Bruno Ganz. O ator que encarnou o homem entre o céu e o inferno

Bruno Ganz. O ator que encarnou o homem entre o céu e o inferno


Um nativo dessa devastadora e devastada Europa que a todos nos tornou estrangeiros, vendo estilhaçar-se as últimas ilusões que tínhamos sobre a humanidade, o ator suíço morreu no sábado aos 77 anos, depois de no verão passado ter recebido um diagnóstico de cancro no cólon


Se a Europa, enquanto palco trágico, conta com um espetro fascinante de personagens que vão do bem ao mal, e até para lá deles, no sentido de nos dar um retrato aproximado das convulsões da vida e da história do Velho Continente, Bruno Ganz estava entre essa mão-cheia de atores cujo rosto já de si nos provocava um assombro, uma inquietação diante de todas as possibilidades que uma expressão sua, feita assim ou assado, poderia significar para nós. O ator suíço que desapareceu este sábado, aos 77 anos, convenceu-nos tanto quando fez de Anjo como quando foi Hitler, nos seus últimos dias. Foram muitos os obituários que mencionaram esta notável capacidade de trocar o céu pelo inferno. Mais do que o imenso percurso dividido entre o teatro e o cinema, da sua carreira suspende-se um ícone, uma figura capaz de dramáticas focagens e desfocagens, de nos dar esses elementos de leitura subtil que impregnaram tão fortemente a cultura popular, ao ponto de Ganz ser ao mesmo tempo um ator de culto e uma presença de enorme notoriedade.

O mais belo epitáfio, entre as tantas homenagens na reação à sua morte, foi o do “The New York Times”, que nos falava desse melancólico ator suíço que nos apareceu como um anjo ansiando saborear os viscerais prazeres da mortalidade em “As Asas do Desejo” (1987), de Wim Wenders, e depois um Hitler já de frente para os demónios de uma derrota certa, encarando o fim, em “A Queda” (2004), de Oliver Hirschbiegel. Dois papéis e filmes com enorme repercussão, e ambos refletindo sobre a Berlim que se tornou um “grande laboratório da modernidade”. Há a Berlim subterrânea, a dos labirintos de bunkers, das imensas zonas industriais abandonadas, aquela que se tornou “um monte de destroços para almas perdidas” (Durs Grünbein) depois de a Alemanha do III Reich ter soçobrado e com ela o sonho grotesco do homem que se tornou a mais célebre personificação do Mal, e depois há essa cidade separada pelo muro, essa que Grunbein descreve como “um saco no qual desde há séculos foi enfiado tudo e mais alguma coisa, o ferro-velho da história e toda a espécie de farrapos urbanos (…) uma cidade que ressuscita uma e outra vez dos seus escombros e das suas especulações fracassadas”.

É curioso e significativo que um suíço, que nasceu, em 1941, em Zurique, e nessa mesma cidade morreu este fim de semana, tenha acabado por se tornar uma estrela do cinema alemão, uma presença que se cruza connosco nesse sonhar acordado, no imaginário que envolve a mais truculenta das capitais europeias. É uma complexa profundidade, uma mistura de raízes, que leva a que em Berlim, mesmo depois da queda do muro, todos continuem a sentir-se “estrangeiros e descrentes”, é essa a qualidade que este ator deu às suas representações. De tal modo que, quase duas décadas depois daquele anjo que velava as almas perdidas no filme em que Wenders regressou à Alemanha, enfrentando as marcas de guerra e a ferida esquizofrénica entre Leste e Oeste, Bruno Ganz para muitos foi competente até demais ao representar “o” monstro. Foi possível, como não acontecera antes, ver um homem em Hitler, e muitos não perdoaram isso ao filme histórico sobre os últimos 12 dias do ditador e que se tornou um sucesso de bilheteiras europeu, fazendo 82 milhões de euros.

Se há tantos outros papéis e produções cinematográficas e teatrais que Ganz protagonizou e pelas quais merece ser lembrado – incluindo o seu papel em “A Cidade Branca”, que rodou em Lisboa, no início da década de 1980, contracenando com a atriz Teresa Madruga -, a sua representação de Adolf Hitler tornou-se tão marcante pois, tendo sido acusado de humanizar um monstro, o que Ganz fez foi conciliar os dois, integrar a monstruosidade no humano. Além de ter dado origem a uma infinidade de memes, paródias com eventos da atualidade roçando o descalabro, mudando o texto às legendas do alemão, ao encarnar o ditador, Ganz soube lidar com esse infindável território onde emoções e pulsões se sucedem, onde o tumulto interior nunca se resolve, e não passa por nenhuma forma de transparência. Um ator menor teria cometido o erro de emitir um juízo sobre Hitler, mas o suíço deu-lhe a devastadora presença de um homem que se debate entre a megalomania e a sensação de que tudo lhe foge, uma queda que nos arrasta com ele, ao invés de nos deixar de fora, celebrando a desagregação do seu mundo. Aquele ditador velho, curvado, doente, e com as mãos trémulas, alternando entre a fúria e o desespero, provocou reações muito fortes, e mistas. Entre os que aplaudiram, como lembrou o jornal “Público”, esteve um dos mais destacados biógrafos de Hitler, Joachim Fest, que considerou o trabalho de Ganz soberbo, transmitindo os desequilíbrios da sua personalidade. “É realmente Hitler”, disse Fest. “Quando o vemos, sentimos calafrios.”