o dinossauro visto de trás. A maior parte das pessoas nem repara nisso. Na Alemanha visitei um parque com meia dúzia de pegadas que não têm o interesse destas e fizeram uma estrutura imensa, parecida agora com que o se fez na Lourinhã. Mas nem esse parque foi uma iniciativa dos Governos, foi uma iniciativa do Otávio Mateus. Não está ali dinheiro do Estado. E rende. É uma área que o país tem negligenciado. As pegadas da serra d’Aire estão a estragar-se todas, é uma vergonha. Mas vamos lá convencer os políticos…

Foi a maior batalha que travou na sua vida?

Foi, e foi vitoriosa naquela altura. Nunca sonhei que depois das pegadas salvas não fossem transformadas num local de visita. Fez-se o projeto do centro de interpretação, mas nunca houve dinheiro.

Quanto se gastou para salvar as pegadas?

Naquela altura, um milhão e 600 mil contos, seis milhões de euros. Fazer o resto em cima era uns trocos, mas nunca se fez. Mas não se fez com o Cavaco, Sócrates, com ninguém.

Revela o quê, na sua opinião?

A imaturidade de um país que não está preparado para ser democrático. Li hoje uma frase de Guerra Junqueiro: falava de um povo imbecilizado, políticos sem ideias, que não sabem ser políticos. Reunimos não sei quantas mil assinaturas para o assunto ser tratado na Assembleia da República. Passaram a chamar-me o pai dos dinossauros, depois passei a ser avô. [risos]

O Parque Jurássico de Steven Spielberg mudou o interesse na paleontologia?

Sim, mas cá acho que este movimento e o barulho que fizemos ajudou muito. O filme apareceu dois ou três anos depois. Passou a haver projetos. Fez-se uma grande exposição no Museu de História Natural, na Rua da Escola Politécnica. Pudemos trazer especialistas estrangeiros, dos EUA, de França, do Canadá, da Mongólia, da China. Isso movimentou muito dinheiro nessa altura. Depois passou tudo. O Sócrates dizia sempre, “o professor manda, o professor não pede, manda”. Nunca me ligou nada. 

Gostava de ainda ver concretizado esse projeto?

Gostava muito. Fizemos o cordão de apoio, vou lutando. Falei com todos os presidentes que passaram pela Câmara de Sintra.

O terreno é da câmara?

É do José Guilherme, o construtor. Nunca quis vender, o Estado também não quis. Andou a namorar-me muito tempo porque queria que eu conseguisse autorização para fazer prédios em torno das pegadas. Está a ver o que era: uns prédios com vista para as pegadas. Então, nessa altura, fazia tudo. Olhe, foi pena, ao menos estavam acessíveis às pessoas. Não há uma cultura geológica em Portugal. O que é que a geologia lhe diz? Nada. Tenho pena de não me poder desdobrar pelas escolas todas. Escrevo no Facebook e nunca senti tanto interesse como hoje pelas histórias. Escreveram-me hoje aqui: ensinam de uma forma natural; além disso, são quase poesia.

E é?

De certa maneira sim. As histórias são bonitas. Como se forma o granito, o calcário, o volfrâmio, que utilidades ao longo do tempo se foram buscar à geologia, porque é que houve glaciações há milhões de anos. É a história do planeta. Claro que, quando vou às escolas, todos querem saber de dinossauros. Às vezes tenho de dizer “já chega”. 

Como desvia a atenção?

Já pensou como nasce uma montanha? Lá em casa, na sua cama, ponha um lençol, outro lençol, um cobertor, outro cobertor, faça uma pilha de roupa com várias camadas, como as camadas de sedimentos do fundo do mar. Se pegar na roupa da cama e fechar os braços, vai ficar com dobras para cima e dobras para baixo. As dobras para cima são as montanhas, as dobras para baixo são as raízes das montanhas. Vão aquecer, vão derreter, formam-se magmas, com tendência a subir, forma-se o granito. Porque é que temos tanto granito? Porque tivemos uma cadeia de montanhas. Aconteceu o que está agora a acontecer nos Alpes, nos Himalaias.

Como vamos ser no futuro?

Há indícios de que vai fechar o Atlântico. Abriu, estávamos colados ao Canadá. No centro há uma racha de onde sai o magma, o magma que fez alargar o fundo do oceano. Daqui a uns 35 milhões de anos, aproximadamente, estaremos já muito próximos dos Açores. E daqui a uns 180 milhões de anos temos o Marquês de Pombal a abraçar a Estátua da Liberdade. [risos]

Ainda cá vamos andar?

Não acredito. A Terra vai continuar, mas esta civilização vai desaparecer.

Existirão novas espécies depois do Homo sapiens.

Com certeza. Mas estamos a criar insustentabilidade. Mesmo que tenhamos uma espécie mais evoluída do que a nossa, ela vai continuar a precisar de ar, de água, de bens que a natureza nos dá e que não são inesgotáveis. O Sapiens tem 300 mil anos. Não sabemos quanto mais tempo terá. Só China e Índia são não sei quantos mil milhões de pessoas, vamos respirar um ar cada vez mais poluído, beber água que não presta. A sua geração talvez não sofra, mas a dos seus filhos, sim.

Somos a última geração a ter alguma previsibilidade.

A poder respirar. Vai haver um tempo em que as pessoas têm um contador de oxigénio para entrar em casa. E pagam.

Que mais imagina?

Sei lá. A Terra tem mais 5 mil milhões de anos para viver, até o Sol crescer, crescer e nos apanhar. Antes de isso, claro, começará a ser muito quente.

O que resistirá mais tempo? São as baratas, como se costuma dizer?

Estão cá há 300 milhões de anos, iguaizinhas a elas próprias.

Um geólogo aprende a relativizar o tempo?

Tratamos o tempo com uma displicência muito grande, falamos de milhões de anos com uma falta de respeito enorme. Tem ideia do que é um milhão de anos? Um milhão? Eu digo-lhe: se for bater um sino de uma igreja uma badalada por segundo, tem de estar 11 dias e 14 horas a dar badaladas, sempre a bater, sempre a bater. Ou se quiser meter um milhão de bagos de arroz em sacos, enche 16 sacos de quilo. Um milhão é isto.

Só um.

Sim, dizemos 70 milhões, 150 milhões, 6 mil milhões de anos. Quando dizemos que os sedimentos com 200 milhões de anos são recentes é porque é relativo aos 4500 milhões de anos da Terra.

Mas imagino que ao mesmo tempo tenha uma noção mais apurada do quão efémeros somos.

Quando se faz a escala do tempo, quando se compara a história da Terra às 24 horas do dia, aparecemos nos últimos segundos. Foi quase sempre uma Terra sem vida, inóspita. Foi disto que gostei na geologia, mas acho que todas as profissões são bonitas se nos aplicarmos.

Podia ter sido outra coisa?

Houve uma altura em que quis ser arquiteto, tinha um certo fascínio. Ainda hoje gosto de ver, tenho uma certa apetência.

Como se mantém um casamento de 60 anos?

Casámos em 1957, 62 anos. A tolerar-se um ao outro. Os velhos estão sempre à birra mas não podem viver um sem o outro. Ficamos mais rabugentos, sem paciência. Uma pessoa tem sempre de fazer o ponto de situação. Enquanto o balanço for positivo, está bem. No nosso tempo era complicado se alguém se quisesse separar. A minha mulher começou a trabalhar primeiro do que eu, como professora, foi o suporte da nossa casa. Logo isso, dá uma grande independência à mulher.

O que o preocupa mais no país de hoje?

Não termos aproveitado 45 anos para cultivar este povo, para lhe dar cultura cívica. Não precisava de ser cultura científica, é cultura cívica. Só lhe damos futebol, só lhe damos porcaria.

Não gosta de futebol?

Nada. Sou capaz de gostar de ver um desafio de futebol, a habilidade dos jogadores. Agora, o mundo do futebol, aqueles comentadores, aqueles treinadores, desligo logo. É um país alienado, as nossas televisões são alienantes, mesmo a televisão do Estado, tirando a 2.

O que lhe dá mais prazer hoje em dia?

Escrever, cozinhar. Partilho no Facebook algumas receitas que vou fazendo. Cogumelos de coentrada com ovos e batata palha, um sonho. A minha mulher cozinha por receita, rigorosamente; eu sou o criativo, o anarquista na cozinha. 

De que tem mais saudades?

Não sei, vivo muito o dia-a-dia. Estou muito ocupado sempre. Ter a cabeça boa só tem um inconveniente muito grande: temos a noção da decrepitude física. Se me levantar agora, vou inseguro. Acabo por me movimentar pouco. Se vou a um museu, às Janelas Verdes, estou constantemente a sentar-me. Aqui sentado em casa estou muito bem, não sei que idade tenho.

O que era mais fascinante quando veio pela primeira vez a Lisboa?

Ver os elétricos, ver o mar.

Lembra-se da primeira vez que o viu? 

Tinha 12 anos. E não foi o mar, foi o Mar da Palha, no Cais das Colunas. Vim do Barreiro para Lisboa. Era um deslumbramento.

Os seus avós viram o mar?

A minha avó, não. Mas vinha-se a Lisboa uma vez na vida. Os meus pais vieram em 1940 à Exposição do Mundo Português e, depois, uma vez mais tarde, para ver uma revista. 

Também é anarquista politicamente?

Sou mais socialista do que os socialistas, mas não sou sectário como os comunistas.

Nunca o convidaram para a política?

Todos menos o CDS, para militante. Nunca me filiei. Todos os partidos têm coisas com que não concordo. Elogio quando me apetece e critico quando me apetece.

Há uma crise de regime?

Não acho, acho que precisamos é de uma limpeza na justiça. A Assembleia da República podia resolver tudo, criar legislação adequada. Temos a mesma justiça do tempo de Salazar.

Apesar de não gostar da escola que teve, era um miúdo curioso?

Muito, tudo o que aprendi foi fora da escola. Convivia muito com o Lima de Freitas, pintor, com o Mário Ruivo, que foi político, e com dois ou três rapazes mais velhos do que eu que sabiam muito de filosofia e história. Tinha 15, 16 anos quando fiz as primeiras perguntas e nunca mais deixei de estudar por mim. 

E sempre gostou do campo.

Aprendi muito com os camponeses, foi aí que fiz a minha formação social e política, no drama de vida dos alentejanos. Percebi o que era a exploração do homem, enriquecer à custa do empobrecimento dos outros. Formou a minha personalidade.

Um livro que o tenha marcado?

'As Vinhas da Ira'. 'Ratos e Homens' também li, gostei muito.

E música?

Gosto de ouvir Zeca Afonso, cantar alentejano. Hoje tenho mais dificuldade, oiço uns timbres mas não oiço uns outros. Tive o meu irmão músico, Francisco José, morreu em 1989. Éramos seis. Tenho uma irmã com 92, outra com 80.

Custa muito perder os irmãos?

Custa muito. Custa muito perder as pessoas da nossa geração. Todas as semanas perco alguém, é próprio, tenho muitos amigos e colegas nos 80, nos 90. Todas as semanas há um que bate a bota e estamos sempre perante o problema da morte. Que não me preocupa a mim. Posso morrer logo que não me faz diferença nenhuma. Gosto muito de estar vivo, mas não me preocupa.

Pensou sempre assim?

Há alturas da vida em que não se pensa na morte, começa-se a pensar a partir de certa idade, quando começam a aparecer algumas doenças, quando o coração leva ao hospital, vem um enfarte. Eu já tive um enfarte, dois AVC, já estive com o problema de bater a bota. Mas uma pessoa tem de andar, estamos aqui a falar, levantei-me muito cedo, fiz os meus trabalhos. 

Li que sempre foi de dormir pouco.

Durmo à tarde e deito-me cedo mas, às vezes, às quatro horas já não tenho sono, venho escrever. Escrevo os livros, para o Facebook, para dois blogues.

Projetos não faltam, então? 

Isso é que ajuda. Às vezes penso que posso não acabar, mas enquanto estou a trabalhar estou feliz da vida. Geralmente trabalho entre as quatro e as 11 da manhã.

Se pudesse recuar no tempo, onde ia?

Talvez aos meus 30 anos, a Paris. Quem sai da província e entra numa cidade como Paris, com oferta cultural por todo o lado, uma maneira de ser diferente… Havia greves, que cá não havia, havia televisão livre, cinema sem censura. Vou para Paris quando estamos cá no auge da repressão política. Quando vi a primeira greve fiquei fascinado ao ver a polícia a amparar os grevistas, a apoiá-los; cá, a polícia batia.

Andou nas lutas antifascistas?

Pouco, levava os meus recados, os papelinhos, muito no campo. Conheci muitos militantes comunistas que ninguém sabia que eram.

É uma história que está devidamente feita?

Acho que a geração mais nova não foi devidamente informada sobre aquilo que Portugal passou. É nesse sentido também que digo que a televisão podia ter tido um papel pedagógico, podia ter sido uma universidade. Diz-se mal do PREC, mas foi uma altura em que se levou cultura às aldeias. E nessa altura houve grandes políticos. Homens como Lucas Pires já não voltam a aparecer, como Maria de Lourdes Pintasilgo. Depois entrou-se numa era do Durão Barroso, Cavaco, Sócrates, tudo uma malta sem preparação nenhuma.

Quem são as figuras de referência na sua vida?

Como criança, foi o meu mestre carpinteiro. Escrevi um livro chamado 'O Cheiro da Madeira', em volta do mestre Roberto. Uma criança com quatro ou cinco anos perceber que se podem fazer coisas da madeira… Foi de tal maneira importante que durante muito tempo comprei ferramentas. Em Paris ia ver as novidades de ferramentas; muitas não cheguei a usá-las, mas era o fascínio de ter. Serrar e sentir o cheiro da resina. Mas ainda fiz muitos móveis, prateleiras.

Um homem habilidoso.

Um operacional, sim. No liceu, foi o professor de Ciências de que já falei. Já profissional, o prof. Orlando Ribeiro, geógrafo, mas que percebia a linguagem dos geólogos. E ao mesmo tempo tinha uma conduta cívica, cultural, muito especial. Corrigiu o meu doutoramento datilografado. Aprendi muito com ele na escrita e nas ideias. São três referências.

Qual foi o melhor conselho que lhe deram?

Há uma frase que já não sei se é minha ou de um professor que tive a Matemática – às vezes pergunto-me se não é algo que nasceu na minha cabeça. Reprovei a Matemática no sétimo ano do liceu, repeti o ano só para fazer Matemática e tive este professor. A frase é esta: a matemática é como uma escada, sobes um degrau e só depois de teres o pé bem assente é que sobes para o outro. E fazes assim do segundo para o terceiro, do terceiro para o quarto. Se fizeres assim, sobes onde tu quiseres. Passos firmes. E isto é válido para todas as ciências, para todas as disciplinas.