Benfica-FC Porto. O educativo sermão do señor Ramón Melcón

Benfica-FC Porto. O educativo sermão do señor Ramón Melcón


Um dos mais duros jogos entre os dois rivais disputou–se nas Amoreiras para os quartos-de-final do Campeonato de Portugal. Depois da goleada imposta pelos portistas na primeira mão (8-0), o jogo de Lisboa teve um árbitro espanhol


O ambiente era tenso nesse dia 11 de junho de 1933. Jogavam-se as segundas mãos dos quartos-de-final do Campeonato de Portugal, prova a eliminar que viria, segundo diretiva do conselho geral da Federação Portuguesa de Futebol, a chamar-se, mais tarde, Taça de Portugal, por muita teoria revisionista que se queira fazer publicar. A papelada está aí. Vale a pena consultá-la. Ficará para outra altura.

Em Lisboa, o Benfica recebia o FC Porto no Campo das Amoreiras. Um Benfica abalado até aos alicerces. Afinal, fora massacrado na Constituição por nada menos de 0-8 (golos de Waldemar Mota, 3; Acácio Mesquita, 3; Carlos Nunes e Lopes Carneiro). Convenhamos: a recuperação era impossível, por maior que fosse a grita. Além disso, via-se privado de um ror de gente importante para a calibragem do conjunto, especialmente Xavier, João de Oliveira e Gustavo.

Era mais duro do que escalar os Himalaias ou as montanhas do Pamir.

Conflitos nas bancadas; intervenção policial.

Por uma questão de nervos, ponhamos as coisas assim, cinefilamente, chamou–se um árbitro estrangeiro, o espanhol Ramón Melcón, homem de categoria acima de qualquer suspeita. Parece que o seu trabalho foi correto, embora sem agradar aos lisboetas, que se sentiram prejudicados pela expulsão de Vítor Silva por carga sobre o guarda-redes Siska.

A imprensa sublinhava com a sua dose de vaidade: “Entre o público veem-se muitos artistas, advogados, médicos, intelectuais, políticos conhecidos, etc.” Como se vê, os políticos sempre foram à bola. Se pagaram ou não, o jornal não refere.

Refere, isso sim, que apesar de um espantoso apoio dos apaniguados benfiquistas, a despeito da tal missão impossível, aos três minutos, Jerónimo, num livre direto apontado quase sobre a linha do meio-campo, fez o primeiro golo do jogo, adiantando ainda mais o FC Porto. Frango? Não restam dúvidas! O guarda–redes Pedro da Conceição não se mexeu a tempo, ficou a olhar não se sabe para quê ou para quem, e quando entrou em ação foi para ir buscar a bola ao fundo da baliza.

Waldemar Mota choca com Pedro Silva e magoa-se. Os portistas ficam com dez.

Vítor Silva salta com Siska e derruba–o. Melcón dá-lhe ordem de saída. Vítor Silva rebela-se. Discute a decisão. Recusa-se a abandonar o campo. Cavalheiro como poucos, o capitão Ribeiro dos Reis, diretor-geral do Benfica, vai buscá-lo por um braço.

Dez contra dez.

Há agora uma espécie de energia extra do lado encarnado. Diniz empata; Octávio faz o 2-1; Xavier, o 3-1.

O intervalo está a chegar. Poderá verdadeiramente dar-se uma surpresa monumental? Ah! O futebol é um jogo imprevisível, mas não tanto como isso.

A um minuto dos 45, Pinga isola-se e bate Conceição.

O assunto está arrumado!

O sermão Melcón não tinha vindo de Espanha para apreciar os ares do Estoril e gozar a canícula da noite de Lisboa. Aprumou-se na sua farda de juiz e, ao intervalo, chamou os jogadores à razão. Iam terminar de vez com as questiúnculas, com as tentativas de jogo rasteiro, com o nunca mais acabar de faltas e faltinhas que prejudicavam inevitavelmente o decorrer da partida e a qualidade do espetáculo. O público merecia respeito. Tinha pago bilhete para ver futebol, e não luta livre com uma bola pelo meio.

A rapaziada ouviu e calou. Respeitinho bonito. O espanhol acertara no sermão e os acontecimentos mudaram de rumo.

Perdida a eliminatória, restava ao Benfica lutar pela honra, tão abalada que ficara na viagem ao Porto.

“É extraordinário como um team enfraquecido e menos capaz do que aquele que há quinze dias perdeu por 0-8 conseguiu inutilizar a ação e classe indiscutível dos rapazes do FC Porto”, espantava-se o repórter destacado para as Amoreiras.

Forçam os encarnados; defendem-se os azuis-e-brancos.

Siska exibe toda a sua agilidade e valentia. Mas, aqui e ali, deixa que a bola escorregue das suas mãos, que costumam ser de ferro.

Pinto faz o 4-2 com um remate formidável.

Há uma alegria passageira por entre o público, como nuvem que com o vento se vai.

Os nortenhos seguram o resultado. Sabem que nada os impedirá de seguirem em frente. A goleada que tinham aplicado ao seu opositor fora um KO sem remissão. Mas ficariam pelas meias-finais, eliminados pelo Sporting, depois de dois empates e um jogo de desempate favorável aos leões por 3-1.

O grande vencedor desse Campeonato de Portugal seria o Belenenses. Na final, face ao Sporting, venceu por 3-1, com golos de Faroleiro (2) e José Luís a superarem o apontado por Abrantes Mendes. Era a terceira conquista dos azuis da cruz de Cristo na prova, depois das de 1927 e de 1929. Também reclamarão estes títulos como de campeão nacional? Os burocratas da política futeboleira devem ter a palavra. Valha ela o que valer.