A primeira festa de Natal


As emoções do primeiro teatro na escola… mesmo quando eles só estão uns minutos em palco


Os relatos são míticos nas famílias. Festas de Natal quando eles eram pequenos? “Que pincel, ginásio cheio, morríamos de calor, mas lá tinha de ser.” Quando a isto se junta um desempenho desengonçado no ballet, como foi durante algum tempo o meu caso – até deixar de fazer ballet, não que tenha melhorado… –, recordar esses tempos é sempre oportunidade para gozarem só mais um bocadinho connosco. Depois há aqueles pais mais tecnológicos dos anos 90 que gravavam tudo e, de vez em quando, lá iam pondo as cassetes. Durante algum tempo achei que era coisa de famílias mais galinhas, daquelas que um dia mais tarde acabam a ser cheerleaders em programas de talentos do género daquele das mães controladoras de pequenas bailarinas que passa num canal do cabo (surreal, por sinal, mas é acreditar que é tudo só para a câmara). Bom, a maternidade é mesmo um poço de emoções que vamos descobrindo aos poucos e a primeira festinha de Natal da minha filha deixou-me com uma lagrimazinha no canto do olho.

É tudo uma descoberta nestes primeiros tempos de escola, para eles e para nós. Durante os últimos meses fui tentando sacar informações porque ela dizia que tinham tido ensaios. Consegui perceber que havia uma “babushka” e umas cantigas, mas pouco mais. É engraçado como, aos três anos, os miúdos já dominam aquela técnica maravilhosa de desviar a conversa para o que lhes interessa com respostas monossilábicas às nossas perguntas aborrecidas. Foi bom o dia na escola? “Foi.” Como vai ser a festa de Natal? “Vai ser boa.” Era esperar e assim fiz, com uma curiosidade crescente. Ela ia ser uma estrelinha e a certa altura mudou para o papel de anjinho, o que deu azo a algum protesto porque a estrelinha era melhor e tinha brilhantes, mas de resto continuava sem grandes luzes.

Finalmente chegou o dia e entreguei–a naquela fila de pais com os colãs brancos e a camisola pedida, ansiosa por que tudo corresse bem, e ela nem aí. Queria ter-me sentado na primeira fila, mas não fui a tempo e ficámos cá mais para trás, à espera. Nas mãos, o guião com as falas das diferentes personagens. Fiquei meio triste quando percebi que ela não ia falar, mas depois pensei melhor: imagino que todos os pais gostem que os seus filhos sejam protagonistas e vê-los em grupo com os mais velhos mete as coisas no lugar, desacelera-nos. Às vezes parece que queremos que eles cresçam mais depressa. Ficamos felizes quando fazem e dizem coisas como crescidos quando o normal é serem do tamanho da idade deles, e só isso é tão bom.

A história, um original da escola, era encantadora. A babushka, avó em russo, está tão preocupada em trabalhar, limpar, tratar da comida e fazer tudo e mais alguma coisa que não vê os sinais do Natal que se aproxima. Em vez de ver a estrela pela janela vê uma mancha no vidro. Em vez de convidar logo o anjo, pede-lhe para limpar os pés antes de entrar em casa.

A certa altura há um twist e ela consegue libertar-se de tudo o que a prende, dar de si aos outros e acabar mais perto do Menino Jesus. Estava tão abstraída com o enredo e com as músicas cantadas pelo pequeno coro bem ensaiado e com o empenho de todos os miúdos (e professores) que, quando apareceu a minha anjinha, no final do primeiro ato, quase nem dei por ela. Foram uns segundos em palco e senti-me como se tivesse perdido a estreia de uma grande artista no Coliseu. A partir daí, nunca mais tirei os olhos de cena e, quando ela tornou a aparecer, no fim, no seu lugar no quadro composto do presépio, fiquei emocionada. Mistura–se tudo quando os vemos assim, a ganhar autonomia, a fazer o que um dia fizemos: os miúdos que fomos, com tudo em aberto, os nossos pais 30 anos mais novos, os nossos avós. E, de repente, uma festinha de Natal é muito mais que isso: uma viagem no tempo, saudade e expetativa, poucas certezas além desta de que o tempo vai sempre para a frente.

Os mais experimentados dirão que, para o ano, isto passa, e se calhar daqui a 20 anos também vou estar com aquela conversa cheia de graças sobre as figuras dela nas festas da escola, mas fica guardado o sentimento desta primeira. Resta dizer que tive vergonha e não fui lá para a frente filmar (só depois de me certificar de que estava alguém da escola a fazê–lo, claro). Como acabou? Bom, na nossa versão da história, o anjinho levou um encontrão de um pastor, foi parar ao meio do chão e saiu do palco a choramingar, à procura do colo da educadora. No carro, ela só queria ver as fotografias e, apesar de ter gostado muito, ficou indignada por não termos apanhado o momento da queda. Desmanchámo-nos a rir, o que é sempre um final feliz.

 

Jornalista

Escreve à sexta-feira