A perversão do discurso político


São flagrantes, por cá, os exemplos das arengas mediático-políticas – pelo tom e pelos conteúdos – de Assunção Cristas e Nuno Melo, que não estão propriamente na infância da arte e que fazem tábua rasa que foi a terrível experiência da direita no governo


Vivemos num mundo de pseudo-acontecimentos e de quase informações em que o ambiente está saturado de declarações que não são nem verdadeiras nem falsas, mas tão-só credíveis ou nem por isso. Desde que se convenceram de que as meias-verdades enganam mais eficazmente do que as mentiras escandalosas, os políticos demagogos e populistas, que se reproduzem como cogumelos, adoptaram este estilo tributário do insuportável discurso mediático-político designado por storytelling. Ora, a irradiação da web, tal como a multiplicação das redes sociais, criou um ambiente propício à difusão e propagação de stories de todo o tipo. E, como dizem alguns especialistas na matéria, assim como a inflação dos preços arruína a confiança na moeda, também a inflação das stories vai corroendo a confiança do público nas narrativas.

Vivemos em sociedades hiperconectadas e hipermediatizadas em que já não é só a manipulação e formatação dos espíritos que nos atinge. É também o afrontamento, a ruptura, o recurso às “verdades” que espatifam a confiança e atraem a nossa atenção. Como explica Christian Salmon, autor de um livro intitulado “Storytelling: a máquina de fabricar histórias e de formatar os espíritos”, o viral e a rivalidade vão, doravante, a par e passo, tal como a virulência e a violência, ou o choque brutal (clash) e a guerra de narrativas (storytelling), completamente independentes da realidade. São flagrantes, por cá, os exemplos das arengas mediático-políticas – pelo tom e pelos conteúdos – de Assunção Cristas e Nuno Melo, que não estão propriamente na infância da arte e que fazem tábua rasa do que foi a terrível experiência da direita no governo.

Há uma espécie de semelhança, embora branda, entre as arengas destes epígonos de Paulo Portas e as arengas de Matteo Salvini, chefe do partido de ultradireita em Itália – a Lega Nord – e já vice–primeiro-ministro e ministro do Interior do actual governo da extrema-direita italiana. Como ainda há dias lembrava, numa entrevista, o magnífico realizador Nanni Moretti, o populismo de Matteo Salvini é fruto do populismo de Silvio Berlusconi: partilham a mesma demagogia destrutiva e, como foram eleitos, julgam-se acima das leis e cultivam o analfabetismo institucional. As suas reacções aos inquéritos judiciais são reveladoras: “Fomos eleitos pelo povo, não pelos juízes. Temos, portanto, todos os direitos.” No fundo, as suas políticas assemelham–se, ainda que os métodos que os conduziram ao poder tenham sido diferentes. Berlusconi, “essa anomalia do sistema democrático”, assentou a sua popularidade num império mediático. Não foi o caso de Matteo Salvini, que chegou ao poder pela força da demagogia.

Não deve ser ignorado o papel dos meios de comunicação de massas na manipulação da opinião pública. O desen-volvimento dos meios de difusão massiva da “informação” tornou as categorias do “verdadeiro” e do “falso” inapropriadas a uma avaliação da sua influência. A verdade cedeu o lugar à credibilidade, e os factos às declarações que parecem fazer autoridade, mas não dão qualquer esclarecimento digno de fé. Quando vemos, na televisão, sumidades das mais variadas origens a dizer, pagas para isso, que preferem um determinado produto, sem mencionarem qualquer outro como termo de comparação; ou a proclamar a superioridade dum objecto sobre os seus concorrentes; ou a afirmar, implicitamente, que é o único produto com determinadas características, quando se sabe que outros produtos do mesmo tipo também as possuem – é forçoso concluir que tais declarações apenas servem para afogar a distinção entre o verdadeiro e o falso num nevoeiro de plausibilidade. Um exemplo parecido, no confronto político, pode ser o da utilização das mesmas estatísticas para delas retirar conclusões opostas ou o recurso a médias aritméticas que falseiam completamente a realidade – a média de um frango por habitante, por exemplo, esconde a probabilidade bem real de haver habitantes que comem dois frangos e outros tantos que não comem nenhum. O que se dirá, então, não é que a informação é crível ou falsa, mas sim que é credível.

A desconfiança crescente das populações em relação aos que exercem o poder tornou as sociedades cada vez mais difíceis de governar, como tantas vezes ouvimos as classes dirigentes lamentarem–se, sem todavia admitirem a sua parte de responsabilidade. E a cultura dos dirigentes é cada vez mais exígua. Os políticos são cada vez menos cultos e mais especializados em determinadas matérias, o que os torna incapazes de avaliar os contextos mais abrangentes em que se movem a política, a cultura e a história de cada país. Na entrevista que já referi, Nanni Moretti também salientava serem raríssimos os políticos capazes de evocar um livro ou um filme, nos tempos que correm. Preferem, de longe, falar de futebol, de emissões ou programas de televisão (sobretudo dos mais medíocres e popularuchos), tal como das suas inúmeras actividades nas redes sociais. Nanni Moretti referia-se ao seu país, a Itália, mas será bastante fácil generalizar as suas observações certeiras a muitos outros países democráticos, na actualidade.

Como sublinha Christian Salmon, a política passou da idade do debate livre em campo aberto (da “justa”, como ele refere) à idade do interactivo. O homem de Estado surge cada vez menos como figura de autoridade e instância produtora de normas, e cada vez mais como “coisa a consumir”. O que também resulta de certa incapacidade para exercer o poder “sob o efeito conjugado do neoliberalismo e das novas tecnologias”. O Estado é hoje “dessacralizado” para além dos limites do razoável, e “profanado pelos média” e “ridicularizado pelos mercados” para além dos limites do tolerável – sujeito à tutela das instituições internacionais e das agências de notação (ou de rating). Ora, a comunicação política já não visa só formatar a linguagem (storytelling), mas também captar e mergulhar os espíritos nesse “universo espectral” em que os homens políticos são simultaneamente performers (bons, medíocres, maus) e vítimas (às vezes justas, outras vezes injustas). E é nisto que assenta a perversão do discurso político.

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


A perversão do discurso político


São flagrantes, por cá, os exemplos das arengas mediático-políticas – pelo tom e pelos conteúdos – de Assunção Cristas e Nuno Melo, que não estão propriamente na infância da arte e que fazem tábua rasa que foi a terrível experiência da direita no governo


Vivemos num mundo de pseudo-acontecimentos e de quase informações em que o ambiente está saturado de declarações que não são nem verdadeiras nem falsas, mas tão-só credíveis ou nem por isso. Desde que se convenceram de que as meias-verdades enganam mais eficazmente do que as mentiras escandalosas, os políticos demagogos e populistas, que se reproduzem como cogumelos, adoptaram este estilo tributário do insuportável discurso mediático-político designado por storytelling. Ora, a irradiação da web, tal como a multiplicação das redes sociais, criou um ambiente propício à difusão e propagação de stories de todo o tipo. E, como dizem alguns especialistas na matéria, assim como a inflação dos preços arruína a confiança na moeda, também a inflação das stories vai corroendo a confiança do público nas narrativas.

Vivemos em sociedades hiperconectadas e hipermediatizadas em que já não é só a manipulação e formatação dos espíritos que nos atinge. É também o afrontamento, a ruptura, o recurso às “verdades” que espatifam a confiança e atraem a nossa atenção. Como explica Christian Salmon, autor de um livro intitulado “Storytelling: a máquina de fabricar histórias e de formatar os espíritos”, o viral e a rivalidade vão, doravante, a par e passo, tal como a virulência e a violência, ou o choque brutal (clash) e a guerra de narrativas (storytelling), completamente independentes da realidade. São flagrantes, por cá, os exemplos das arengas mediático-políticas – pelo tom e pelos conteúdos – de Assunção Cristas e Nuno Melo, que não estão propriamente na infância da arte e que fazem tábua rasa do que foi a terrível experiência da direita no governo.

Há uma espécie de semelhança, embora branda, entre as arengas destes epígonos de Paulo Portas e as arengas de Matteo Salvini, chefe do partido de ultradireita em Itália – a Lega Nord – e já vice–primeiro-ministro e ministro do Interior do actual governo da extrema-direita italiana. Como ainda há dias lembrava, numa entrevista, o magnífico realizador Nanni Moretti, o populismo de Matteo Salvini é fruto do populismo de Silvio Berlusconi: partilham a mesma demagogia destrutiva e, como foram eleitos, julgam-se acima das leis e cultivam o analfabetismo institucional. As suas reacções aos inquéritos judiciais são reveladoras: “Fomos eleitos pelo povo, não pelos juízes. Temos, portanto, todos os direitos.” No fundo, as suas políticas assemelham–se, ainda que os métodos que os conduziram ao poder tenham sido diferentes. Berlusconi, “essa anomalia do sistema democrático”, assentou a sua popularidade num império mediático. Não foi o caso de Matteo Salvini, que chegou ao poder pela força da demagogia.

Não deve ser ignorado o papel dos meios de comunicação de massas na manipulação da opinião pública. O desen-volvimento dos meios de difusão massiva da “informação” tornou as categorias do “verdadeiro” e do “falso” inapropriadas a uma avaliação da sua influência. A verdade cedeu o lugar à credibilidade, e os factos às declarações que parecem fazer autoridade, mas não dão qualquer esclarecimento digno de fé. Quando vemos, na televisão, sumidades das mais variadas origens a dizer, pagas para isso, que preferem um determinado produto, sem mencionarem qualquer outro como termo de comparação; ou a proclamar a superioridade dum objecto sobre os seus concorrentes; ou a afirmar, implicitamente, que é o único produto com determinadas características, quando se sabe que outros produtos do mesmo tipo também as possuem – é forçoso concluir que tais declarações apenas servem para afogar a distinção entre o verdadeiro e o falso num nevoeiro de plausibilidade. Um exemplo parecido, no confronto político, pode ser o da utilização das mesmas estatísticas para delas retirar conclusões opostas ou o recurso a médias aritméticas que falseiam completamente a realidade – a média de um frango por habitante, por exemplo, esconde a probabilidade bem real de haver habitantes que comem dois frangos e outros tantos que não comem nenhum. O que se dirá, então, não é que a informação é crível ou falsa, mas sim que é credível.

A desconfiança crescente das populações em relação aos que exercem o poder tornou as sociedades cada vez mais difíceis de governar, como tantas vezes ouvimos as classes dirigentes lamentarem–se, sem todavia admitirem a sua parte de responsabilidade. E a cultura dos dirigentes é cada vez mais exígua. Os políticos são cada vez menos cultos e mais especializados em determinadas matérias, o que os torna incapazes de avaliar os contextos mais abrangentes em que se movem a política, a cultura e a história de cada país. Na entrevista que já referi, Nanni Moretti também salientava serem raríssimos os políticos capazes de evocar um livro ou um filme, nos tempos que correm. Preferem, de longe, falar de futebol, de emissões ou programas de televisão (sobretudo dos mais medíocres e popularuchos), tal como das suas inúmeras actividades nas redes sociais. Nanni Moretti referia-se ao seu país, a Itália, mas será bastante fácil generalizar as suas observações certeiras a muitos outros países democráticos, na actualidade.

Como sublinha Christian Salmon, a política passou da idade do debate livre em campo aberto (da “justa”, como ele refere) à idade do interactivo. O homem de Estado surge cada vez menos como figura de autoridade e instância produtora de normas, e cada vez mais como “coisa a consumir”. O que também resulta de certa incapacidade para exercer o poder “sob o efeito conjugado do neoliberalismo e das novas tecnologias”. O Estado é hoje “dessacralizado” para além dos limites do razoável, e “profanado pelos média” e “ridicularizado pelos mercados” para além dos limites do tolerável – sujeito à tutela das instituições internacionais e das agências de notação (ou de rating). Ora, a comunicação política já não visa só formatar a linguagem (storytelling), mas também captar e mergulhar os espíritos nesse “universo espectral” em que os homens políticos são simultaneamente performers (bons, medíocres, maus) e vítimas (às vezes justas, outras vezes injustas). E é nisto que assenta a perversão do discurso político.

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990