Catalina Pestana. ‘Admito que alguém tente branquear esta história’

Catalina Pestana. ‘Admito que alguém tente branquear esta história’


Em 2007, depois de abandonar a liderança da Casa Pia, Catalina Pestana falou ao semanário “Sol” numa entrevista de vida que o i hoje recupera. A antiga provedora da Casa Pia morreu no passado sábado, aos 72 anos, na sequência de uma infeção hospitalar. O funeral realizou-se ontem, em Lisboa


Qual é a memória mais antiga que guarda da sua infância?

Tinha dois anos e meio e os meus pais foram-me deixar à minha avó, porque a minha irmã estava quase a nascer. Eu adorava a minha avó, mas naquele dia, quando os vi afastar-se, tive um aperto no coração. Tentei disfarçar, para a minha avó não me ver as lágrimas. É a primeira memória e é uma memória de perda. Já nesse tempo não gostava que me vissem chorar. 

Viviam onde?

Em Maceira, ao pé de Pêro Pinheiro, no concelho de Sintra. O meu pai, Agostinho Pestana, era operário da indústria de mármores e ao mesmo tempo animador da coletividade de cultura e recreio. Portanto, herdei uma cultura operária, como poucos tiveram o privilégio. Estávamos em pleno fascismo (eu nasci em 1947) e o 1.º de Maio não era feriado. O meu pai, que era presidente do sindicato (do que era nomeado pelo Ministério das Corporações), conseguia falar aos trabalhadores e convocar greves do alto das pedreiras: “Amanhã é 1.º de Maio, aqui ninguém trabalha!”.

Vivia-se com aperto?

Com muito aperto! Os operários ganhavam à semana e muito pouco. O meu pai trazia o ordenado ao sábado e a minha mãe ia logo fazer o ‘avio’, muitas vezes fiado. O dinheiro era contado rigorosamente, até porque a minha mãe não trabalhava. Quando fomos para a escola é que ela começou a fazer camisas, em casa, para o Casão Militar. Pagavam-lhe 25 tostões por camisa: já vinham cortadas e ela cosia na máquina.

Os seus pais eram naturais de onde?

De Moura, no Alentejo. Fazem parte da primeira revoada de migração do interior alentejano para o litoral. Como não havia dinheiro, o meu pai fazia-nos brinquedos: lembro-me de ter um pequeno lava-loiça em mármore que fazia imensa inveja às minhas amigas. E fazia molduras, também, nas horas extraordinárias, para aumentar o parco salário. Ele e os irmãos tinham andado na Casa Pia de Beja, pois o pai morreu muito cedo. Como estudou até ao 3.º ano do liceu, era um operário diferenciado: na forma de lidar com os patrões, no sentido crítico, na animação cultural e no desejo de fazer outras coisas. A certa altura, ele e um amigo fizeram o curso de guarda-livros por correspondência. Estudava ao domingo, o único dia que tinha de folga. Quando acabou o curso, fomos morar para Pêro Pinheiro (tinha eu seis ou sete anos) e deixou de trabalhar como operário, pois já fazia as escritas de muitas pequenas empresas. Estávamos em 1953/54.

O seu pai era, portanto, um sindicalista?

Sindicalista e anticlerical. Tinha Guerra Junqueiro como seu poeta preferido. Como naquele tempo eu tinha uma memória de elefante, aprendi poemas enormes – como “Aos Simples” e “O Melro”, de “A Velhice do Padre Eterno”, que é anticlerical dos pés à cabeça. O ridículo era eu recitar, com 10 ou 11 anos, poemas que não tinham nada a ver com a minha idade.

Como começou a atuar e a recitar nas coletividades?

O meu pai era o meu ídolo e eu ia atrás dele para todo o lado. Recitava em todos os sítios que ele queria (Alhos Vedros, Baixa da Banheira, Lavradio…). Só muito mais tarde percebi o que estava a fazer: a camuflar os vários comités clandestinos do PCP, que reuniam no subpalco enquanto eu recitava.

Nessa fase, havia muita gente na clandestinidade. O seu pai dava-lhes apoio?

Tinha eu nove ou dez anos, fomos viver para umas pequenas vivendas na Quinta da Lomba, ao pé do Barreiro, onde tinha aberto uma fábrica de mármores. Foi também para lá viver um casal que ninguém sabia de onde vinha e que tinha dois filhos. A mulher nunca chamava o marido pelo nome e eu, um dia, perguntei ao meu pai quem era aquele senhor. “O vizinho não pode dizer o nome porque é político e a polícia não pode saber que mora aqui”. Começámos a chamar-lhe “o vizinho político!”. Ele e o meu pai ‘faziam’ as coletividades de recreio de Almada e do Barreiro. No intervalo do baile, eu transformava-me na animadora e recitava poemas infindáveis – parecia uma boneca de corda! Mas as pessoas gostavam muito e choravam… Os poemas tinham todos uma moral muito intensa (“Infância e Morte”, “O Estudante Alsaciano” e “O Juramento do Árabe”, por exemplo).

Portanto, já estava definido quando entrava?

Sim, eu entrava e dava início à reunião e só saía quando o meu pai mandava. Depois, mandava-me voltar ao palco ou não, consoante a reunião já tivesse acabado. É por essa altura que a nossa família passa a ter uma espécie de ‘objeto de estimação’.

Qual?

Uma bomba, literalmente! Guardámo-la até ao 25 de Abril. Em 1962, a 1 de janeiro, deu-se o chamado golpe de Beja, em que o ‘vizinho político’ estava envolvido. O golpe abortou, alguns golpistas foram presos e outros fugiram. Parece que o vizinho teria por missão ir pôr a bomba em qualquer lugar. Era de plástico, do tamanho de um livro, e o detonador do tamanho de uma caneta. Antes de fugir, o vizinho entregou a bomba ao meu pai. Nunca nos disseram que tínhamos uma bomba, mas, como mudávamos muitas vezes de casa, reparei, lá pelos 14 ou 15 anos, que a minha mãe tinha sempre muito cuidado com um certo vaso, que tinha um cacto plantado. Perguntei e ela disse-me: “É uma bomba, mas não tenhas medo!”. Já o detonador ‘vivia’ nas bainhas dos casacos da minha mãe. Porque o meu pai não sabia quando o vizinho iria precisar dela e, é claro, não íamos dá-la ao inimigo…

Estudava onde, nessa altura?

No Liceu de Setúbal. Levantava-me às 5h30 da manhã e a minha mãe ia levar-me à paragem do autocarro, para depois apanhar o comboio e ir às aulas em Setúbal. Fui ‘colega’ de comboio da Isabel do Carmo, mas foi o único trajeto comum.

A sua descoberta de Deus dá-se quando?

Na adolescência. Era tão voluntariosa, tão teimosa… e, claro, tinha de ‘matar’ o pai. Quando cheguei ao liceu, era batizada, mas mais nada. E encontrei a professora da minha vida, a mulher que mais me marcou depois da minha mãe: Joana Meira, professora de Português. Era católica, mas não foi o que ela me ensinou que me levou a descobrir que queria conhecer melhor Deus: foi a pessoa e a sua qualidade humana. A professora que sou hoje tem muito mais a ver com aquilo que ela era do que com o que aprendi nas faculdades. Portanto, tudo quanto ela fizesse eu queria experimentar e se ela acreditava em Deus era porque Deus era importante. Por outro lado, como o meu pai o proibira, tive a sorte de nunca ter andado na catequese no Estado Novo. Como era uma ‘miúda adulta’, a Joana Meira não me ia dar a catequese infantil: aprendi a ler o Novo Testamento, muito mais atraente, e livrei-me das contradições do Antigo Testamento. Fiz a primeira comunhão, a comunhão solene e o crisma, tudo no mesmo ano. Passado pouco tempo, era presidente da Conferência de S. Vicente de Paula no meu liceu e vice-presidente da JEC [Juventude Escolar Católica]. 

Depois, entrou na Universidade. 

Entrei na faculdade em 1967, no curso de Filosofia. Basicamente, nesse ano, andava a fazer que estudava e a fascinar-me com aquele mundo. Depois, em 1968, passei a aluna voluntária: achei que tinha mais que fazer e ia lá só para os exames. Perdi muito, pois tinha ótimos professores. Mas sou uma mulher de muita sorte, pois, no caminho que percorri, encontrei pessoas notáveis. Com Joana Meira, aprendi a ler poesia (ela tinha sido colega de Sebastião da Gama) e era ela que nos organizava para irmos ao Hospital do Outão (especializado em doenças ósseas), cantar para as crianças em recuperação.

Como foi trabalhar para a Moraes?

Fui trabalhar para a Livraria Moraes Editora em 1968. O dono era o António Alçada Baptista e tive aí o melhor emprego da minha vida: a minha tarefa era ler livros, fazer um pequeno texto para os apresentar e ainda me pagavam um conto e 500 para isso! Aos 21 anos! Ainda por cima livros proibidos! A Moraes, a 111 e a Barata, naquele tempo, eram as livrarias que vendiam os livros de ‘dentro da gaveta’, para os clientes seguros. Li quase tudo. Desde os mais marcantes da literatura portuguesa da época (como As Cartas Pardas, da Maria Velho da Costa), aos proibidos (li todos os autores das edições Maspero, de Rosa Luxemburgo a Marx, Lenine e Mao, claro). Ainda os tenho. Pela Moraes, acompanhei o “Tempo e o Modo” e a “Seara Nova”. Aquilo já não era um espaço só para vender livros, era uma tertúlia permanente, com a particularidade de ficar no Largo do Picadeiro, nas costas da rua António Maria Cardoso [onde se situava a sede da PIDE], o que criava uma adrenalina especial!

Em simultâneo, tinha o movimento estudantil e as greves, onde conheceu muita gente: Jaime Gama, António Reis, Jorge Molder, Alberto Costa…

Sim. Também conheci por esta altura Jorge Sampaio, José Manuel Galvão Telles e Victor Wengorovius, mais velhos do que eu, na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. O meu trabalho era basicamente realizar e animar, com a São Lopes, campos de férias dos filhos dos presos políticos.

Lembra-se de algum episódio particular durante os conflitos estudantis?

O que mais me fez pensar até hoje foi uma frase do padre Manuel Antunes, dirigida a mim e ao Celso, durante um piquete de greve. Ele, que todos respeitávamos, perguntou: “Para quê tanta violência?”. A irreverência dos meus 20 anos devolveu-lhe a pergunta: “O professor conhece alguma situação de opressão da qual se tenha saído sem ser pela violência?”. O sábio pensou e disse: “Que me lembre só duas vezes, com Jesus Cristo e Gandhi, e realmente não sei se as suas atitudes não foram novas formas de violência”.

Falou num grupo de pessoas ligadas ao PS que depois irá ‘reencontrar’ no processo Casa Pia. Dando um salto no tempo, como surgiu o convite para provedora?

Eu já tinha estado na Casa Pia entre 1975 e 1987, primeiro como diretora de colégios e depois como assessora na provedoria. Naquela sexta-feira, dia 23 de novembro de 2002, estava a jantar com uns amigos quando recebo uma mensagem no telemóvel a dizer para ligar a “SIC Notícias”, pois havia uma grande bronca na Casa Pia. Nessa altura, eu era diretora do PEETI [Programa para a Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil].

Nomeada por quem?

Pelo ministro da Solidariedade e Segurança Social, Ferro Rodrigues, em 1998. Fui então para casa e lembro-me de que esses dias foram muito difíceis. Gostava muito daquela casa, sabia que não era só ‘aquilo’. E não percebia onde estavam os ex-alunos ‘importantes’, que consideravam aquela a sua casa mãe e que eu tinha visto na Casa Pia a pôr e dispor, a opor-se às mudanças, a influenciar os governos. Espantava-me não ver nas reportagens sobre a pedofilia na Casa Pia um ex-aluno, bem na vida, a dizer “atenção, isto não é a Casa Pia”. Como, por exemplo, Maldonado Gonelha ou Soares Louro. Como é que não aparecia ninguém a agarrar no leme daquele barco à deriva? E ainda apareceu o provedor a dizer aquela frase assassina: “Se em 1200 trabalhadores há um pedófilo, até é muito bom sinal, porque é muito pouco”. Depois de conhecer a Casa Pia, como depois conheci, percebo perfeitamente que ele tenha dito essa frase… Na quarta-feira seguinte, a chefe de gabinete do ministro da tutela, Bagão Félix – que não conhecia – telefona-me, a pedir-me para ir falar com ela. E disse-me: “O problema da Casa Pia tem de ser agarrado rapidamente”. Ao que eu ia respondendo coisas como “já devia ter sido”, “vejam bem o que fazem”, “agora não há condições para pôr um homem como provedor, por mais credível que seja”. E ela, para meu espanto, disse-me que o ministro a encarregara de me sondar…

E como decorreu a conversa com ele?

Respondi que não podia aceitar, de maneira nenhuma. E dei um argumento – que não posso revelar, mas que era verdadeiro e, achava eu, determinante para nenhum ministro aceitar. Um dia depois, disse-me que resolvia a questão de fundo e eu tive de aceitar.

Ninguém do PS a tentou demover?

Antes pelo contrário. Telefonei a João Pedroso [irmão de Paulo], pois eu participara na campanha eleitoral de Ferro Rodrigues um mês antes. E disse-lhe: “Acabo de ser convidada para provedora, mas só aceito se vocês me garantirem que a Casa Pia não vai ser utilizada como arma de arremesso político-partidário. Isto é um problema nacional muito grave e só aceitarei o cargo se vocês não se opuserem e não boicotarem”.

Mas já tinha a perceção de que havia políticos entre os suspeitos?

Não. Liguei a João Pedroso porque era o único de quem tinha o número de telefone (os outros tinham saído do governo e os telemóveis tinham mudado). Eu tinha trabalhado com Paulo Pedroso, primeiro como secretário de Estado e depois como ministro, e com João Pedroso, enquanto chefe de gabinete de Ferro Rodrigues. Eu era de esquerda! E estava convencida de que aquilo era de alguma forma um presente envenenado. Quase lhes pedi autorização para aceitar. Depois, o João telefonou-me e disse-me: “O Paulo diz que avance, que tem todo o nosso apoio e que isto é um problema que todos temos de resolver”. E o dr. Paulo Pedroso foi à minha posse. Na cerimónia, o dr. Bagão Félix fez questão de o colocar ao nosso lado.

O que fez no primeiro dia?

Marquei uma reunião com todos os diretores, às 11 da manhã. Mas a primeira coisa que fiz foi dar um abraço ao mestre Américo [que fez as primeiras denúncias internamente]. 

E como correu o primeiro embate?

Os senhores diretores estavam muito tensos e fiquei a saber, por conversas entre eles, que na semana anterior, domingo à noite, tinha havido uma reunião entre a direção e os ex-alunos. Estavam tão convencidos que, como doutras vezes, o bom nome da instituição falaria mais alto do que a qualidade de vida dos seus utentes, e de que conseguiriam silenciar mais esta situação. Houve ainda quem propusesse que o mestre Américo fosse suspenso, por difamação.

E depois fez saber que tinha as portas abertas para os alunos que quisessem falar consigo.

Logo nessa primeira reunião, disse que queria ser informada imediatamente de tudo o que parecesse suspeito e que, se algum miúdo quisesse falar comigo, eu cancelava a agenda para o receber – e repeti isso na televisão. Um dia, há de fazer-se a história deste processo. Mas a História precisa de tempo, distância e paixões serenadas. Agora não é possível. Há pessoas que odeio e desprezo, ou que admiro, ou pessoas de quem tenho muita pena porque sofreram muito. E, porventura, haverá pessoas injustiçadas (estas hecatombes têm sempre alguns efeitos colaterais). Por isso, tenciono deixar escrita a minha colaboração, para que outros, desapaixonadamente, possam fazer essa história. Porque hoje sei que no Tribunal de Monsanto [que julga o processo Casa Pia] está apenas a guarda avançada – o grosso da coluna está cá fora.

O anterior Código Penal estabelecia que as vítimas de abusos sexuais tinham que os denunciar à polícia até aos 16 anos e seis meses de idade. Mas como é que um miúdo que vive numa instituição, que não tem outra casa e que é abusado por pessoas que representam o poder, na casa e fora dela, faria alguma vez essa queixa?

A norma foi agora alterada e passou para os 23 anos – ou seja, se já estivesse em vigor na altura, não tínhamos lá apenas cinco ou seis arguidos, mas largas dezenas.

Além dos alunos, falou com casapianos ‘abusados’, de outras gerações?

Claro e de quem eu sei o nome e a polícia também. Desde os anos 60 que há um leque muito mais vasto do que é conhecido de abusados e abusadores. Conversaram comigo homens casados, pais de filhos e avós de netos! Ainda agora, com esta confusão dos novos códigos penais, vieram dizer-me: “Senhora provedora, não desista porque isto foi feito para abafar tudo”. E contam-me histórias passadas nos anos 60. Em que carros do Estado entravam à noite no pátio do Colégio Nun’ Álvares e os educadores iam acordar os miúdos que tinham sido escolhidos durante o dia. São histórias com detalhes e com documentação. Estas pessoas têm nome. Eu não vou dizer a ninguém, porque, se não podem investigar, não têm nada que saber.

Guarda para melhor ocasião, é isso?

Tenho isto tudo escrito e a salvo. Porque admito que alguém tente branquear esta história. Porque a história das instituições faz-se com os vencedores, sempre. A versão dos vencidos, seja nas grandes instituições ou nas guerras, nunca aparece.

Quando começou a ter mais noção da situação, como lidou com ela? O nome de Paulo Pedroso foi um dos primeiros a aparecer no processo.

O nome de Paulo Pedroso, e de outros, é-me referido por esse aluno na minha segunda semana como provedora. Foi a altura em que circulavam as famosas ‘listas’ de nomes. Não acreditei minimamente, mas informei a polícia, que ia lá quase todos os dias buscar e levar os miúdos. Uns falaram só com a polícia e nunca quiseram falar comigo; outros falaram comigo depois de contarem tudo à polícia; finalmente, houve os que começaram por falar comigo e que a seguir encaminhei para testemunharem.

Como reagiu ao nome de Pedroso? 

Não acreditei e disse isso mesmo à polícia. Mas, quando entrei para a Casa Pia, tinha feito um compromisso comigo própria: estou aqui para não esconder nada de quem tem de investigar, nem que seja o Papa!

Quando foi o primeiro contacto com a equipa de investigadores?

Na segunda semana, o procurador João Guerra e as procuradoras Paula Soares e Cristina Faleiro reuniram-se comigo. Foi um encontro muito duro. Fui interrogada como se fosse suspeita, com aquele estilo do dr. João Guerra… Aguentei até que, ao fim de duas horas de ‘interrogatório’, disse-lhe: “Ó senhor procurador, acha que o ministro me nomeou por ser suspeita de abusar de crianças?”. As duas procuradoras, constrangidas, tentavam em vão aliviar o ambiente. Ele, muito educado, com aquele feitio muito próprio, respondeu: “Peço muita desculpa, senhora provedora, mas o Ministério Público precisava de saber que tipo de relação pode ter com Vª. Ex.ª e até onde está disposta a ir na procura da verdade”. “Até onde for preciso”, respondi.

Quer dizer que ele já tinha o nome de Pedroso…

Não sei, mas eu não tinha! Quando indiquei à polícia o seu nome, avisei também: “Atenção, isto está tudo maluco, o aluno disse-me vários nomes mas eu não acredito! No entanto, a minha obrigação é dizer-vos tudo”. Era essa a minha convicção. E a polícia respondeu-me: “É que alguns miúdos ainda estão a jogar em dois tabuleiros e a ser pressionados a atirar nomes para o ar e a pôr-nos à deriva”. Porque a polícia não começou por investigar estes arguidos, mas sim outros que já eram seus conhecidos.

É por essa altura que faz um aviso polémico: “Atenção, há quem ande a lançar nomes, com notas de euro à mistura, aos miúdos”…

Sim, foi por causa disso. Mas nessa altura, exceto o aluno que já referi, ninguém ainda me tinha falado no Paulo Pedroso.

Mas quem é que achava que andava a dar ‘umas notitas’?

A rede! Esse rapaz tinha dinheiro que não era da semanada. Quanto mais nomes, maior a confusão – e assim se desviava a atenção dos suspeitos sobre outros. A quantidade de nomes que me foi dita… Na altura, as redações da comunicação social estavam invadidas por listas.

E havia pessoas importantes que telefonavam a perguntar se estavam na lista.

Eu recebia listas por e-mail, por correio…

O que a fez mudar de opinião em relação a Paulo Pedroso?

Só mudei de opinião em maio, quando foi pedido o levantamento da imunidade parlamentar. Estava num colégio e a minha assessora, Olga Miralto, mandou-me uma mensagem. Só não caí porque não sou de qualidade de desmaiar. Encostei-me à parede e liguei para a polícia. Entre dezembro e ,aio ninguém me tinha dito nada acerca de Paulo Pedroso, nem a polícia nem os garotos. A obrigação dos polícias era não me contarem – e graças a Deus não me contaram -, apesar da abertura com que habitualmente falávamos. Disseram-me que já há algum tempo que havia miúdos que o referiam e que sabiam que esta a informação poderia passar para o outro lado, como, aliás, aconteceu.

Houve alunos que falaram consigo e não foram ouvidos no processo?

Sim. Nunca falei à polícia de miúdos que não me tivessem autorizado a fazê-lo. Portanto, há alguns que nunca o fizeram – e é um direito absoluto que têm. Cada vez mais estou convencida de que agi corretamente. Hoje, depois de ver o sofrimento por que passaram os que falaram, digo-vos mais: se um dos meus netos fosse abusado, aconselharia os meus filhos a não apresentarem queixa. O sistema judicial português, e os de grande parte dos países da União Europeia, não percebe de todo por onde passam os sentimentos e as emoções de qualquer criança abusada. Todo o processo a que são sujeitos depois de denunciarem um abuso é uma segunda e terceira vitimização. A saúde mental e emocional de uma criança é um problema complexo demais para ser tratado apenas por juristas, por mais competentes e bem-intencionados que sejam. Vejam o recente acórdão sobre a Esmeralda. 

Diz isso porque está muito emocionada. A verdade é que só com as queixas dos miúdos é que foi possível o processo Casa Pia e o novo olhar que a sociedade tem agora perante este problema.

Pois claro. E o resultado disso é também agora a revisão do Código Penal e do Código de Processo Penal!

2.ª PARTE (publicada originalmente a 13/10/2007)

Consta que não constituiu uma família tradicional. Quer falar-nos dessa fase da sua vida?

Sim, com certeza. Casei em 1970, numa cerimónia pouco convencional, mas da qual penso que nenhum dos que lá estiveram se esquecerá. Até o meu casamento intrigou a polícia política da época. Depois fomos viver em comunidade, inicialmente éramos 13, e preparámos esta aventura durante um ano. Como no resto da Europa, queríamos experimentar um modelo de família diferente, que nos permitisse ajudar a crescer os filhos com outra conceção do mundo. Não sei se o conseguimos. 

Depois do 25 de Abril, nunca se filiou num partido político?

Não, só no MES (Movimento de Esquerda Socialista) e enquanto foi movimento. Quando passou a partido, saí.

E foi aí que conheceu muita gente, com quem travou amizade e com quem se cruzaria muito mais tarde no processo Casa Pia, de uma forma muito… inquietante.

Mais do que isso: dolorosa. 

Que recordações guarda desse tempo? Quem conheceu na altura?

Trabalhava no Liceu de Almada e era delegada sindical. Nas infindáveis reuniões sindicais, os colegas que militavam no MRPP começaram a conotar-me com a linha do MES. E, já que assim era, decidi ir uma noite à Avenida D. Carlos I [sede do MES] e pedir informação escrita sobre o Movimento, onde militavam muitos dos meus amigos. Deram-me os documentos, pediram-me para ler e voltar na semana seguinte. Se estivesse interessada, adquiriria primeiro o estatuto de simpatizante, ao qual se seguiria o de aderente e, depois de provar a consistência da minha escolha, poderia ser admitida como militante. Li. E na semana seguinte, quando regressei para iniciar a formação, disseram-me que era candidata à Assembleia Nacional Constituinte pelo distrito de Setúbal, uma vez que trabalhava em Almada! Respondi que não podia ser porque, de acordo com os estatutos, só os militantes podiam representar o Movimento. Responderam-me que o Comité Central, que era soberano, me tinha promovido a militante. Penso que devo ter conhecido melhor ou pior todos os militantes. Nunca foram muitos. Mas eram de ‘muito boa qualidade’. 

Entretanto, estava a trabalhar onde?

Trabalhei no Colégio Feminino Francês e no Liceu de Almada. Em 1975, fui para a Casa Pia, dirigir o Colégio de Santa Catarina. O provedor à época, José Augusto Pereira Neto, meu amigo, queria reformular aquilo tudo. Devo dizer, aliás, que é um dos únicos, desde os anos 60, que sai completamente incólume deste processo. Eu não queria, mas ele convenceu-me: «Aqui estão os filhos dos mais explorados dos portugueses. Se temos poder para isso, temos obrigação de fazer diferente». Eu era completamente incompetente: de internatos só sabia o que tinha lido em livros de autores ingleses do século XIX. Mas tinha algo que não se aprende em nenhum curso: capacidade de ouvir e algum bom senso. Não tinha nenhum projeto, fomo-lo construindo juntos. Estive lá seis anos. Depois fui trabalhar na Provedoria e no Colégio de Pina Manique, como professora, mais seis anos.

Quando Ramalho Eanes foi lá, em 1976, e os alunos fizeram aquele manifesto alertando para o problema, onde estava?

Enquanto o Presidente da República estava com a direção da Provedoria, eu e outra pessoa fomos fazer companhia à primeira-dama, Manuela Eanes, e mostrar-lhe o Colégio de Pina Manique. Lembro-me de ter proferido uma frase muito pouco elegante, quando ela disse, a certa altura: “Mas eu já não sei onde estou, isto é muito grande”. E eu disparei: “Então imagine que tem sete anos e a deixam aqui sozinha; como é que se sentiria?”. A dra. Manuela Eanes, amiga que muito prezo, tinha dito antes que com muito amor e carinho resolvia-se tudo. Nós precisávamos era de obras. Mas acho que compreendeu o meu desabafo. Portanto, não ouvi nada do que se passou com o general Eanes. Mas soube do ‘levantamento de rancho’ e assisti ao jantar e ao discurso do Presidente.

Como é que, durante 12 anos, nunca se apercebeu de algo com esta dimensão? Nem com o caso dos miúdos desaparecidos e depois encontrados em casa de Jorge Ritto, nos anos 80?

Nada. Mas percebo porquê. Como adjunta do vice-provedor, já não ia às reuniões de conselho (embora, ao que me disseram, esse caso não tenha sido discutido em conselho).

E não era um assunto que se comentasse?

Se se comentava, era no Colégio Nun’Álvares. Nos outros colégios não se chegou a saber. Santa Catarina tem um edifício diferente, menos exposto (só tem uma porta) e era o único internato misto da Casa Pia, pois acolhia grupos de irmãos. Portanto, comparado com grandes colégios masculinos como o Maria Pia, o Pina Manique e o próprio Nun’Álvares, o Santa Catarina era o mais pequeno e o mais resguardado, pelo que, para qualquer pedófilo, não valia o esforço. Além disso, os grupos de irmãos autoprotegiam-se. Eu tive problemas, sim senhora, mas com as meninas que fugiam. Cheguei a ir às boîtes buscá-las. Tive uma, de 12 anos, que engravidou e quis dar à luz o bebé. Portanto, os problemas que tive foram os ‘normais’, de quem tem grandes grupos de miúdos a crescer.

Falemos agora da sua segunda passagem pela Casa Pia, já como provedora. Numa travessia destas, em que se lida com o lado mais negro do ser humano, é possível regressar saudável ao seu anterior mundo?

Bom, até me deram dois acidentes vasculares cerebrais… [risos] É verdade que não se passa por tudo isto sem se ficar fortemente marcado. Os miúdos contaram-me coisas horríveis. De tal maneira que, quando alguns deles saíam do meu gabinete, eu vomitava. Houve miúdos que me falaram de perversões sexuais que eu, com 59 anos…

… ficava chocada…

Qual chocada!? Não sabia o que era! Tive de ir à internet. ‘Chuva dourada’, por exemplo. Um dos miúdos disse-me: “Aquele era mesmo porco, só gostava de chuva dourada”.

Quando Paulo Pedroso, em cuja inocência acreditara, foi preso, o que fez?

Telefonei ao ministro Bagão Félix e pus o meu lugar à disposição. E expliquei-lhe: “Sou amiga pessoal do dr. Paulo Pedroso e admito que as pessoas pensem que não vou agir em relação a ele da mesma maneira que agi em relação aos outros, aos que os miúdos acusam de os terem abusado”. Ele respondeu-me: “Isso é impensável, não pode deixar agora os miúdos”. Fui para o meu gabinete e tinha uma dor tão forte no peito que mandei buscar uma garrafa de uísque, que o anterior provedor lá deixara. Não bebo, mas precisava de tomar um vasodilatador. E disse para os meus adjuntos (a Olga e o senhor Carlos): “Depois disto, só me espantarei se me disserem que o meu filho é abusador. Nessa altura, sento-me neste tapete e morro”. Foi para mim um choque muito grande. No dia a seguir, um aluno que me tinha falado em Paulo Pedroso telefonou-me e disse-me que tinha sido o dia mais feliz da sua vida. Aquilo incomodou-me muito, mas perguntei-lhe porquê. “Porque ninguém acreditava em mim”, respondeu. Depois apareceu no meu gabinete e contou-me tudo, nomeadamente descreveu-me sinais do dr. Paulo Pedroso que eu ia sempre tentando desmontar: “Mas isso podias ter visto numa piscina!”. E ele contrapunha: “E os sinais que estão por baixo dos calções, como é?”. E eu fui murchando, como um balão que vai esvaziando. Nesse dia, falei com amigos comuns, que estavam desfeitos, como é evidente. Mas, depois de falar com o rapaz, eu já não era a mesma pessoa.

E o PS também já era diferente consigo?

Nunca fui do PS. Mas sim, a relação ‘arrefeceu’. Algumas pessoas que até aí tinham comigo uma relação quente e próxima fingiam que não me viam ou diziam mesmo a pessoas próximas: “Vamos por aquele lado, que eu não quero cruzar-me com a Catalina”.

O PS encarou o caso como um ataque partidário. Como viu a forma como Paulo Pedroso foi recebido na Assembleia da República, depois da sua libertação?

Isso foi o maior escândalo político dos últimos anos. Se querem que vos diga, custou-me mais ver pessoas que respeitei a minha vida toda – como o dr. Manuel Alegre ou o dr. Alberto Martins – a solidarizarem-se com aquela encenação. Alegre chegou a dizer: “Hoje é um segundo 25 de Abril”. Isso desfez-me por dentro. Manuel Alegre nunca foi acusado de ser abusador; foi exilado político, preso, lutou, foi um ícone da minha juventude, viveu o 25 de Abril com a força com que também o vivi, é um homem inteligente. Assisti no meu gabinete, gelada, à vergonha da entrada apoteótica do dr. Pedroso na Assembleia! Tive de segurar as vítimas: uns choravam, outros propunham-se quase a esfaqueá-lo… E lembro-me que nessa altura, quando saiu da prisão, o dr. Paulo Pedroso disse uma coisa de que ainda estou à espera, sentada: que era objetivo dele descobrir quem foram os abusadores daqueles miúdos. Porque eles tinham sido abusados, não por ele, mas por outros, e que ia investir na procura desses abusadores. Eu e as vítimas estamos à espera.

Pensa que a prisão de Pedroso provocou uma inversão na opinião pública?

Para o povo, o escândalo foi a prisão do Carlos Cruz, que era infinitamente mais importante. Para a comunicação social, foi a prisão de um ex-ministro.

Como foi essa fase, anterior, da prisão de Carlos Cruz?

Ao contrário do que as pessoas pensam, a Polícia não me avisava do que ia fazer, o que era normal. Por acaso, estava a dormir na noite em que ele foi preso. Ouvi dezenas de nomes de vários abusadores cujos crimes estavam prescritos, mas de quem nunca se conhecerá a identidade. Tive de continuar a cumprimentá-los, quando eram figuras públicas em funções.

A seguir, foram reveladas as suspeitas sobre Ferro Rodrigues. Como as encarou?

Já lhe disse que, depois da prisão do dr. Paulo Pedroso, só a acusação de que o meu filho fosse abusador me espantaria. 

E acha que a partir daí o caso continuou a ser tratado de igual maneira?

Não, não foi tratado de igual maneira, mas muita coisa mudou desde então neste país. Nomeadamente, a compra de órgãos de comunicação social por grupos próximos de determinada linha política. Houve, pelo menos, uma tentativa de controlo, que agora é perfeitamente evidente e notória. Como as pessoas me dizem na rua: «Para que é que a senhora se meteu nisso, para ficar tudo em nada?». Até há muito pouco tempo eu era provedora da Casa Pia (saí em Maio) e não podia dizer tudo o que pensava, tinha uma posição institucional a defender. Agora sou só ‘provedora dos miúdos’ e esse lugar ninguém ocupa, pois foram eles que mo deram. Ainda me chamam ‘dona provedora’.

E como é que lida com um julgamento que se arrasta há três anos?

Vai demorar ainda mais e só agora percebi porquê. É porque era preciso que saísse o atual Código Penal, cujo art.º 30.º, como disseram vários juristas, foi feito expressamente para a Casa Pia. Antes, um crime de abuso sexual contava as vezes que uma vítima era abusada; o atual Código Penal diz que um crime continuado de abuso sexual conta como um único crime. Eu percebo por que é que foi preciso esticar no tempo este processo, com o tribunal a permitir a repetição de perguntas ad infinitum. Eu própria fui ouvida em audiência durante quase três meses, com os advogados todos a perguntarem aquilo que eu já tinha respondido três, quatro, cinco vezes. E às vítimas aconteceu o mesmo.

Mas não confia nestes juízes?

Isso é uma pergunta a que eu não sei responder. Não os conheço, nunca me relacionei com eles. Mas de uma coisa tenho a certeza: se eu tiver de ser julgada – e tenho já vários processos – prefiro mil vezes um juiz severo a um juiz medroso. Não há coisa pior para a Justiça do que um juiz medroso.

Já disse que, para si, os novos códigos Penal e de Processo Penal são uma reação a este processo da Casa Pia. Mas essas leis foram aprovadas com os votos do PS e do PSD. Como interpreta isso?

Isso foi uma das coisas que mais me incomodaram. Não sou jurista. Só me dei conta da gravidade do que estava a acontecer com as alterações dos códigos à medida que fui ouvindo os comentários dos especialistas. Estes atravessam todas as linhas universitárias e ideológicas e parece que estão todos de acordo em que houve aqui questões políticas e não só técnicas e jurisdicionais. Acho que metade dos deputados não leu os códigos, como acontece sempre (quem não é especialista confia nos seus companheiros de bancada e vota com eles…). Perguntam-me como é que os dois partidos aprovaram isto? Bem, havia um pacto para a Justiça, além de que a diferença entre os dois partidos hoje em dia tem de se ver ao microscópio, já não basta uma lupa… Quanto às oposições, o meu sentimento é que esta votação ultrapassa muito os partidos e que algumas alterações foram lideradas por outra forma que as pessoas têm de se organizar… mais discreta… 

Está a referir-se a quem? À Maçonaria?

O vosso diretor, José António Saraiva, num artigo que escreveu, foi a primeira pessoa a dizer que muitos casos que ocorreram no processo Casa Pia foram reflexo das guerras na Maçonaria. Mesmo assim, eu não digo ‘a Maçonaria’, mas sim alguns setores da Maçonaria. Porque a Maçonaria não é uma associação de malfeitores, mas tem um defeito tenebroso: os seus elementos protegem-se todos uns aos outros.

Sofreu pressões para sair da Casa Pia?

Não me pressiona quem quer, mas quem pode. O meu último ano foi muito difícil. Houve um esvaziamento de poder total e absoluto. E isso, saliento, não teve nada que ver com Joaquina Madeira [atual presidente], uma mulher séria.

Houve tentativas para a demitir, assim que o PS foi para o Governo?

Sim, houve. Mas a oposição a esse facto envolve outras pessoas e não vou falar disso.

Que projetos tem para o futuro?

Saí em maio e não disse uma palavra até hoje. E era minha intenção não falar sem que o julgamento deste processo estivesse terminado, pois nunca comentei as decisões judiciais. E, a propósito, lembro que já houve [noutros processos relacionados com a Casa Pia] três condenações transitadas em julgado. Mas, agora, assisto ao caso do predador que matou o Daniel – uma criança de seis anos, amblíope, surda, que foi abusada até à morte e que morava no meu concelho [Oeiras] – a ser posto em liberdade; e vejo o juiz do processo, torturado, a ir à televisão explicar por que teve de o libertar. Fiquei a saber ainda que, se um polícia encontrar um homem a espancar uma mulher e o levar para a esquadra, só pode identificar o indivíduo e deixá-lo ir para casa, continuar a fazer o mesmo. Então, eu pergunto: onde está o Estado de Direito? Não foi para esta qualidade de Justiça que foi feito o 25 de Abril. Nós estamos a andar para trás 50 anos, em nome das liberdades de alguns, e as vítimas são cada vez mais vítimas. É óbvio que os arguidos têm direitos e sempre lutei por eles. Claro que um arguido é inocente até prova em contrário. Mas como aceitar a libertação de homicidas, condenados, numa Justiça que leva anos a despachar situações como a da Casa Pia? É preciso que a sociedade civil responda a este crime.

Vai, portanto, tomar alguma iniciativa?

Tenho sido contactada por algumas dezenas de pessoas que me interpelam: “Mas como é que você vê isto e fica calada?”. Ouvi atentamente e li tudo o que foi publicado nas últimas semanas e cheguei a uma conclusão: a democracia não se esgota nos partidos. Se nos partidos todos acharam que este Código Penal e este Código de Processo Penal eram muito bons, então a sociedade civil tem de se organizar para defender pelo menos aqueles que não têm ninguém adulto que os defenda.

Vários arguidos colocaram-lhe processos em tribunal. Faz ideia de quantos?

Que tenha conhecimento, uns nove ou dez. Comecei por ser encarada como suspeita – mas, agora, quando vou a tribunal, devo dizer que sou tratada pelo Ministério Público como uma pessoa que nunca mentiu neste processo. Eu, de facto, não me engano, pois nunca menti.

Por que teve a Casa Pia tantos advogados (Proença de Carvalho, António Pinto Pereira e José António Barreiros)?

Terá de perguntar aos próprios.

Como avalia o papel de Souto de Moura?

Não o conhecia, falei com ele duas ou três vezes e acho que é um homem de uma integridade moral como poucos. Mas é totalmente incapaz de gerir a sua relação com a comunicação social. Acabou por sair com uma imagem de fragilidade, quando é tudo menos frágil ou pressionável. Devo dizer que os miúdos da Casa Pia têm para com ele uma dívida de gratidão que nunca saberão compreender, nem poderão pagar.

Chegou a falar alguma vez com Paulo Pedroso sobre isto?

Não. A seguir à prisão dele, falei com o João Pedroso durante muitas horas. Ele tentava provar que o irmão era inocente e falei-lhe dos elementos que tinha. Foi uma conversa civilizada de duas pessoas que estavam, infelizmente, em lados opostos.

Chegou a dizer que a verdade do processo Casa Pia seria igual a um terramoto. Qual foi, afinal a intensidade do abalo?

Um terramoto de grau sete. Quando se fizer a história deste processo, todos verão que, se houvesse legislação que permitisse investigar tudo o que foi dito a mim, à Polícia Judiciária e ao Ministério Público, o terramoto teria consequências devastadoras.

Tenciona divulgar esses nomes?

Quando isso acontecer, eu já cá não estarei. Vou deixá-los a quem há de ficar vivo, para só daqui a 25 anos os publicar, como a lei diz.

E a quem deixará isso?

A alguém de confiança absoluta. Há investigadores, há universidades, gente que não tem nada que ver com isto. E, para se fazer História, é preciso não ter paixão. O maior erro que eu cometeria era escrever um livro: estragava tudo. Porque recebo todos os dias contactos dos miúdos, sou interpelada na rua todos os dias por pessoas que não conheço e para quem sou o rosto que defende aqueles miúdos. Não sou neutra, mas acho que nisto só se pode estar de um lado: ou do lado dos abusadores, ou das vítimas. Eu estou do lado das vítimas, independentemente de saber quem são os abusadores. E se, em conjunto com outras pessoas que já me manifestaram disponibilidade total, conseguir criar essa Rede de Cuidadores, para ajudar o Estado a cumprir uma missão que está a cumprir mal, ficarei muito contente.

Se lhe tivessem pedido, teria continuado à frente da Casa Pia? Se lhe tivessem manifestado confiança?

Não era possível. Nem era possível que este Governo o fizesse. Depois daquela entrada triunfal na Assembleia da República, para mim ficou tudo muito claro.