O veneno da desconfiança e os ardis para o difundir


A desconfiança é um instrumento político poderoso.


Um dos aspetos que mais me impressionaram na discussão que se gerou na apresentação do excelente livro que Celso Cruzeiro recentemente publicou – Direito e Justiça, em Busca de um Novo Paradigma – foi o de ter suscitado o problema da confiança que a sociedade tem, ou não, na justiça portuguesa.

Não tanto exatamente por causa do relacionamento dos portugueses com as instituições judiciárias, mas pelo que tal discussão também levantou sobre a (des)confiança que lhes merecem, em geral, os poderes públicos.

A questão é melindrosa – e nefasta – se alargarmos o leque de desconfianças crescentes que existem na nossa sociedade relativamente a um conjunto de instituições que organizam a nossa vida política, social, económica, familiar e, simplesmente, humana.

A confiança, ou a falta dela, é um instrumento político poderoso que, quando manipulado despudoradamente, pode alterar a estabilidade de uma dada sociedade e fazer inverter o rumo que ela, aparentemente, estava empenhada em seguir.

Um simples facto – como, por exemplo, a falta de combustíveis – pode modificar radicalmente a confiança na administração pública e na governação de um país.

Por isso, tal tipo de factos não pode ser encarado com ingenuidade ou como um simples incidente de percurso.

Hoje, factos magnos, como o incêndio de Notre-Dame, tremendos, como o acidente de viação na Madeira, ridículos, como são algumas intervenções judiciais, ou mesquinhos, como são alguns episódios e certos discursos sobre a vida de determinadas personagens públicas, podem gerar fenómenos sociais insuspeitados e dimensões políticas maiores.

A luta pela manutenção da confiança nas instituições nascidas no 25 de Abril é, portanto, uma tarefa política da maior importância.

Claro está que, precisamente por isso, a emergência e divulgação diária de escândalos – uns reais, outros apenas aparentes – permite centrar, ou descentrar, a atenção dos cidadãos das opções que lhes devem verdadeiramente importar.

Não se podendo nem devendo, em nenhum caso, escamotear as situações anómalas na política, na economia, na justiça, no ensino, na saúde ou no urbanismo, é todavia importante conseguir centrar o discurso público nas contradições fundamentais que estão na sua origem e que a todos escandalizam.

Só assim os cidadãos podem compreender a sua verdadeira natureza e a sua relativa importância para os projetos que querem, verdadeiramente, levar por diante.

Na verdade, muitas dessas anomalias, agora hiperbolizadas, só o são na aparência, pois integram o verdadeiro e (a)normal jogo social, político e económico em que todos nos movemos.

O facto de elas nos serem apresentadas como meras anomalias tem, todavia, dois propósitos.

Um, o de mostrar que o jogo pode, apesar de tudo, correr limpo e que, para tanto, basta cumprir as regras certas; o problema encontra-se apenas nas infrações às regras, e não na essência do jogo.

O outro, o de desviar a atenção sobre a essência das regras do jogo – regras que, no fundo, não impedem nem nunca quiseram impedir verdadeiramente tais anomalias.

É, todavia, por causa dessa falta de esclarecimento e de proposta para as erradicar que tais anomalias – umas mais significativas, outras menos – servem sempre para projetar a desconfiança na democracia e nas suas instituições.

O jogo da desconfiança é, por isso, frequentemente utilizado pelos que mais beneficiam das anomalias, designadamente quando se apercebem que a sociedade começa a procurar outras regras que, essas sim, evitam que muitas daquelas sucedam.

Nada mais fácil, pois, do que imputar precisamente aos que querem alterar as regras do jogo as causas das anomalias que, afinal, se fomentam e, contra eles jogar, depois, a desconfiança pelas que sucederam.

Alguns idiotas úteis prestam-se sempre a isso.

É por isso que só o discurso corajoso e verdadeiro sobre as causas das anomalias permite devolver confiança e isolar os jogadores maliciosos.

 

Escreve à terça-feira