Artimanhas de um Presidente tablóide


Quem diz que o comportamento popularucho de Marcelo é “espontâneo e natural” não percebe que ele é fruto dum propósito político muito pensado e estudado cuja manifesta vacuidade, aparentemente, não compromete o Presidente.


Marcelo Rebelo de Sousa vive obcecado pela popularidade. Funciona quotidianamente com o objectivo de garantir destaque na primeira página dum tabloide – seja uma rádio, um jornal ou um telejornal. É um populista e demagogo perigoso, justamente por ser o Presidente da República, eleito por maioria absoluta dos votos expressos nas urnas. Os seus alarmes, alertas, artimanhas e reviravoltas constantes são quase sempre fruto do seu desenvolto oportunismo político, regra geral para favorecer a direita que o elegeu. São muitos os exemplos do que afirmo, mas optarei apenas por três deles.

1 – O primeiro passou quase despercebido, dada a ignorância política e falta de cultura histórica dos “correspondentes” em Belém. Mas é, curiosamente, o que melhor revela a natureza das opções políticas e ideológicas de Marcelo. Trata-se duma afirmação bastante preocupante que ele fez, em Abril de 2016, a propósito da passagem do 40.o aniversário da entrada em vigor da Constituição da República. Disse então Marcelo – “a partir de um texto escrito, pensado e deliberado”, como sublinhou Rui Tavares no Público – que um dia ainda se irá discutir a inserção, na Constituição da República, de “um estado de excepção económico-financeiro” que permitirá guiar a jurisprudência sem recurso aos princípios gerais que, basicamente, permitiram ao Tribunal Constitucional fazer frente ao pior da austeridade. Para Rui Tavares – e para mim também –, a conclusão foi clara: “O projecto de eviscerar os direitos económicos e sociais da Constituição, ao mesmo tempo que se lhes prestam umas falinhas mansas, continua bem presente no espírito da direita portuguesa”. E o seu principal intérprete é, agora, Marcelo Rebelo de Sousa, eleito PR, se não com a conivência, pelo menos com a displicência do PS.

A ideia dum “estado de excepção económico-financeiro” inscrito numa Constituição, com o objectivo paradoxal de suspender a sua aplicação, remete-nos inevitavelmente para Carl Schmitt – “jurista maldito”, “coveiro do liberalismo” e “Cassandra do direito público”, como vários colegas seus lhe chamaram –, que fundamentou juridicamente a suspensão sucessiva, por parte de Adolf Hitler, da ordem constitucional legal (a Constituição de Weimar) durante a vigência do Terceiro Reich. Carl Schmitt, em coerência com o seu antiparlamentarismo e o seu desprezo pela democracia, definiu a soberania como o poder de decidir a instauração de um “estado de excepção” (Ausnahmezustand) – como salientou, em 2003, o filósofo italiano Giorgio Agamben no seu incontornável ensaio Stato di Eccezione (publicado em Portugal pelas Edições 70 em 2010).

Para Carl Schmitt, adepto da inclusão dum “elemento ditatorial” nas Constituições, o “estado de excepção” destina-se a libertar o Executivo de qualquer restrição legal ao poder que normalmente exerce, abrangendo o recurso a todos os tipos de violência à margem do direito (embora sob a sua alçada), inclusive a transformação do sistema judicial numa “máquina de matar”. Como denuncia Giorgio Agamben, o “estado de excepção”, ou seja, a suspensão do ordenamento jurídico que estamos habituados a considerar como medida provisória e extraordinária, começou a tornar-se – sobretudo desde o “triunfo” da ideologia neoliberal – um paradigma normal da governação que determina cada vez mais a política dos Governos nos Estados democráticos, tanto no plano interno como no externo. O que é, no mínimo, bastante perigoso.

Mais: numa célebre polémica jurídico–política com Hans Kelsen, um dos seus principais rivais, Carl Schmitt – com o apoio de figuras proeminentes do nazismo como Hermann Göring, Hans Frank e Wilhelm Frick – sustentou, preto no branco, que o estatuto de “guardião da Constituição” era de natureza política, e não jurídica, em consequência do que só o Presidente do iii Reich poderia desempenhar essa função. Com a ascensão ao poder do partido nazi, em 1933, esse estatuto passou a ser atribuído ao Führer, Adolf Hitler. Ora, Hans Kelsen refutou a argumentação de Carl Schmitt, defendendo que era essencial que a função de “guardião da Constituição” fosse desempenhada, numa democracia moderna, por um Tribunal Constitucional integrado por magistrados e outros juristas competentes – o que garantiria maior imparcialidade nas decisões, especialmente quando se tratasse da protecção das minorias ou de questões relativas às oposições aos governos. A teoria de Carl Schmitt “triunfou”, na década de 1930, graças à implantação do iii Reich alemão concebido pelos nazis. Já a teoria de Hans Kelsen, jurista e judeu, só triunfaria a seguir à ii Guerra Mundial, com o restabelecimento da democracia pluralista e pluripartidária na República Federal da Alemanha.

2 – Segundo exemplo: o do comportamento contraditório e demagógico de Marcelo PR face aos gravíssimos incêndios que eclodiram em Portugal, em 2017, num contexto excepcional de condições meteorológicas extremas, causadoras duma seca terrível e propícias aos acendimentos (e reacendimentos) de fogos nas florestas.

Sabe-se como, perante o terrível incêndio de Pedrógão Grande, em 2017, Marcelo PR começou por declarar, urbi et orbi, perante as câmaras de televisão: “Foi feito tudo o que era possível”. Mas logo mudaria de opinião, ao perceber que aquela era a grande oportunidade para ele mostrar à direita que estava com ela, não a tinha esquecido e não apreciava a experiência de um Governo sustentado pelas esquerdas na Assembleia da República, facto que ocorria pela primeira vez desde a aprovação da Constituição de 1976. Vai daí, Marcelo encetou uma parceria com uma cidadã luso-brasileira de Pedrógão que fora acintosa, mal-educada e provocatória com o primeiro-ministro.

Este comportamento de Marcelo PR desencadeou o apoio de jornalistas e órgãos de comunicação social esmagadoramente dominados, financeira e ideologicamente, pela direita, com um verdadeiro “exército” de escrevinhadores, faladores e palradores em competição, qual deles o mais submisso e rastejante, quer por convicção quer, sobretudo, por necessidade de manter o emprego e trepar na profissão e no salário. A coisa foi ao ponto de eu me pôr a chamar “atiça-fogos” a jornalistas que insistiam na ideia de que o PR dissolveria a AR se porventura se repetissem, em 2018, incêndios idênticos aos de 2017, que causassem, é claro, mais mortos. Uma vergonha!

Manipulador exímio, Marcelo tem explorado a seu bel-prazer debilidades psicológicas e excessos de zelo de jornalistas ansiosos por terem, se não “um rei”, pelo menos “um Presidente na barriga”, transformando-os, porventura sem que eles dêem por isso, em “correias de transmissão” habilmente “amestradas” por fontes de Belém, que nunca são identificadas e que debitam nas suas cabecinhas o que convém ao Presidente, ainda que, na maioria dos casos, sem a subtileza e o tacto que lhe dariam mais jeito.

Um dos exemplos mais flagrantes dessa falta de tacto, tino ou habilidade narrativa (é como preferirem) terá sido, sem dúvida, um texto publicado há um ano pelo semanário Expresso (10 de Março de 2018), intitulado “Marcelo dá prazo a Rio”, o qual, em bom rigor, deveria chamar-se, dado o seu conteúdo, “Marcelo dá prazo a Costa”. De facto, quem o redigiu foi ao ponto de escarrapachar no texto este fragmento de prosa nada subtil: “Com o crescimento e o emprego a correrem bem e a sorte a proteger Costa em três frentes potencialmente problemáticas – seca, fogos e média –, o Presidente acha arriscado o líder da oposição não passar rapidamente ao ataque”. Mais: “Marcelo tem-se referido ao péssimo tempo dos últimos dias como ‘chuva divina’ para o PM”. Lê-se e não se acredita, mas toda esta conversa, e não só, foi “partilhada com o Expresso” – como confessa, orgulhosa e ingenuamente, a “correia de transmissão”!

3 – O terceiro exemplo que escolhi é o da história pregressa – porque não há nela nem novidade nem escândalo – das relações familiares entre dois pares de ministros e dum ministro com a chefe de gabinete doutro ministro. O recurso ao tema, para desferir um ataque brutal ao Governo, resulta de dois motivos: por um lado, a óbvia incapacidade das oposições de direita de apresentarem propostas alternativas, consistentes e credíveis, às políticas do Governo, que têm obtido bons resultados; por outro lado, a escandalosa falta de memória dessas oposições, relativamente à porção de relações familiares detectadas nos seus próprios Governos e respectivos gabinetes.

Ora, Marcelo, porventura orgulhoso de não ter nomeado “um sobrinho” para chefiar a sua Casa Civil e a sua Casa Militar e o seu Gabinete, nem quaisquer outros familiares para membros destas três instâncias de apoio ao Presidente da República, terá julgado que este era mais um bom pretexto para “chatear o Costa” e incomodar as esquerdas que, achará ele, “usurpam” um poder que cabe à direita por “direito natural”.

Mais uma vez, é o prof. Marcelo outrora comentador-espectáculo da TVI e agora, infelizmente, PR, a envenenar e empolar uma ridícula “peixeirada” pública sobre um assunto que não só desvia as atenções de outras matérias cujo debate seria mais útil como também é um tema que – no seu tão parcial e bem baixo critério – parece o mais susceptível de causar maiores danos políticos e eleitorais ao PS.

Alcançada uma indiscutível popularidade, bem popularucha, por via duma bacoca política de “afectos”, que consiste em abraços e beijos a todo e qualquer cidadão que lhe salte ao caminho, Marcelo PR não hesita em inquinar o debate político e em ultrapassar, por mais que o negue, os limites que a Constituição impõe aos poderes de um Presidente, seja ele quem for. Quem diz que o seu comportamento popularucho é “espontâneo e natural” não percebe que ele é fruto dum propósito político muito pensado e estudado, cuja manifesta vacuidade, aparentemente, não compromete o Presidente. Para Marcelo PR, não se trata apenas de exercer o poder pelo prazer de o deter. Trata-se sobretudo de o exercer com o propósito de agradar à sua velha família política, cujas raízes mergulham no Estado Novo e nos “mandamentos” da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica e Romana. Foram esses “mandamentos” que o levaram a manifestar-se, em plena rua e com grande vigor, contra o projecto de despenalização do aborto votado em 1984; e que o terão levado a sustentar em entrevistas, com muita fé e duvidosa convicção, a indissolubilidade do casamento. Tudo isto para já nem falar do seu relacionamento amistoso com “donos disto tudo”, nem das luxuosas férias que lhe terão proporcionado, numa bela mansão ou num iate. Além dos pareceres, certamente lícitos e bem pagos, que o enriqueceram juridicamente…