Luísa de Nazaré Ferreira. A flor discreta dos Clássicos

Luísa de Nazaré Ferreira. A flor discreta dos Clássicos


Morreu aos 48 anos, vítima de cancro no pulmão. Deixa, além dos muitos trabalhos publicados na área dos estudos clássicos, um modo de ser e de estar na cultura que se furta à exibição.


É relativamente conhecida a história árabe de um califa, amante da ciência, mas não menos do ócio e das sestas largas e descansadas. Certo dia convocou os sábios do seu emirato e começou por lhes dizer que gostava de ser erudito. Fosse ele erudito e o rol de coisas que não saberia – ó maravilha! E era por isso, em suma, que determinara que eles, sábios e devotos da leitura, lhe resumissem a livraria do seu palácio num só livro. Depois, resumissem esse livro numa só página, leve e fina, e por fim, que o mais sagaz tratasse de resumir essa página numa frase de ligeiro recorte para ele decorar, absorvendo deste modo a essência do saber humano. 

Investigadora do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Luísa de Nazaré Ferreira – Luisinha para a sua larga roda de amigos – duvidava da página que sem esforço nos vem cair à mão. Tinha bem presentes os troianos, que diziam que debaixo dos favores dos Gregos era de temer que viesse sempre algum interesse maligno. Depois, sabia que há coisas que a vida humana não pode sequer desafiar. E também que a livralhada que as mãos dos séculos depositaram nas nossas estantes é uma faca de dois gumes e que a ignorância pode cortar fundo. Não desconhecia também que na rampa dos devaneios dos homens há um sebo secular … Era área onde não escorregava. Nem tudo se encontra nos livros, nem tudo está ao alcance de um resumo. O trabalho era coisa a que nunca se furtava, bem ao contrário. E sempre feito sem queixas indiscretas ou auto-complacências. E nem as papelosas burocracias de que não escapa o trabalho docente lhe derrubavam o ânimo. A intensidade do seu empenho nem a doença a fez diminuir. 

Dispensava, no entanto, o trabalho diplomático de agradar simultaneamente a gregos e a troianos. Tinha das virtudes que mais falta farão aos tempos que atravessamos: estilo direto, sobriedade, discrição, delicadeza. E se é certo que não se cansou de dar uso a estes qualificativos, também não deixou que outros repousassem. 

Luísa de Nazaré Ferreira: se este nome tem, para muitos, uma ressonância especial no panorama dos Estudos Clássicos, tem ainda, para quantos a conheceram ou se cruzaram com ela nos corredores da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o poder de evocar alguém com a força de uma presença concreta: a investigadora apaixonada, a professora dedicada, enérgica, a quem se pedia estímulo e exigência, critério e serenidade e cujo sorriso precedia a voz, tornando certas matérias menos pastosas e enfadonhas. Teresa Nunes, sua aluna e amiga, recorda, num testemunho emocionado, a primeira vez que a ouviu, numa aula de Poesia Grega: “Quis poupar os alunos à maçada de ouvir a enumeração de um programa e decidiu expô-lo num percurso sobre o pessimismo da lírica e da elegia que terminou com a promessa de que não sairia dali ninguém em depressão, porque “o Anacreonte é um humorista em modo de autocomiseração, o Teógnis é um lamechas, os seus lamentos dão mais para rir que chorar, e nós vamos estudar os textos no grego original”.

De evocar também a estimuladora de vocações, sempre a polir arestas e a abrir horizontes, a sua amizade sem falhas; a mulher, moderadamente irónica, cujos silêncios conseguia elevar à dignidade das melhores palavras O seu saber, a sua erudição suave não servia para desconsiderar ou humilhar. Era um saber generoso, protetor até. Não se rodeava de importâncias que não tinha, não vinha acrescentado de uns palmos a mais, calçando estrategicamente uns sapatos de sola mais grossa. E seguia à risca aquela máxima de Apeles que recomenda que o sapateiro não suba acima da chinela, o que não a impedia de se interessar pelo trabalho dos outros, nas mais diversas áreas, de pôr a bom uso parte do seu melhor equipamento: a atenção, a disponibilidade, a simplicidade. 

Esta professora de Estudos Clássicos sabia subir e descer na escala dos séculos. Não corria ao foguete da última novidade literária, mas acompanhava de perto a atual literatura portuguesa e continuava a recortar as colunas miúdas da nossa crítica literária. 

Era doutora, de uma austeridade-verniz que não demora a estalar. Mas os seus olhos, profundos, curiosos, de um brilho faiscante onde raramente pousava a malícia, eram de aluna. Eram olhos que ouviam e interrogavam, e queriam sempre aprender, fosse de uma sala forrada a letra impressa, de um livro, um filme, um quadro, uma tapeçaria, uma paisagem, ou o cenário aromático da sua terra natal, o Fundão. 

As suas conversas, que tantas vezes ligava à maneira das cerejas que todos os anos distribuía pelos amigos, fluíam e desaguavam nos Clássicos, que não aferrolhava na sala de aula nem limitava às páginas da sua investigação: dava-lhes ar e abrigo. Se o vento se levantava, lá se estava a desatar o odre dos ventos de Éolo; se alguém se irritava, lá estava Júpiter a forjar os raios; se subia o Quebra-Costas, era para alcançar o Olimpo. O seu próprio carro tinha nome e destino: Ulisses, Ítaca. 

As dezenas de artigos que escreveu, de uma sobriedade limpa e funda, os volumes de estudos que coordenou – entre eles “As Sete Maravilhas do Mundo Antigo” (com o seu mestre José Ribeiro Ferreira) – permitem tomar o pulso ao seu trabalho, às suas preferências, que iam da poesia grega arcaica à arte grega e sua receção. Punha Rigor em tudo quanto lhe saía das mãos, do estudo de vulto à dedicatória, do breve artigo académico ou prefácio à mensagem de telemóvel. Corria infatigavelmente atrás daquela que, por mais que se faça, não se deixa alcançar: a perfeição. Nem o guarda-roupa do Thíasos, o único grupo de teatro em Portugal de exclusivo tema clássico, escapou à minúcia que lhe vinha compor o retrato. 

O entusiasmo entrava pelas palavras como o ar pelas janelas sem vidro quando falava de Simónides, o poeta em que centrou a sua tese de doutoramento, defendida em Coimbra em 2005 (“Mobilidade poética na Grécia Antiga – uma leitura da obra de Simónides”). Nos últimos tempos, as suas frases não rematavam nos pontos finais, entregava-se-nos menos pelo que dizia que pelo muito que sugeria. E acontecia pôr nas palavras acentos graves de pitonisa que nos anuncia catástrofes inconcebíveis. 

Escreveu o neurocirurgião João Lobo Antunes que a doença fala, dá sempre sinais, “só a saúde é muda”. Luísa de Nazaré Ferreira terá tido sinais, vozes discretas a anunciar a doença, mas os decibéis em que se expressava o apelo do trabalho não deixava ouvir mais nada. A flor discreta dos Clássicos trabalhou quase até ao último alento.