Marco Martins. “Quando fiz o São Jorge nunca pensei que poderia transformar a vida dos moradores do Bairro da Jamaica”

Marco Martins. “Quando fiz o São Jorge nunca pensei que poderia transformar a vida dos moradores do Bairro da Jamaica”


Foi através do seu filme que António Costa conheceu o Bairro da Jamaica, tendo logo prometido acabar com aquela realidade.


Depois do vídeo que se tornou viral e que levou centenas de jovens negros, a maioria de bairros periféricos, ao centro de Lisboa para uma manifestação sem precedentes contra a violência policial e o racismo, o Bairro da Jamaica – palco do incidente que se transformou no gatilho para o início da discussão sobre dois temas normalmente ausentes das agendas política e mediática – foi por várias vezes referido como o bairro que serviu de cenário a um filme: “São Jorge”, de Marco Martins. António Costa, que em 2017, quando o filme se estreou, admitiu que aquela era uma realidade que não conhecia, voltou a visitá-lo; em programas de debate televisivo, o filme foi por mais do que uma vez citado. Se o país conhece o Bairro da Jamaica, conhece–o através do olhar de Marco Martins, que acompanhou os acontecimentos das últimas semanas à distância — de Great Yarmouth, em Inglaterra, onde tem estado a preparar o seu próximo filme, centrado no “trabalho quase escravo dos portugueses nas fábricas em Inglaterra”. Numa conversa sobre o lugar e a forma como o cinema e a realidade se intercetam, o realizador do filme protagonizado por Nuno Lopes fala sobre o papel que acredita ser o do (seu) cinema. E conta a história que nunca tinha contado sobre uma cena que escreveu para “São Jorge” e que cancelou no dia da rodagem: “No guião havia uma cena em que uma personagem era retirada da sua casa pela polícia – uma cena muito parecida com aquela que agora circulou nas redes sociais.” No momento em que a polícia chegou, “fortemente armada”, decidiu retirar a cena do filme: “A tensão era tão grande que era impossível filmar ali o que quer que fosse. É daquelas alturas em que, de facto, o que está a acontecer ultrapassa muito aquilo que se escreveu.”

“São Jorge” foi feito com a intenção de ficar como um retrato de um tempo, um documento histórico sobre aqueles que foram os anos da crise. Mas depois da reação de António Costa, que admitiu não fazer ideia de que o Bairro da Jamaica existia, com pessoas a viverem em condições tão precárias como aquelas, o filme acabou por cumprir um papel bem mais ativo do que aquele que tinha imaginado inicialmente. 

Na altura da estreia, o primeiro-ministro ficou logo muito impressionado com o retrato que o filme fazia da crise e houve uma vontade de mudança. Depois contou-me que passado uns dias [da estreia, na Cinemateca Portuguesa, em que esteve presente, juntamente com muitos habitantes do bairro], numa visita ao Alfeite, pediu para passar por lá. Porque não acreditava que fosse exatamente assim.

Viria a dizer depois que era ainda pior.

Exato. Na pesquisa para o filme comecei a pesquisar os bairros sociais e os bairros degradados da Margem Sul, e a Jamaica era um sítio quase proibido. Disseram-me que era um bairro onde não se podia entrar, onde nunca ninguém tinha filmado… E fiquei muito impressionado, porque eu próprio não conhecia a Jamaica.

O que se tornou evidente com “São Jorge” foi que praticamente ninguém conhecia aquele bairro – e que, da mesma maneira que isso aconteceu, outras realidades a necessitar de intervenções urgentes permanecem esquecidas.

Pois. Foi um amigo fotógrafo da Margem Sul que me guiou nas primeiras repérages na Margem Sul. E houve um dia em que passámos de carro perto da Jamaica, percebi que nunca se tinha feito nada sobre aquele sítio e interessei-me. Depois comecei a ir lá periodicamente: pouco a pouco, comecei a ir lá almoçar, a conhecer as pessoas do bairro, a conhecer algumas das casas. Achei bastante inacreditável que continuasse a existir um sítio daqueles, e no meio de um centro urbano, num sítio onde passam milhares de pessoas todos os dias — à entrada da rotunda do Seixal. Nessa altura, o processo de escrita do filme já estava bastante avançado, mas de qualquer maneira reescrevi o guião em função daquele lugar. E o que aconteceu foi que o impacto que o bairro teve para mim naquela altura foi, naturalmente, o impacto que depois as pessoas tiveram ao vê-lo. Mas o incrível foi que, naquele bairro que de facto estava muito conotado com marginalidade, com o tráfico, e rodeado de uma série de histórias de pessoas que tinham sido mortas, o que encontrei foi sobretudo um sítio de pessoas que trabalhavam e que, portanto, não era de todo, nem foi para mim enquanto lá estive, um lugar perigoso. Era um sítio onde as pessoas se protegiam umas às outras, onde havia um sentido comunitário grande e onde, portanto, não era fácil entrar, mas onde fui muito bem recebido. Aliás, a cena final do filme é uma festa…

Como as que eles costumam fazer.

Como as que existiam no bairro, à sexta ou ao sábado, em que os habitantes participaram. Uma coisa que nunca contei foi que, a dada altura, no guião havia uma cena em que havia uma personagem que era retirada da sua casa pela polícia – e era uma cena muito parecida com aquela que agora circulou nas redes sociais. 

Mas essa cena não aparece na versão final. 

Não. Para já, porque ia usar polícias verdadeiros (quando se quer utilizar carros de polícia pede-se uma autorização, e como era um filme com um orçamento relativamente baixo, acaba por se usar a polícia mesmo, para figuração), mas quando a polícia chegou ao bairro vinha fortemente armada com espingardas, etc. Para poder ter ali [no filme] a polícia, a polícia exigia muita segurança. Era tanto o aparato policial que achei que o filme ia acabar naquele momento.

Sentiu que era ofensivo?

Era ofensivo, claro, e acabei por desistir e por cancelar a cena, para a polícia se ir embora. Ficou assim. A tensão era tão grande que era impossível filmar ali o que quer que fosse. É daquelas alturas em que, de facto, o que está a acontecer ultrapassa muito aquilo que se escreveu. 

E tinha pensado nessa cena porquê? Porque era recorrente ali?

Porque era recorrente, sim. Essa ideia de haver uma forte presença da polícia, de forma agressiva, ali no bairro foi uma coisa que eu fui vendo. Vi duas ou três vezes durante o tempo que passei no bairro. 

Nesses episódios a que assistiu, pareceu sempre excessivo o uso da força por parte da polícia?

Acho que naqueles bairros existe sempre um uso excessivo da força que acho que, como aliás eles dizem, não tem a ver com o facto de este ser um país com uma cultura racista, mas sobretudo com uma ideia de que as pessoas que vivem ali são potencialmente perigosas ou que estão potencialmente envolvidas no tráfico. Isso não corresponde de todo à realidade do bairro, como aliás se viu agora pelas pessoas que estão a ser realojadas, que são sobretudo famílias. 

Como acompanhou as reações à divulgação daquele vídeo que se tornou viral e a manifestação contra a violência policial e o racismo que terminou mal na Avenida da Liberdade?

Estava no Reino Unido. Acho que de vez em quando há assim uns epifenómenos em que um momento específico ou uma imagem específica cristalizam várias tensões que sempre estiveram presentes mas que as pessoas têm tendência a ignorar no seu dia-a-dia. Mas acho que nestes casos há de tudo: há um aproveitamento também em relação àquele acontecimento; há as pessoas, que sempre fizeram um trabalho de denúncia, para quem isto acaba por ser uma oportunidade de exemplo. 

Durante estas semanas, o “São Jorge” entrou várias vezes nas discussões que se fizeram sobre o tema. No primeiro “Sem Moderação” [Canal Q] depois de ter sido divulgado o vídeo, o José Eduardo Martins disse que tinha visto o filme e que ele mostrava que o problema ali não era um problema de racismo.

A questão do racismo era central no filme. É um filme obviamente sobre a crise, mas também sobre uma relação de amor que é marcada por um forte racismo. E que não tem a ver com o Bairro da Jamaica só, é uma questão mais generalizada. Sobretudo em bairros sociais como a Belavista [onde também foi rodado o filme], onde o próprio bairro está dividido entre negros, ciganos, etc., existe uma divisão do bairro que é ela própria muito racista. Mas acho que cada vez existe menos espaço nos jornais, nas televisões, etc. para fazer um trabalho de pesquisa e de maior profundidade sobre temas como a crise e o que foi o período da crise. O meu trabalho em Great Yarmouth sobre a emigração portuguesa, o trabalho quase escravo dos portugueses nas fábricas em Inglaterra e toda esta questão do Brexit também é um trabalho que ajuda a abrir um espaço de reflexão nos jornais e entre políticos, mas essa não é a minha intenção. A minha intenção não é chamar a atenção para um determinado assunto; eu falo das pessoas e das histórias das pessoas pelas quais me interesso num determinado momento. Não é com uma intenção de chocar ou de alertar ou de fazer um trabalho de militância que o faço. Para mim são pessoas e são matérias que me interessam. 

Mas o resultado é essa chamada de atenção.

Acaba por ser um resultado e uma consequência disso que é um espaço cada vez mais reduzido para esses trabalhos de investigação. Se um jornalista quiser ir a Inglaterra fazer um trabalho de investigação sobre isso, não é evidente que a direção lhe vá dar essa oportunidade. E, de repente, aquela comunidade, como por exemplo a comunidade portuguesa em Inglaterra ou o Bairro da Jamaica, ganha uma visibilidade que não tem porque ninguém se ocupa dela. É um bocado isso, no fundo. 
O impacto que pode ter um filme é habitualmente maior que o impacto de uma reportagem. 

Exatamente porque falar sobre aqueles bairros ou sobre Great Yarmouth implica um trabalho de muito tempo e muita profundidade.

Da maneira que tem feito.

Não basta chegares lá e fazeres quatro entrevistas. Não basta, como se diz, apontar uma câmara à realidade para falar sobre ela. E isso é o que acontece a maior parte das vezes porque as pessoas não têm tempo para trabalhar ou para refletir sobre determinadas realidades. Se calhar, isso acontece nos filmes – neste caso, com o filme [“São Jorge”] e a peça de teatro [“Provisional Figures”, estreada no ano passado no Reino Unido e, depois, no Porto e em Lisboa, sobre a comunidade portuguesa em Great Yarmouth], que acabou por ter uma relevância muito grande. Para lá da peça em si começou a falar-se dos emigrantes, mas depois não é só isso: é porque, ao ganhar uma grande evidência, essa passa a ser uma realidade desconfortável. Isso não é programado da minha parte, mas acontece. Já se tinham feito mais filmes na Margem Sul ou em bairros sociais mas, ao ter uma exposição muito grande, o filme não pôde ser ignorado. Como a peça “Provisional Figures”, que agora vai para Paris. De repente, há algo que ali se torna evidente.

A estreia de “São Jorge”, em março de 2017, na Cinemateca, em Lisboa, foi um momento muito forte porque juntou na mesma sala o primeiro-ministro, António Costa, e um grupo de moradores dos bairros onde o filme foi rodado: a Jamaica e a Belavista. No “Provisional Figures”, eram os verdadeiros protagonistas da história que estava a ser contada no palco, diante do público, numa confrontação com a realidade necessariamente mais direta e evidente do que acontece numa sala de cinema.

É de repente dares palco ou dares voz a pessoas que não têm essa voz e que, se quiseres, não têm a oportunidade de alguma vez fazer algum tipo de reflexão sobre a sua condição. Apesar de tudo, no Bairro da Jamaica já havia comissões de moradores, já havia esse género de coisas, mas, quando agora as pessoas começaram a ser realojadas, tive uma senhora da Câmara do Seixal que me disse, e eu acredito nisso: “Se não fosse o seu filme, estas pessoas nunca teriam sido realojadas, porque isto é uma luta que tenho dentro da câmara há anos.” É mesmo uma realidade que, de repente, as pessoas não podem mais ignorar. Como as imagens da carga policial: aquilo aparece e, de repente, “bom, isto está aqui, temos de falar sobre isto, não podemos continuar a fingir que não existe”. O filme tem uma capacidade maior para isso do que essas imagens porque é uma reflexão maior do que um apontar de uma câmara a um lugar.

Em relação a Great Yarmouth, por exemplo, já vimos a peça e sabemos que está agora em preparação um filme. Em todo este processo, são já quantos anos de trabalho lá?

Já estou há quase três anos lá com as pessoas. Agora comecei a fazer um novo casting, a falar outra vez com pessoas. É um trabalho que é muito misto porque, ao mesmo tempo que estou a escolher pessoas, não atores para o filme, estou também a refazer algumas entrevistas nalguns aspetos sobre a realidade das vidas daquelas pessoas que, se calhar, não eram tão relevantes para a peça, mas que agora, para o filme, são. Sobretudo aspetos mais práticos do dia-a-dia em Yarmouth. Por outro lado, como a situação também está sempre a mudar com esta indefinição…

Com o Brexit, que imagino que vá ter importância no filme.

Claro que vai. Mas é um peso que não sei ainda qual é. Quando filmar, já vai haver uma decisão, portanto mantenho um guião bastante aberto nesse aspeto para poder ir-me adaptando ao que vai acontecer. Porque vou continuar a trabalhar lá, aconteça o que acontecer.

Para quando está planeada a rodagem? E no filme vão estar algumas das pessoas que conhecemos em “Provisional Figures”?

Para o início de 2020. Algumas delas, sim. 

O filme chamará também a atenção para essa realidade, provavelmente mais do que a peça. E, voltando um bocadinho ao início, quando ouviu uma série de gente, incluindo o próprio primeiro-ministro, dizer que não faziam ideia da existência daquele lugar, de gente a viver naquelas condições, ali, às portas de Lisboa, isso chocou-o de alguma forma? Ou preocupa-o esta distância que existe entre a realidade e o poder político?

É uma questão muito complexa. Quando fiz aquele filme, quando coloquei a mulher do Jorge a viver no Bairro da Jamaica, foi porque me tocou a forma como aquelas pessoas viviam, porque me pareceram quase inacreditáveis as condições em que viviam . Era um lugar esquecido, abandonado. Fui imediatamente arrastado para o interior daquele bairro, para a vida daquelas pessoas, e mudei o guião em função delas. Não podia falar da crise sem falar da vergonhosa situação da Jamaica. Não se trata de uma posição de reivindicar, muito menos de denúncia. Nunca pensei que ao fazê-lo poderia transformar as suas vidas. É perigoso fazer filmes com esse pensamento. É algo que alguns sistemas políticos usaram com grande eficácia e resultados espantosos, mas que não devia ser repetido. No entanto, logo na estreia, percebi que aquele filme falava de uma realidade desconhecida para quase todos (o primeiro-ministro prometeu logo nesse dia acabar com aquela situação, que desconhecia). Fiquei muito comovido quando as primeiras pessoas começaram a ser realojadas, no final do ano passado. Houve muitas pessoas que me agradeceram. Fico contente que desta vez tenha terminado assim. O cinema e a arte permitem aproximações impossíveis, muita da sua importância reside nessa capacidade única.