“Seis horas e meia depois fui vista pela médica”


O desabafo de uma amiga, a propósito da discussão da Lei de Bases da Saúde e da necessidade de maior resposta e humanização


Esta semana, enquanto recolhia frases sobre o que tem sido dito em torno do debate da Lei de Bases da Saúde, uma amiga desabafava no chat do Facebook sobre o périplo dela entre o hospital e o centro de saúde à conta de um princípio de pneumonia. Depois de ir à urgência, teve de ir ao centro de saúde por causa da baixa. Tentou marcar consulta, mas como não tem médico disseram–lhe que fosse da parte da tarde e esperasse. A uma pessoa doente, que tinha passado o serão do dia anterior à espera na urgência, foi pedido que voltasse ao mesmo.

No centro de saúde havia uma médica a atender todos os doentes sem médico de família, num sítio onde uma grande percentagem da população está nesta situação e onde, em pleno inverno e plena epidemia da gripe, era expetável que aumentasse a procura. Logo, que tivesse aumentado a capacidade de resposta. Aparentemente, não aumentou. Quando abriu a janela do chat, estava há quatro horas à espera, indignada. “Depois vêm com o discurso de empurrar as pessoas para o centro de saúde. Nada disto funciona”, dizia. Passaram mais duas horas e meia até ser atendida. “Pronto. Seis horas e meia depois, já consegui ser vista pela médica”, disse. Ficou “proibida” de sair de casa, de apanhar vento e frio. Recomendação do mesmo sistema que a fez estar uma tarde fora de casa, depois de ter passado cinco horas na urgência no dia anterior.

Haverá todos os dias bons exemplos no SNS, coisas que correm bem e muito bem – e sobretudo que abrangem a grande maioria da população –, mas depois há estes casos que quebram a confiança, que se repetem ano após ano e parecem ser contraditórios com os apelos crescentes a um uso mais racional dos serviços para proveito de todos. E que denotam, além da falta de meios, uma quebra na humanização dos cuidados. A discussão da Lei de Bases da Saúde, não sendo o “alfa e ómega” da solução dos problemas, como disse o ex–ministro Adalberto Campos Fernandes, não pode acontecer numa bolha à margem destas que são as desmotivações diárias de doentes e profissionais de saúde, sob pena de ser incompreendida.

Claro que há locais onde a cobertura dos cuidados primários de saúde está melhor, mas as assimetrias persistem há demasiado tempo. Até há bem pouco tempo, eu não tinha médico de família e, por isso, sei bem a diferença: desde que nos foi atribuída uma médica, nova na cidade, tem-se revelado disponível e acessível mesmo quando parece um bocado assoberbada. Dá, pelo menos, para bater à porta de alguém que tem a nossa ficha. A equipa de enfermagem sempre disponível e o horário das vacinações, diárias, são atenções simples que reforçam a proximidade. Mas já apanhei dias em que o centro de saúde estava o caos, os guichés não davam vazão sequer às senhas prioritárias e a sala tinha muito mais gente do que deveria, com todos os atritos que isso gera entre quem está à espera e toda a frustração que traz a quem está a trabalhar e que às vezes, mais ou menos compreensivelmente, se reflete no trato.

Oiço comentar que a nossa médica está a ser muito bem recebida, espero que da parte dos doentes, mas também pelo sistema, porque seria uma pena que se perdesse à conta das burocracias e dificuldades que vão persistindo. Já a minha amiga contava que a médica que a atendeu está a recibos verdes, um contrato temporário para lidar com um serviço a funcionar sem meios e com pessoas doentes e irritadas com a resposta que não têm. Não tem como poder correr bem.

Em Coimbra foi apresentado esta semana um projeto de humanização dos cuidados de saúde que prevê inquéritos, intervenções e formação, depois de um diagnóstico de situação vertido no memorando do projeto do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. “Sinais de instabilidade emocional, de desânimo, de frustração, de incapacidade, de desmotivação e de esgotamento dos profissionais são cada vez mais visíveis e preocupantes”, diz o documento. “O descontentamento dos próprios doentes é cada vez mais sentido e tem tradução objetiva no aumento crescente do número de reclamações que chegam ao Gabinete do Utente e no número de processos judiciais contra o hospital.” Concluía que é esse estado de coisas que não se pode ignorar. Não é de agora e certamente não será só ali. A par de princípios e valores para o futuro – e dos diferentes caminhos que podem levar até lá –, é preciso atacar estes sinais de insatisfação para dar algum ânimo a quem precisa do SNS e o defende.

 

Jornalista, Escreve à sexta-feira