Nunca me iludi


Por vezes, perpassa a sensação de que há quem não se importe da ilusão, se tiver mais uns cobres no bolso. Há até uma predisposição para tolerar os ilusionistas, conformando a atitude à posse de um efémero título de participação no capital da esperança da circunstância


“Eu não me iludo e não nos podemos iludir com os números”, António Costa, 25 dezembro 2018

A necessidade aguça o engenho. A realidade força a insensatez dos sinais, das meias palavras e das perceções induzidas a cederem espaço ao senso, mesmo que seja mais por taticismo eleitoral do que por convicção. O primeiro ministro diz que não se ilude sobre o caminho percorrido e sobre o que falta fazer, mas a verdade é que iludiu e permitiu que alguns fossem iludidos.

Não foi isso que aconteceu com a proclamação do virar da página da austeridade quando as cativações e a falta de investimento fustigaram e fustigam os serviços públicos exauridos pelos anos da governação da direita e pelos sucessivos adiamentos dos recursos que permitiriam a sintonia entre a palavra dada e a palavra honrada?

Não foi isso que ocorreu quando se passou da perceção de que não havia dinheiro para nada para a fase das reposições, reversões e reintroduções de direitos e rendimentos para alguns, gerando a perceção de que os recursos ao dispor do Estado sustentariam a observância das obrigações internacionais com os credores, o pagamento dos encargos com a solução governativa e a concretização dos investimentos de que o país precisava?

Não é isso que se verifica cada vez que emergem sinais de fragilização da competitividade da nossa economia, que se adiam intervenções importantes para assegurar sustentabilidade das opções políticas ou emergem sinais similares a outros ocorridos em crises anteriores, do consumo à persistência de medidas extraordinárias sem explicação, quando não existem recursos para as necessidades correntes em muitos serviços públicos?

O primeiro ministro não se ilude, eu nunca me iludi.

Chegar ao poder a qualquer custo, com uma base política de apoio de serviços mínimos, contrária à integração europeia, desequilibrada na construção de uma sociedade que respeite as partes e os interesses em presença e com noção da realidade nacional e com a ausência de realidades convergentes com as proclamações ideológicas que advogam, era um exercício de sobrevivência política, de circunstância e sem hipóteses de sustentabilidade futura.

Exercer o poder num quadro de sistemático desfasamento entre a narrativa política e a fragilidade da realidade, ainda que com a reposição de alguns direitos e rendimentos, a par de uma carga fiscal indireta em jeito de queima gorduras, gerou um ambiente generalizado de que é possível ir mais longe no reforço da remuneração do trabalho, do reforço dos direitos sociais e na recuperação do tempo perdido na coesão territorial, sem que o país cresça mais, é um exercício de ilusionismo de quem agora se diz não iludido.

Os sobressaltos das dramáticas ocorrências, dos incêndios florestais a Borba, sublinham que não temos orçamento para o país que temos, como não temos nem governo nem oposição, e o povo insiste em deixar muito a desejar em matéria de intervenção cívica, de exigência e de consequência.

Por vezes, perpassa a sensação de que há quem não se importe da ilusão, se tiver mais uns cobres no bolso. Há até uma predisposição para tolerar os ilusionistas, conformando a atitude à posse de um efémero título de participação no capital da esperança da circunstância. Um espécie de um dia de cada vez aplicada à gestão da nação, no governo e na oposição, uns na esperança de que a conjuntura não se degrade, outros na expectativa de que as circunstâncias se degradem para que o poder lhes caia nas mãos.

Iludidos, não percebem que, por aditivar esperança a mais, no limiar da euforia com os resultados mínimos agigantados pelo contraste com o passado recente dos anos da troika, por não pronunciarem toda a verdade ou explicações que fundem as opções políticas ou por persistirem na gerações de múltiplas expectativas inconciliáveis e insustentáveis, estão a gerar caldo de cultura para os populismos, os abstencionismos e outros fenómenos de alienação ou de compromisso com visões distorcidas de qualquer modelo de sociedade assente no equilíbrio, na regulação e na cidadania ativa.

Iludidos, persistem em ignorar os sinais, em modelar as expectativas aos recursos e em passar das palavras aos atos em áreas que não tendo relevância eleitoral, têm grada importância para a construção de um futuro mais sólido, justo e sustentável.

A vantagem de quem manteve uma coerência, uma exigência e um sentido de futuro é não ter necessidade de reafirmar não ter ilusões sobre o presente e o horizonte, não se sentir desiludido ou não teimar em persistir na erradicação de ilusões sem nexo.

Com a firmeza e a tranquilidade de sempre, sem ilusões, desejamos a todos um ótimo Ano Novo, com saúde, trabalho e sorte.

NOTAS FINAIS

Leitura de pensamentos. O Presidente da República lamentou que o período pré-eleitoral tivesse começado demasiado cedo. A dúvida é se está a falar das eleições para o Parlamento Europeu, para a Assembleia Legislativa Regional da Madeira e para a Assembleia da República previstas para 2019, ou do posicionamento de candidatura presidencial do comentador Marques Mendes. Até já sai em revistas do coração.

Truques. É cada vez mais indisfarçável a inconsistência do trabalho de alguns responsáveis do sistema judicial. De uma vez por todas, era bom que metessem na cabeça que são responsáveis por um dos pilares do Estado de Direito Democrático. O que pode servir para alimentar a rede de contactos nos media ou para fazer uma manchete, é amiúde poucochinho para cumprir os mínimos do sistema judicial integrado.

 

Escreve à quinta-feira