“Vi a flutuar nas águas entre 200 e 300 corpos”

“Vi a flutuar nas águas entre 200 e 300 corpos”


Na região mais afetada pelo temporal em Moçambique, os receios de fome e doenças aumentam a cada dia.


Subi às escuras até ao décimo primero andar do hotel. Do quarto ao décimo, o edifício está destruído. No oitavo tropecei num gato morto. Havia uma mão agarrada ao gato e o resto do corpo também. Deve ter levado com dois andares em cima e está aqui esquecido.

As imagens dos filmes de guerra talvez sejam as mais adequadas para ilustrar o que se está a passar em Moçambique. Centenas de corpos a boiarem nas águas dos rios, aldeias e cidades destruídas, milhares de pessoas refugiadas nos telhados das casas ou penduradas em árvores, aguardando por socorro. Só em Búzi calcula-se que mais de 15 mil pessoas estão nessas condições, esperando-se que os 35 fuzileiros portugueses e os dois GNR enviados, que vão juntar–se a outras forças de ajuda humanitária, consigam resgatar o maior número possível de pessoas com vida. Os fuzileiros vão munidos de barcos de borracha e de dois drones para salvarem pessoas, enquanto os militares da GNR levaram cães para detetarem corpos ocultos nos escombros. Muitas dessas 15 mil pessoas não comem nem bebem desde sexta-feira e encontram–se, como não poderia deixar de ser, num estado preocupante. Não lhes resta outra solução que não seja defender os filhos e olhar para o chão e para o ar, na esperança de que surja um barco ou um helicóptero que os salve.

A descarga de uma barragem do Zimbabué deixou a localidade moçambicana de Búzi ainda mais isolada e o governo destacou seis helicópteros que estão a tentar salvar as pessoas que se refugiaram nos telhados das casas ou que estão penduradas em árvores. As viagens entre a Beira e Búzi são feitas ininterruptamente. Sabe-se que um casal português está desaparecido de Búzi, assim como todos os funcionários da empresa de que o casal é proprietário. Dos outros 28 portugueses dados como desaparecidos não há novidades, e ninguém arrisca um prognóstico.

Com o caudal do rio Púnguè a subir drasticamente depois das descargas da barragem, as localidades de Búzi, Lamego, Tica e Nhamatanda transformaram-se num enorme cemitério a céu aberto. Noventa por cento da região da Grande Beira ficou alagada e os estragos provocados paralisaram a vida dos seus habitantes. Não há água potável e eletricidade, e a comida começa a escassear até em cidades como a Beira, não havendo um único restaurante aberto.

Na principal cidade da província de Sofala, dezenas de milhares de habitantes circulam pelas ruas sem terem para onde ir, uma vez que as suas casas foram destruídas pela violência dos ventos, que levantaram os telhados de zinco e os lançaram em direção aos edifícios circundantes, onde se anicharam. “Consegue imaginar os estragos que essas chapas, a mais de 170 quilómetros por hora, fizeram?”, questionava um dos jovem ouvido pelo i. Não é difícil imaginar, pois basta olhar para as lojas e casas completamente danificadas por esses objetos voadores identificados. “É o fim do mundo”, dizia outro jovem que deambulava pelas ruas da cidade. “Até a igreja ruiu. O joelho que tocava no chão não era santo”. Nada funciona e a única máquina de multibanco tem oito horas de fila de espera. Face a isso, a população foi para a rua, uns procurando comida, outros para passar o tempo. A principal estrada que liga a Beira ao resto do país está cortada pela queda da ponte Muda, só restando aos habitantes esperar que as ligações sejam restabelecidas e a energia regresse para começarem a reconstrução. “O hospital central ficou quase todo destruído, incluindo o berçário, e o comércio e serviços estão fechados”, diz outro habitante. Há quem fale que no berçário, ou maternidade, terão morrido 20 pessoas, entre mães e recém-nascidos, mas foi impossível confirmar a notícia.

Neste cenário de catástrofe, toda a ajuda é pouca e alguns jornalistas cederam os seus quartos no hotel a organizações humanitárias, conseguindo vaga noutro empreendimento turístico que não tem os elevadores a funcionar. Os hóspedes são obrigados a subir a pé até ao 11.o andar. Pelas ruas aparecem ainda, apesar de tudo, vendedores ambulantes que têm cocos e algumas hortaliças para vender. Mas são as últimas. Ainda assim, a Beira é a zona menos preocupante, e os homens e mulheres da Cruz Vermelha mal se veem na cidade, que trocaram pelas zonas onde milhares de pessoas aguardam por ajuda.

O horror à luz do dia Graham Taylor é natural do Zimbabué e vive em Moçambique. Por telefone, conta ao i que pouco antes do ciclone, quando a chuva já era torrencial, dirigiu-se para a cidade da Beira na tentativa de contactar o filho. 

Depois de ter prova de vida do filho, decidiu regressar à zona de Chimoio, onde vive, pela principal autoestrada que liga as duas cidades. Descreve um cenário de horror: “A estrada estava impedida perto de Lamego. Acabei por pernoitar nos arredores”, diz Graham. “Vi a flutuar nas águas entre 200 e 300 corpos”, uma estimativa que considera “conservadora” para o número de mortos naquela localidade. “Acabei por desistir de tentar passar, abandonei a minha viatura e fiz 25 quilómetros a pé com dois colegas”.

Esta quinta-feira, o ministro moçambicano do Ambiente confirmou 242 mortos, mas reconheceu que o número vai continuar a aumentar, um cenário que tem sido reforçado em diferentes relatos. As autoridades admitem que há 15 mil pessoas à espera de socorro e cerca de 400 mil desalojados. Graham conta que ao longo do percurso não viu nenhuma equipa de ajuda humanitária. Encontrou apenas um homem, americano, que estava num barco a tentar ir buscar pessoas presas no meio das águas.

À distância de Maputo Amélia Fanheiro, professora de Maneio Comunitário de Recursos da Escola Superior de Desen-volvimento Rural da Universidade Eduardo Mondlane (ESUDER), revela que já se perdeu a maioria das colheitas do interior do país, um cenário dramático dado que “a população de Moçambique é muito dependente da agricultura de subsistência”. 

Os maiores estragos terão sido nas províncias da Zambézia e Manica, “onde a população não sofreu tanto porque são zonas altas”, mas que são as principais regiões de produção alimentar. “São precisos alimentos agora”, apela Amélia, que prevê uma fome generalizada a curto e médio prazo.

A professora alerta ainda para o risco de epidemias como cólera e diarreias devido à falta de saneamento, notando ainda que as águas paradas são propícias aos vetores de transmissão da malária, que já tem grande incidência no país, onde é a principal causa de morte. “Falta muita luta, muita batalha”.

 

*Jornalista do Sol do Índico, em exclusivo para o i