Jorge Falcato. “Sou discriminado todos os dias. Não podemos viver de jeitinhos”

Jorge Falcato. “Sou discriminado todos os dias. Não podemos viver de jeitinhos”


O único deputado em cadeira de rodas recebeu o i no parlamento para uma entrevista. Em ano de arranque da vida independente, lamenta que as pessoas com deficiência continuem a sofrer o “paradigma do coitadinho”


{relacionados}

É o único deputado na Assembleia da República (AR) com mobilidade condicionada. Desde que chegou aqui sofreu algum tipo de discriminação?

Isso tem piada, penso que a única discriminação que senti foi haver alguma… não sei se é condescendência, não é bem isso. Senti um tratamento diferente face a outros deputados, mas agora é capaz de estar já a desaparecer. Nas primeiras vezes em que falava, por exemplo, no plenário, fazia–se um silêncio enorme e não havia apartes, e isso revela alguma discriminação e não acontecia com outra pessoa que estivesse a falar e, se calhar, a dizer a mesma coisa. Não é uma coisa positiva.

Está na AR desde 2015. Como tem sido a experiência?

É muito gratificante quando se consegue aprovar alguma coisa, alguma coisa que vai efetivamente melhorar a vida das pessoas. Foi muito gratificante ter conseguido, por exemplo, que os estudantes com deficiência no ensino superior não pagassem propinas. Considero que é uma medida que se justifica plenamente porque um estudante com deficiência tem despesas muito maiores para andar a estudar do que outro qualquer, é uma questão de justiça, e foi realmente útil para uma série de gente. Muito gratificante foi também ter conseguido que o estacionamento indevido em lugares reservados a pessoas com deficiência fosse considerado uma contraordenação grave, o que dá o direito a esses oportunistas de terem um desconto de pontos na carta. Depois há outros momentos que são um pouco frustrantes, em especial aqueles em que se fazem propostas que se considera que são perfeitamente justas e que, por vezes, até nem têm grande impacto orçamental, e são recusadas.

Quando aqui chegou, a AR não estava minimamente preparada para receber uma pessoa com mobilidade condicionada e foram feitas várias alterações. Isso acabou por ser positivo e o impacto ultrapassou a AR, não foi?

Sim, porque mostrou que se pode adaptar qualquer edifício. E a adaptação para chegar à tribuna, por exemplo, é uma adaptação complexa e conseguiu-se fazer, não afetou em nada a imagem do parlamento. É a demonstração de que, se houver vontade e financiamento, pode-se adaptar o país todo. Eu, na altura, até disse ‘neste momento está o parlamento adaptado, falta o país’.

O país tem um problema de acessibilidade.

Tem. Adaptar o parlamento é relativamente fácil e é demonstrativo de que é possível, mas falta o país todo e é um problema do país todo.

E o que é preciso para o resolver?

Dinheiro. Dinheiro e vontade política. Aquilo que defendo é que todas as câmaras deviam reservar uma percentagem do orçamento para investir em acessibilidade, porque nós temos legislação já há 22 anos. Há 22 anos que há lei e normas técnicas para se tornar tudo acessível e a primeira legislação estabeleceu um prazo que era setembro de 2004. A mim prometeram-me, o Estado português, através de uma lei que foi aprovada nesta AR por unanimidade, prometeu-me a mim e a todas as pessoas com deficiência e mobilidade condicionada que eu poderia usar as cidades conforme me apetecesse. E realmente chegámos a setembro de 2004 e a situação era a que sabemos. Veio a fazer–se uma nova lei em 2006 que, no fundo, amnistiou todos os incumprimentos que houve para trás – não se aplicaram coimas nem nada – e essa lei deu um novo prazo, que acabou em fevereiro de 2017. Novamente, uma promessa que o Estado português fez a todas as pessoas com deficiência, de que poderiam ter uma vida conforme quisessem, como qualquer outra pessoa. As pessoas com deficiência continuam a ser discriminadas no uso das cidades, no uso dos edifícios públicos, de todos os espaços públicos.

Ainda há pessoas fechadas em casa?

Há anos fechadas em casa, sujeitas a ter de pedir aos amigos para as tirarem de casa ou terem de pagar aos bombeiros para as tirarem de casa, e isto, no fundo, é a demonstração de que não estão a ser cumpridos os direitos humanos em Portugal, porque os problemas das pessoas com deficiência são um problema de direitos humanos.

Devia haver uma sensibilização da sociedade em geral?

Acho que as pessoas com deficiência deviam tornar-se mais visíveis.

Terem mais oportunidades?

Referia-me às pessoas com deficiência, elas próprias, tornarem-se mais visíveis por elas. Devem ter consciência da sua situação e da pessoa que é discriminada. Acho que muitas das pessoas com deficiência não têm ainda a consciência da discriminação que sofrem, porque penso que se tivessem essa real consciência seriam bastante mais ativas na mudança da sua situação. Acho que falta também esse ativismo, o movimento das pessoas com deficiência para exigirem os direitos que têm. Lembro-me de um estudo já de há alguns anos em que perguntavam às pessoas com deficiência se alguma vez se tinham sentido discriminadas. E no estudo, que foi feito com o ISCTE e outras instituições, só 3% das pessoas é que diziam que se tinham sentido alguma vez discriminadas. Ora, eu sou discriminado todos os dias, todos os dias sou discriminado quando ando na rua, quando quero ir a um restaurante que não é acessível. Temos esta tradição judaico-
-cristã da caridade, do “se for preciso dá–se um jeitinho”, e nós não podemos viver de jeitinhos. Eu não quero, para entrar num restaurante, ter de pedir para me darem um jeitinho, quero ter autonomia como outra pessoa qualquer para entrar num restaurante.

No panorama dos países europeus, é mais difícil ser uma pessoa com deficiência em Portugal do que nos outros países?

É muito relativo, sabe? Mesmo dentro de alguns países varia muito. Se estamos a falar, por exemplo, da mobilidade, varia muito de cidade para cidade. Há cidades que são muito mais amigáveis do que outras.

E a nível de respostas para a deficiência?

Isso já é diferente. A situação da pessoa com deficiência, mesmo aqui ao lado em Espanha é melhor do que a nossa. Em França também é bastante melhor – embora se queixem. Em Inglaterra é bastante melhor e na Suécia melhor ainda, embora com as políticas de austeridade tenha havido cortes em quase todos estes países nos apoios às pessoas com deficiência.

Quando ficou numa cadeira de rodas tinha 24 anos. Foi um agente da polícia, não é verdade? Assistimos recentemente a uma polémica em que se acredita ter existido abuso de autoridade, mas no seu caso tratou-se disso?

Sim, houve claramente. Eu estava a manifestar-me contra a realização de uma manifestação fascista, no 10 de junho de 1978. E quando cheguei ao local tinha havido umas escaramuças e já não estava a acontecer nada, e eu, a certa altura, já me ia embora e de repente comecei a ouvir tiros e voltei atrás para ver o que se passava. Estava em pé, sem nada na mão – agora fala-se de se atirar pedras, não é? –, e há um polícia que me atinge a cerca de 60 ou 80 metros com um tiro de G3 no peito. Esse polícia, depois de me atingir, ainda avança e vai matar um jovem estudante de Medicina, o Zé Jorge Morais. Foi um abuso total de desproporção e de reação da força policial.

Foi a tribunal.

Sim, mas o julgamento só foi feito dez anos depois e da investigação que houve da PJ era claro que era aquele polícia que tinha atirado porque era o único que tinha uma G3.

Viu a pessoa que o atingiu?

Sim. Aliás, foi um ano um pouco difícil para mim, porque o julgamento durou quase um ano com sessões todas as semanas ou de 15 em 15 dias, já não me lembro bem, onde eu tinha de enfrentar não só esse polícia como todos os restantes que foram testemunhar e que mentiram descaradamente em todo o julgamento. Tudo aquilo que eles tinham declarado à PJ na investigação, no julgamento desmentiram tudo e trocaram as histórias todas de maneira a fazer com que não fosse provada a culpabilidade daquele polícia, e por isso ele foi em liberdade, embora o juiz tenha dito na altura que, apesar de ele ter sido considerado inocente, não era essa a sua convicção.

Foi para o hospital, esteve internado…

Sim e estive sempre consciente, tirando na operação. Quando levei o tiro, a primeira coisa que pensei foi que é muito fácil morrer, porque não me doía nada – é estranho, um tiro, pelos vistos, não dói, talvez porque me atingiu a coluna –, mas depois lembrei-me que tinha uma filha com 13 dias e aí achei que tinha de viver. Associava o desmaiar a morrer e então mantive-me sempre acordado até chegar ao hospital.

E em relação à situação e ao polícia em específico, o que sentia?

Sinceramente, já lá vai muito tempo, não consigo lembrar-me exatamente. De certeza que me sentia revoltado com a atuação daquele polícia e, se calhar, se o tivesse apanhado um dia à frente teria no mínimo dito qualquer coisa desagradável. Mas (pausa)… não sei.

E hoje, o que sente relativamente ao polícia?

Espero que a vida não lhe tenha corrido bem, é a única coisa. Espero que não lhe tenha corrido nada bem a vida porque assassinou uma pessoa e deu-me um tiro a mim. Já que não foi preso, ao menos isso.

Em relação a todo este caso do Bairro da Jamaica, na sua visão houve abuso de autoridade? O que lhe parece?

O inquérito há de fazer o filme todo dos acontecimentos. Agora, olhando para o que nós vimos, que foi aquele vídeo, parece-me que não há justificação para aquele uso desproporcionado de força. Mas o problema, aqui, não é só o caso da Jamaica, o problema é que sabemos que há intervenções destas nos bairros e as pessoas dizem que é porque há violência nos bairros, mas a violência traz violência. Eu já vivi num bairro social.

Quando?

Sou péssimo para datas.

Mas foi há muito tempo?

Sim, há bastante tempo. E nunca tive problemas nenhuns no bairro e, aliás, via até solidariedade entre vizinhos, nunca tive problemas de violência. Havia às vezes umas escaramuças, normal. Eu não via a polícia atuar daquela maneira se fosse ali na João xxi, se houvesse um desacato entre duas pessoas, e mesmo que houvesse alguém que atirasse uma pedra, de certeza que não veria a polícia com aquele comportamento a bater em pessoas brancas. Há aqui qualquer coisa que temos de repensar e resolver. É preciso pensar em melhorar as condições de vida das pessoas, em melhorar a vida dos bairros, arranjar emprego, porque isso é que vai alterar-lhes completamente a vida e permitir-lhes terem outras perspetivas de vida. Esse ciclo de violência é também alimentado por más condições de vida, habitação, emprego e racismo, que realmente existe.

Tinha 24 anos, já não era um miúdo. De repente estava numa cadeira de rodas. Como foi o processo de adaptação, muito duro?

Eu era uma pessoa muito racional, se calhar era mais racional do que sou hoje. Tentei racionalizar. O meu pai, a certa altura, pôs um psiquiatra à minha cabeceira, ainda no hospital. E lembro-me que passado algum tempo falei com esse psiquiatra e ele disse-me: “Tu realmente eras um gajo estranho, eras tão racional, tão racional que nunca choraste, nunca te vi chorar.” Se calhar, foi essa racionalidade que me fez aguentar bem a coisa.

Exercia arquitetura na altura?

Não. Tinha desistido da arquitetura. Estava a trabalhar no Algarve, a dar aulas. Depois, quando levei o tiro, houve um professor que me chamou à razão e disse-me que era melhor tirar o curso, o Francisco Silva Dias, e foi impecável, foi ele que fez com que eu voltasse ao curso. Eu ainda estava em Alcoitão a fazer recuperação e ele teve a gentileza de me ir dar aulas a casa. Ao fim de semana, eu ia a casa e ele ia dar-me aulas de Planeamento. Nesse ano fiz a cadeira de Planeamento, de terceiro ano, e voltei para a escola no ano a seguir.

E acabou o curso.

Sim, acabei.

E entretanto foi para a Câmara Municipal de Lisboa (CML). Como foi o trabalho lá? Teve oportunidade de pensar a questão das acessibilidades, por exemplo?

Sim, quase sempre trabalhei nessas questões. No fundo, especializei-me nessa área, durante 20 e tal anos foi a área em que trabalhei, e antes de vir para a AR tive uma grande alegria que foi conseguir fazer com a minha equipa o Plano de Acessibilidade da cidade de Lisboa, que está neste momento em execução. Era uma coisa que eu andava a preconizar e a batalhar há 20 anos.

Como é o plano? De que forma vai melhorar a vida das pessoas com deficiência?

Já se arrancou tarde, já se devia ter começado há muito mais tempo, paulatinamente, a ir tornando a cidade acessível. Porque uma cidade com a dimensão de Lisboa não se consegue tornar acessível de um dia para o outro. É uma cidade com características muito próprias: temos problemas com o tipo de pavimento, a calçada portuguesa é muito má em termos de acessibilidade, é desconfortável, perigosa… Depois temos uma cidade com uma inclinação um bocado complicada nalgumas zonas, mas que também não é assim tanto quanto a ideia das sete colinas sugere.

Foi anunciado recentemente um financiamento de 15 milhões para acessibilidade.

Sim, ainda há dias questionei o senhor ministro e a senhora secretária de Estado acerca disso, que é para nós termos um pouco a noção do que é este financiamento: se for todo utilizado a eliminar barreiras arquitetónicas, como tem um teto de 200 mil euros em cada autarquia, serve para cada autarquia adaptar oito cruzamentos. A pessoa vê este valor de 15 milhões e acha que vai mudar a vida das pessoas, mas são oito cruzamentos em cada autarquia que tenha acesso ao dinheiro.

Falou da calçada, mas que alternativas existiriam? Defende a retirada da calçada?

Houve uma grande polémica por causa da calçada há um tempo, que foi aliás baseada numa má comunicação da câmara sobre a questão do plano de acessibilidade, que deu a entender que se iria tirar a calçada toda. Não. Aquilo que se propõe é, sim, haver pavimentos diferenciados. Há pavimentos que são muito mais confortáveis do que outros e o que é um facto é que, nestas novas intervenções que houve – na Avenida da República, por exemplo –, vemos que as pessoas andam no pavimento que é liso e é mais confortável, parece que às vezes fazem quase fila indiana.

Não ambicionava ser deputado, pois não? Veio da CML para aqui, como foi esse processo de transição?

Não, nunca me tinha passado pela cabeça. Um dia, a Catarina Martins telefonou me a dizer que queria falar comigo e propôs-me ser candidato. Devo dizer que na altura pensei que não me estava sequer a ver como deputado.

Se bem que foi sempre ativista político.

Sim, sim. Há uma militância depois do 25 de Abril e antes, numa unidade estudantil. Mas realmente não me estava a ver como deputado e ainda hoje não me sinto bem deputado.

O que se sente?

Sei que sou deputado, mas não é propriamente a minha praia. Ainda assim penso que tenho estado a cumprir e a cumprir bem, mas realmente não era um objetivo de vida e acabei por ficar bastante surpreendido. Quando a Catarina Martins falou comigo, pensei que ia usar a oportunidade para levantar as questões da deficiência e dar visibilidade aos problemas das pessoas com deficiência. E essa foi uma das maiores vantagens da minha eleição, dar visibilidade à pessoa com deficiência. E é verdade que a minha entrada no parlamento trouxe uma visibilidade que as pessoas com deficiência não tinham e mesmo do ponto de vista da atividade do parlamento, neste momento não há dúvida de que nunca se falou tanto nos problemas que afetam as pessoas com deficiência. Esse é um dos grandes problemas da deficiência: ser invisível, é uma espécie de cidadão de segunda e que ainda por cima é invisível, e isso tem de ser alterado.

O que destaca relativamente a projetos de lei ligados à deficiência desde que está na AR?

A vida independente, claramente, apesar de o que está a ser materializado não ser o projeto que o Bloco de Esquerda (BE) subscreveria na totalidade. O BE ainda no anterior governo apresentou uma proposta de resolução que foi chumbada pela maioria de direita, que propunha ao governo fazer o projeto piloto de vida independente. Nessa altura, eu estava com o movimento dos Deficientes Indignados e a partir desse movimento conseguiu colocar-se na ordem do dia a questão da vida independente, e também na agenda política. Nesta legislatura, logo no primeiro Orçamento do Estado, havia uma norma para se fazerem os projetos piloto de vida independente.

O que acha dos projetos?

Depois do processo todo que houve, longo e lento, para os lançar, há questões que nós defendemos que não fossem assim porque desvirtuam um pouco aquilo que é a filosofia de vida independente. Uma das questões foi a exigência de que fossem as IPSS a gerir os projetos, que na sua maioria têm um posicionamento face à deficiência que não era realmente coincidente com aquilo que é a filosofia de vida independente – dar poder às pessoas com deficiência –, são organizações que advogam a institucionalização das pessoas com deficiência em lares residenciais e agora estão a trabalhar com uma realidade que é um paradigma completamente diferente, que é a filosofia de vida independente.

E que mais?

Além disso, outra coisa mais grave foi a proposta inicial do governo, que era que houvesse direito a até 40 horas semanais de apoio e 10% das pessoas de cada Centro de Apoio à Vida Independente (CAVI) poderiam ter até 24 horas. Isso para nós era muito pouco e conseguimos negociar com o governo e aumentar a percentagem para 30% – ou seja, 30% das pessoas em cada CAVE teriam direito a até 24 horas de apoio diário. Mas quanto a nós o que deveria ser era as horas necessárias para a pessoa conseguir realizar o seu projeto de vida, há pessoas que precisam de 20, há pessoas que precisam de 40 horas por semana. Os 30% estão na lei, mas quando foram feitas as candidaturas à gestão dos projetos piloto foi estabelecido um teto de financiamento por cada CAVI que impossibilita o cumprimento integral da lei. Portanto, vamos ter as tais instituições habituadas a gerir lares residenciais e apoios domiciliários e que vão ter alguns 50 utilizadores, que com este teto de financiamento poderão ter duas ou três horas por dia no máximo.

Não é suficiente.

Não é suficiente. As pessoas que estão mais dependentes nunca vão tornar-se autónomas com este nível de financiamento. E isto é um problema grave porque os projetos piloto, como diz o seu nome, seriam para experimentar uma solução, e vamos experimentar uma solução com limitações tão grandes que a avaliação dos projetos piloto da qual resultará uma lei de vida independente pode estar condicionada por estas limitações. Que lições vamos tirar desta experiência quando formos fazer a lei? Vamos ter de ter muito cuidado. Sabemos de todas as experiências internacionais que existem que a vida independente é a solução mais adequada e melhor, mesmo se falarmos em termos económicos. Por exemplo, o dinheiro que é investido na assistência pessoal é dinheiro que é investido na criação de emprego direto, não há intermediários e as pessoas com deficiência vão também consumir e pagar impostos, que são ganhos que não se conseguem quando uma pessoa está internada num lar.

Questionei o Ministério para perceber quantas pessoas vão estar abrangidas pelos projetos piloto e disseram-me que serão cerca de 800. O que lhe parece esse número?

A primeira vez que o projeto foi apresentado aqui na AR era para abranger 200 pessoas e o que acontece é que se está a transformar um projeto piloto numa espécie de medida política que depois não é carne nem é peixe, porque nem é universal nem é um projeto piloto, porque como já falamos não vai ser possível as pessoas terem as horas de que necessitavam. Este não ser carne nem peixe prejudica tudo. Está a haver o abastardamento daquilo que é a vida independente e isso custa-me porque estive uns anos a batalhar por isto e há um perigo, que também existe a nível internacional, que é a apropriação do termo ‘vida independente’ por práticas que não têm nada que ver com isso.

De que forma?

Empresas que fazem serviço domiciliário em que não se respeita a vontade da pessoa com deficiência. A vida independente tem uma característica fundamental, que é ser a pessoa com deficiência que decide, que contrata ou que está integrada numa organização que contrata o seu assistente pessoal. E o assistente pessoal faz as tarefas que a pessoa com deficiência não consegue fazer, é uma extensão da pessoa e faz as tarefas quando a pessoa com deficiência quer, da maneira que ela quer e não é um apoio domiciliário. Um assistente pessoal faz tudo, desde as tarefas da higiene, cozinhar, limpar a casa, conduzir o automóvel. E não podemos deixar que o conceito seja apoderado por pessoas que têm outra visão do que é uma pessoa com deficiência, que é autónoma e que tem capacidade de decisão e não é uma pessoa de quem se cuida. Tem de se deixar esse paradigma do ‘coitadinho’, dar-lhe comidinha e conforto e chega, uma pessoa com deficiência é uma pessoa como outra qualquer com direitos que têm de ser cumpridos e há que criar as condições para que todas as pessoas com deficiência tenham acesso a todos os direitos humanos.

É exagerado dizer que com os projetos piloto começa a haver uma estratégia nacional para as pessoas com deficiência?

É. Ainda ontem por acaso interpelei o ministro e a secretária de Estado acerca da ausência da estratégia. Nesta legislatura houve coisas boas, na área da deficiência avançou-se em muitos campos: a prestação social para a inclusão, por exemplo, é uma ótima iniciativa e pela primeira vez há uma prestação que compensa os custos da deficiência. Mas quanto à estratégia, é aquilo que é mais necessário e que foi o maior erro na política do governo. Porquê? Porque não sabemos para onde vamos. Não temos uma estratégia, não sabemos onde vamos e temos neste momento políticas contraditórias – tanto se diz que o futuro é a vida independente como se continua a aumentar o número de camas em lares residenciais. São políticas contraditórias, quando neste momento quer a União Europeia, quer a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, quer o Conselho da Europa dizem que é preciso desinstitucionalizar as pessoas e fechar lares residenciais e nós continuamos a fazer ao contrário. O Comité Para os Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas, que faz o acompanhamento da implementação em Portugal da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, solicitou em abril de 2016 ao Estado português que apresentasse informação por escrito , num prazo de 12 meses, sobre as medidas adotadas para implementar a nova estratégia nacional da deficiência. Um mês antes de acabar o prazo – março de 2017 –, o governo português informou o comité de que já estava a trabalhar na estratégia e que iriam ser envolvidas as organizações das pessoas com deficiência. Ontem perguntei em que estado estava a estratégia e a única coisa que me disseram foi que estavam a trabalhar nisso e que durante este ano haveria uma estratégia, o que dá um desfasamento de quase três anos em relação à exigência do comité. É fundamental haver uma estratégia porque a deficiência depende de todas as áreas da governação, da economia à cultura à educação, e se não há uma estratégia integrada não temos garantia nenhuma de que isto vai no sentido correto.