“The Mule”, de Clint Eastwood. A arte de cultivar lírios

“The Mule”, de Clint Eastwood. A arte de cultivar lírios


“Correio de Droga” (2018), a última das fitas realizadas e protagonizadas por Clint Eastwood, confirma a rara sensibilidade do cineasta e o seu fascínio por personagens marginais, não convencionais, por muito que isto nos possa parecer contraditório em relação ao conservadorismo ideológico frequentemente assumido pelo cidadão Clint Eastwood. Porventura a grande razão que faz com…


Cada filme de Clint Eastwood em que a câmara do realizador filma o actor Clint Eastwood está destinado a ser uma obra-prima. Não que o realizador não nos tenha dado filmes marcantes como “Meia noite no Jardim do Bem e do Mal” (1997), “Mystic River” (2003) ou “A Troca” 2009). A verdade é que, de cada vez que a câmara de Clint Eastwood nos dá a ver o olhar do actor na pele das suas múltiplas personagens, de Kincaid a Earl Stone, estamos perante uma obra maior. Ficamos desarmados perante este olhar cúmplice e atento aos dramas ocultos na sociedade contemporânea, desamparados ao abandono da nossa própria fragilidade com o pungente ensaio sobre o humano que este olhar representa. Impossível ficar-lhe indiferente, a menos que o espectador seja um cyborg vindo de um qualquer futuro anunciado.

Foi assim com o inesquecível “As Pontes de Madison County” (1995) onde o actor contracena com Meryl Streep no papel de Francesca, diligente mãe de família asfixiada pelas rotinas da casa e pelas teias de vigilância social de uma pequena cidade do Iowa que não lhe deixam espaço para arrumar a sua própria vida. Até ao dia em que um viajante e fotógrafo da National Geographic, Robert Kincaid (Clint Eastwood), lhe vem bater à porta e amor se torna um lugar possível, ainda que breve. A cena da chuva a cair sobre o pára-brisas da carrinha de Kincaid e do carro do marido de Francesca, o som desesperado da escova varrendo o vidro, a tensão da espera no semáforo, a dúvida de Francesca, a dor indizível antes de cada um dos amantes tomar para sempre a direcção oposta no cruzamento, é de uma intensidade e de uma beleza ímpares. Tudo se passa no silêncio e todavia esse silêncio é de uma eloquência avassaladora. Simplesmente comovente.

Foi assim com o prodígioso “Gran Torino” (2008) onde um desiludido Walt Kowalkski, trabalhador reformado da Ford e ex-combatente na guerra da Coreia, vê os vizinhos do bairro residencial de uma cidade do Michigan onde vive desaparecerem um a um, substituídos por imigrantes Hmongs (oriundos do Sul da China, Norte do Vietname e Laos). O racismo e o nacionalismo radicais de Walt, a sua agressividade e desconfiança perante os filhos e os outros, darão lugar a um processo de transformação interior e de abertura cultural que levará o empedernido veterano a deixar em testamento a Thao (jovem Hmong), o seu mais precioso tesouro: o Ford Gran Torino de 1972.

Foi assim com “Million Dollar Baby” (2009), onde um exigente treinador de boxe, Frankie Dunn encontra afinal numa mulher, na determinada Maggie Fitzgerald (Hillary Swank), o campeão de boxe que sempre sonhara mas também a amizade que julgava impossível e a dor de uma tragédia anunciada.

É igualmente assim com este “Correio de Droga” (“The Mule”, 2018), um filme raro, confirmando a rara sensibilidade do realizador e o seu fascínio por personagens marginais, não convencionais, por muito que isto nos possa parecer contraditório em relação ao conservadorismo ideológico frequentemente assumido pelo cidadão Clint Eastwood. Porventura a grande razão que faz com que este filme tenha sido o grande ausente dos Óscares deste ano.

“The Mule”, literalmente, “a mula”, designação para o “correio de droga” que dá origem ao título do filme em português, conta a história do nonagenário Earl Stone, um floricultor falido do Illinois que se vê envolvido com um cartel de droga mexicano, transportando droga do sul dos EUA para Chicago, escolhido justamente por ser a “mula” insuspeita: “um homem velho e branco que nunca foi multado”.

Clint Eastwood dá-nos a ver o retrato de uma América interior que é o avesso da “selfie”de sucesso que habitualmente nos chega deste lado do mundo. Os seus filmes dão-nos a conhecer histórias reais (“The Mule” é uma história baseada numa notícia do The New York Times), contadas de forma clássica, sem pretensões a virtuosismos ou vanguardismos. Histórias de gente simples que ficou na orla de uma sociedade em mudança acelerada, onde a tecnologia aliada à ganância capitalista mais feroz, onde a xenofobia e as diferenças culturais, as questões de género, a corrupção e a violência, a escravização no trabalho se tornaram o rosto visível de uma sociedade cada vez mais desigual e desumana. Uma sociedade que “não é para velhos”, como não o parece ser igualmente para os afectos ou para a família, quase sempre em vias de desagregação nos filmes de Clint.

Earl Stone é um homem em conflito com a família que o acusa de toda a vida ter colocado o negócio acima das suas obrigações familiares (no início do filme, ficamos a saber que Earl faltara dez anos antes ao casamento da filha para receber um prémio numa feira de floricultura), mas sobretudo em conflito consigo próprio, a braços com o peso do passado e uma culpa sem redenção. Censurado pela mulher (Diane Wiest), Earl deixa escorrer perante nós a sua ternura pelas flores, pelos lírios que amorosamente cultiva e são afinal o desabrochar daquilo que em si há de mais humano: as flores, diz ele, precisam de cuidados para florir e viver em plenitude o breve instante de cor que a vida lhes concede. Earl, como o nosso portuguesíssimo Caeiro, ama “as flores por serem flores directamente”, sem passado nem futuro, sem o viés do pensamento, por nada exigirem em troca, pelo seu modo simples de ser perfume e cor por um instante. Tal como o poeta, Earl sabe que “gozar uma flor é estar ao pé dela inconscientemente”, olhá-la como ela deve ser olhada, cuidá-la como uma dádiva de imarcescível beleza, de infinita ternura. Não admira por isso que o desespero de Earl perante a falência da empresa de floricultura (provocada pela concorrência da Internet), bem como o sentimento de culpa em relação à família o levem a aceitar, ainda que de modo não totalmente consciente, a missão de transportar droga.

O que mais nos toca neste filme é o olhar de Earl, o silêncio que ele transporta e onde as palavras florescem em todas as gradações de tons emotivos e de modo tão natural como os lírios de Earl, sem necessidade de serem ditas. O modo como observa, de modo crítico e ao mesmo tempo enternecido, uma realidade em mudança. Mesmo quando esse olhar nos revela o desamparo de um homem exilado num mundo que se converteu em lugar estranho e num tempo que deixou de ser o dele. O que mais nos comove não é a fragilidade de Earl, a debilidade física enquanto marca da passagem que o tempo deixa no realizador e na “persona” ficcional, o que, em última instância, convocaria apenas a comiseração do espectador (o tema do envelhecimento é, aliás, uma obsessão em Clint Eastwood). O que nos comove e nos perturba, é antes a enternecedora candura de um olhar onde mora a fragilidade do humano em que de algum modo nos reconhecemos, é a resiliência de Earl, a sua argúcia, o seu modo simples de ser, a sua força interior, a sua contagiante alegria de viver: Earl canta canções folk/ country, dança, bebe, vai para a cama com mulheres mais novas (incluindo no cardápio um “ménage à trois”), afasta-se da rota para ir comer a melhor bifana ou o melhor hamburger, chora, ri, dispõe-se a aprender a escrever mensagens no telemóvel, tem sentido de humor, uma ironia tão fina quanto corrosiva e divertida. Veja-se, por exemplo, o modo como brinca com os estereótipos raciais e sexistas entranhados na sociedade americana em duas ou três cenas magistrais em que a linguagem politicamente incorrecta em contexto intergeracional e interétnico tem tanto de provocador como de complacente desconstrução humorística.

Mais do que os sacos de cocaína no valor de três milhões de dólares, Earl transporta o peso do passado (como quase todas as personagens de Clint) uma culpa que exige expiação e faz das cerca de doze viagens de “correio” uma espécie de via-sacra que, significativamente, culminará com Earl a conduzir com o rosto a escorrer sangue depois de ser agredido, pouco antes de ser apanhado por Colin Bates (Bradley Cooper), agente da DEA. Uma culpa que assume, num gesto de autopunição, à barra do tribunal, mesmo se a família o perdoou entretanto, incluindo a mulher a quem acompanha nos últimos dias de vida. A tragédia íntima de Earl, a sua culpa, como ele próprio reconhece, foi a de ter desperdiçado tempo em troca de um vazio, a de ter preferido o trabalho à família a troco da falência e da solidão: “com o dinheiro eu posso comprar tudo, mas não posso comprar tempo”. “Don’t do what I did, don’t put the work in front of your family”, diz-nos, em jeito de conselho, o floricultor que, como se sabe, sempre foi para a arte (e para a literatura, em particular), enquanto aprimoramento da natureza, um ofício divino. Earl encontrará a paz na prisão onde o vemos a cuidar das suas flores, a cultivar amorosamente os lírios.

Nestes tempos em que a precarização, a desumanização e a “escravização” laborais estão na ordem do dia, é cada vez mais urgente olhar nos olhos de Earl. Na primavera da nova era geológica a que Paul Crutzen chamou “antropoceno”, na qual se confirma cada vez mais o triunfo absoluto do homem sobre a natureza e nesta se torna cada vez mais visível o impacto global da acção humana (por exemplo, ao nível das alterações climáticas e dos ecossistemas), a questão que se impõe é a de saber se haverá no futuro lírios a florescer, sem outra razão de existir ou oculta utilidade que a de encher de perfume e de cor o instante dos dias. Lírios no campo ou no jardim familiar. E com esses lírios, a de saber se haverá ainda olhos humanos que os saibam ver e por eles se deixem enternecer. Olhos humanos que ainda saibam amar.