José Berardo, Noam Chomsky e Henry Miller


O que é muito curioso neste caso é que o senhor Berardo desceu dos céus da santidade aos infernos do pecado pelos mesmíssimos factos.


Apesar do primeiro nome que figura no título deste texto, não vou dizer uma palavra sobre o chamado “caso Berardo”, não só porque não poderia nem quereria, mas também porque não houve quem não tivesse já metido a sua colherada, pelo que nada vou acrescentar às muitas opiniões, que se repetem umas após outras – aliás, como é costume, começa um tema e logo se torna “viral”. Agora é o tema do momento, como no passado outros foram e no futuro outros serão – quase fazendo esquecer (de propósito ou por acaso, não sei) tudo o mais, seja o que está ao lado, seja o que está abaixo, seja o que está acima. Falar no “caso Berardo” é o que está a dar, e não há quem não opine sobre as propaladas “vilanias” do senhor. 

O meu tema não é esse, mas sim a memória. E porquê? Porque me veio à memória que há mais de uma década o senhor José Berardo também esteve no centro das atenções, mas nesse tempo não como vilão, mas sim como herói. Tenho boa memória (o que não sei se é privilégio ou castigo), e lembro-me bem do “prime time” que lhe era dado, do incenso que se conferia às, então propaladas, suas galhardia e coragem, e de como quase todos afinavam pelo mesmo diapasão (como agora quase todos afinam pelo diapasão oposto): o senhor era um herói. Mas o que é curioso, e de frisar, não é que alguém tenha passado de herói a vilão, pois isso acontece muitas vezes, e amiúde em lapsos temporais bem menores do que uma década, e vice-versa também. O que é muito curioso neste caso é que o senhor Berardo desceu dos céus da santidade aos infernos do pecado pelos mesmíssimos factos. Ou seja, o que fez dele um herói nos idos de 2007 e por aí é exatamente o que faz dele agora um vilão, e as questões que agora quase todos colocam (quase num efeito de mimetismo opinativo) já poderiam ter sido colocadas então, pois nada mudou, nada realmente se descobriu que não pudesse já ter sido desvendado, et cetera.

Donde me ocorre que as coisas dependem essencialmente da “narrativa” e do contexto, que naquela altura eram uma e outro (lembram-se? puxem lá pela cabeça) e hoje são diferentes. Os factos não mudaram, mas mudou o contexto, a “narrativa” é diferente, logo a roupagem dos factos é outra e as questões que ocorreram então a muito poucos parece que agora são tão óbvias e cristalinas que ocorrem a todos. Pelo que me ocorre evocar um livro de Noam Chomsky (e de E. S. Herman), chamado “Manufacturing Consent: the Political Economy of the Mass Media”, livro onde o autor (os autores), ainda antes de se ter radicalizado em demasia, explica magistralmente como se constroem “narrativas” e, à conta disso, como se fabricam consensos. Muito interessante leitura. Aliás, se o tivesse lido, talvez o senhor José Berardo não estivesse, porventura, a descobrir o ensinamento de outro autor, Henry Miller, no seu pequeno texto “On Turning Eighty”, que é – resumindo e simplificando – o de que a genialidade importa pouco, ao contrário das coisas simples e fundamentais da vida, porque a genialidade de hoje pode ser a perdição, o nada e/ou a amargura de amanhã. 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira