O deserto judiciário


O Estado não pode pura e simplesmente desaparecer do território nacional. Especialmente quando os cidadãos pagam custas colossais pelo acesso à justiça, não faz qualquer sentido que tenham de se deslocar muitos quilómetros quando precisam de ir a um tribunal


Uma das piores medidas adoptadas pelo governo de Passos Coelho foi a implementação do mapa judiciário, que destruiu uma organização judiciária laboriosamente construída durante mais de 200 anos e que assegurava a existência de tribunais junto das populações. Com a nova organização judiciária, o país transformou-se num deserto judiciário, com populações deixadas a 100 km de distância de um tribunal, sendo os cidadãos obrigados a deslocar-se às sedes dos distritos sempre que têm necessidade de recorrer à justiça. Ao mesmo tempo, os edifícios dos tribunais, que ainda existem em muitas localidades, encontram-se abandonados ou, pelo menos, subaproveitados, o que corresponde a um enorme desperdício de recursos públicos.

Seria de esperar, perante a prática de reverter todas as reformas efectuadas pelo anterior governo, nalguns casos sem qualquer justificação, que este governo efectuasse igualmente a reversão da reforma do mapa judiciário. Mas, infelizmente, não é isso que tem vindo a suceder, tendo o actual governo apenas efectuado pequenos ajustamentos ao mapa judiciário do governo anterior. É assim que, agora, o conselho de ministros acaba de anunciar mais uma tímida medida de desdobramento de alguns juízos em juízos de competência especializada (nalguns casos, em agregação com concelhos distintos) e a reabertura de apenas dois dos tribunais que tinham sido encerrados com o mapa judiciário. Em tudo o mais, continuamos com a falácia de abrir apenas “juízos de proximidade”, que não passam de meros balcões de atendimento, nada tendo a ver com os verdadeiros tribunais.

Antigamente, qualquer população de dimensão média no interior do país tinha pelo menos um serviço público dos correios, realizado pelos CTT, um serviço público bancário, efectuado através da CGD, e um serviço público de justiça, que correspondia ao seu tribunal. Os CTT foram privatizados e, desde então, não têm parado de fechar os seus edifícios no interior do país. A CGD, mesmo depois de uma recapitalização paga a peso de ouro pelos contribuintes, continua diariamente a encerrar os seus balcões. E os tribunais praticamente desapareceram do interior com o novo mapa judiciário, nada estando a ser feito para devolver aos cidadãos uma justiça de proximidade.

O Estado não pode pura e simplesmente desaparecer do território nacional. Especialmente quando os cidadãos pagam custas colossais pelo acesso à justiça, não faz qualquer sentido que tenham de se deslocar muitos quilómetros quando precisam de ir a um tribunal. Se o Estado cobra às pessoas valores astronómicos sempre que necessitam de ter acesso à justiça, é também imprescindível que lhes assegure a necessária contrapartida de um serviço judiciário de qualidade.

Um tribunal não pode, por isso, ser um oásis isolado num enorme deserto judiciário, especialmente quando já há edifícios perfeitamente disponíveis para voltar a instalar todos os tribunais que foram encerrados. Hoje em dia, quem viaja pelo nosso país continua a encontrar um edifício com o dístico “domus iustitiae”, que significa precisamente “casa da justiça”. Ora, uma casa da justiça não pode ser uma casa encerrada, devendo voltar a ser aberta para todos os que pretendem ter acesso à justiça.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990