Salvar a face: a nossa imagem no espelho


Quando, rotineiramente, olhamos sem ver para os espelhos da alma, é raro atentarmos no que vemos: falta-nos tempo e reflexão


Numa reportagem sobre a comunidade chinesa residente em Portugal, ouvi o depoimento de uma jovem, que vivia desde a mais tenra idade no nosso país e que, quando questionada sobre como se sentia – se mais portuguesa, se mais chinesa -, deu uma resposta surpreendente.

Disse ela, com alguma espontaneidade e real simpatia para com os portugueses, que só se recordava que era chinesa quando se olhava ao espelho com algum tempo e atenção. 

Esta afirmação coloca, para além do problema da identidade cultural, questões realmente interessantes com que talvez a sua autora não tivesse sonhado e, muito menos, pretendido trazer à nossa reflexão.

Refiro-me ao reconhecimento da imagem física e espiritual – ou intelectual, se quiserem – que cada um tem de si mesmo.

A imagem que os outros de nós fazem – já o sabemos – varia muito: em grande parte, em função do comportamento próprio perante o mundo. 

Muita da nossa atividade centra-se, afinal, na transmissão ao outro de uma imagem de nós: é, no essencial, uma atividade de projeção e de sedução.

Uma atividade que visa perpetuar-nos para além da morte, que sabemos certa, e da vida, que sabemos inconstante e inapreensível.

E é por isso que precisamos do espelho dos outros.

Mas será essa imagem a mesma que, no íntimo, de nós fazemos?

A questão é, de facto, complexa e enigmática. 

Até porque tal imagem – aquela que de nós fazemos – nos escapa inopinadamente e, depois, não se deixa facilmente reapropriar.

A imagem que de nós temos muda, é certo, paulatinamente, com a idade; o que admitimos com alguma naturalidade e nos inquieta menos, apesar de tudo.

Todavia, tal mudança pode resultar também de motivos inesperados – o que nos custa mais.

Há, com efeito, fatores que, num instante, nos roubam ou desfocam a imagem que de nós temos.

A outra, a externa, com mais ou menos jeitinho, lá vamos conseguindo retocá--la; sabemos disso.

Mas a imagem que de nós fazemos – como cuidar dela, como preservá-la?

Quando, rotineiramente, olhamos sem ver para os espelhos da alma, é raro atentarmos no que observamos: falta-nos, em geral, tempo e reflexão.

Como a nossa amiga chinesa, raramente damos conta de quem deveras somos.

Falta-nos, para tanto, a brechtiana distanciação.

E, de repente, por qualquer motivo, somos interpelados por essa mesma imagem.

É aquela a nossa cara, a cara daquele que pensou, chorou, riu, amou, castigou ou foi castigado, se indignou, sonhou, trabalhou, cantou, pintou?

Reconhecemo-nos nela?

Só dei verdadeiramente conta da mudança que ocorrera comigo – com a transformação do que fui naquilo que sou – quando, não há muito, me ofereceram simpaticamente lugar num autocarro.

Era essa a imagem desvalida que transmitia e que, distraído, não havia ainda notado.

Antes, havia já intuído semelhante perplexidade em pessoas que encontrei nos bancos dos tribunais: pessoas subitamente abismadas com o que eles, ou os outros, fizeram da sua imagem, da sua vida.

O que somos, o que verdadeiramente julgamos que somos, raramente coincide com o retrato que para nós idealizámos e desejámos.

E, todavia, sentimos que continuamos a ser nós mesmos e não qualquer outro.

Ter a coragem de olhar para a nossa imagem e, apesar de tudo, continuar a ver nela a pessoa que desejámos ser é, não apenas importante para nós, mas, sobretudo, importante para os outros que, numa ou noutra situação, connosco partilharam as circunstâncias da vida. 

É que a nossa imagem também está inscrita na deles.

 

Escreve à terça-feira
 


Salvar a face: a nossa imagem no espelho


Quando, rotineiramente, olhamos sem ver para os espelhos da alma, é raro atentarmos no que vemos: falta-nos tempo e reflexão


Numa reportagem sobre a comunidade chinesa residente em Portugal, ouvi o depoimento de uma jovem, que vivia desde a mais tenra idade no nosso país e que, quando questionada sobre como se sentia – se mais portuguesa, se mais chinesa -, deu uma resposta surpreendente.

Disse ela, com alguma espontaneidade e real simpatia para com os portugueses, que só se recordava que era chinesa quando se olhava ao espelho com algum tempo e atenção. 

Esta afirmação coloca, para além do problema da identidade cultural, questões realmente interessantes com que talvez a sua autora não tivesse sonhado e, muito menos, pretendido trazer à nossa reflexão.

Refiro-me ao reconhecimento da imagem física e espiritual – ou intelectual, se quiserem – que cada um tem de si mesmo.

A imagem que os outros de nós fazem – já o sabemos – varia muito: em grande parte, em função do comportamento próprio perante o mundo. 

Muita da nossa atividade centra-se, afinal, na transmissão ao outro de uma imagem de nós: é, no essencial, uma atividade de projeção e de sedução.

Uma atividade que visa perpetuar-nos para além da morte, que sabemos certa, e da vida, que sabemos inconstante e inapreensível.

E é por isso que precisamos do espelho dos outros.

Mas será essa imagem a mesma que, no íntimo, de nós fazemos?

A questão é, de facto, complexa e enigmática. 

Até porque tal imagem – aquela que de nós fazemos – nos escapa inopinadamente e, depois, não se deixa facilmente reapropriar.

A imagem que de nós temos muda, é certo, paulatinamente, com a idade; o que admitimos com alguma naturalidade e nos inquieta menos, apesar de tudo.

Todavia, tal mudança pode resultar também de motivos inesperados – o que nos custa mais.

Há, com efeito, fatores que, num instante, nos roubam ou desfocam a imagem que de nós temos.

A outra, a externa, com mais ou menos jeitinho, lá vamos conseguindo retocá--la; sabemos disso.

Mas a imagem que de nós fazemos – como cuidar dela, como preservá-la?

Quando, rotineiramente, olhamos sem ver para os espelhos da alma, é raro atentarmos no que observamos: falta-nos, em geral, tempo e reflexão.

Como a nossa amiga chinesa, raramente damos conta de quem deveras somos.

Falta-nos, para tanto, a brechtiana distanciação.

E, de repente, por qualquer motivo, somos interpelados por essa mesma imagem.

É aquela a nossa cara, a cara daquele que pensou, chorou, riu, amou, castigou ou foi castigado, se indignou, sonhou, trabalhou, cantou, pintou?

Reconhecemo-nos nela?

Só dei verdadeiramente conta da mudança que ocorrera comigo – com a transformação do que fui naquilo que sou – quando, não há muito, me ofereceram simpaticamente lugar num autocarro.

Era essa a imagem desvalida que transmitia e que, distraído, não havia ainda notado.

Antes, havia já intuído semelhante perplexidade em pessoas que encontrei nos bancos dos tribunais: pessoas subitamente abismadas com o que eles, ou os outros, fizeram da sua imagem, da sua vida.

O que somos, o que verdadeiramente julgamos que somos, raramente coincide com o retrato que para nós idealizámos e desejámos.

E, todavia, sentimos que continuamos a ser nós mesmos e não qualquer outro.

Ter a coragem de olhar para a nossa imagem e, apesar de tudo, continuar a ver nela a pessoa que desejámos ser é, não apenas importante para nós, mas, sobretudo, importante para os outros que, numa ou noutra situação, connosco partilharam as circunstâncias da vida. 

É que a nossa imagem também está inscrita na deles.

 

Escreve à terça-feira