Proteger os ricos, desprezar o povo


Ao contrário do que se possa supor, Macron é um político inexperiente e pomposo, sem passado político que o recomende, cheio de vontade de retribuir o apoio da ínfima minoria dos doadores franceses mais ricos que financiaram a sua proeza eleitoral


Se mais algum exemplo fosse necessário para se perceber que as chamadas “grandes reformas estruturais” preconizadas pela direita são sempre contra as classes populares e as classes médias baixas, aí estão os graves acontecimentos ocorridos em França para o demonstrar. Alvo das violentíssimas manifestações de rua, um presidente da República oriundo da banca, arrivista e hipócrita, que não hesitou em aproveitar-se da vulnerabilidade do Partido Socialista Francês para nele se infiltrar, conquistar as boas graças do então PR François Hollande, chegar a ministro, ter uma performance medíocre e fazer “implodir” o governo e o PSF com a conivência dum primeiro-ministro, Manuel Valls, igualmente oportunista e hipócrita, e que, tal como Emmanuel Macron, também queria ser PR, mas, como não o conseguiu, sonha agora presidir ao município de Barcelona!?

Ao contrário do que se possa supor, Macron é um político inexperiente e pomposo, sem passado político que o recomende, cheio de vontade de retribuir o apoio da ínfima minoria dos doadores franceses mais ricos que financiaram a sua proeza eleitoral, conseguida por exclusão de partes – queda brutal do PSF, divisões entre os partidos da direita tradicional, afluência ao seu movimento, La Republique en Marche, duma multidão de trânsfugas, arrivistas e vira-casacas –, convergindo todas as circunstâncias para colocar frente a frente, na segunda volta da eleição presidencial, o candidato janota e bem-parecido Emmanuel Macron e a detestada candidata da extrema-direita Marine Le Pen, “condenada” à partida.

A retribuição de Macron está à vista: não só os mais ricos passam a pagar menos impostos como terão ainda melhores hipóteses de lhes escapar por via das novas possibilidades de optimização fiscal que Macron lhes proporciona. O Estado a que ele preside deu, com a mão direita, vários milhares de milhões de euros ao ínfimo punhado de franceses mais favorecidos, e tirou, com a mão esquerda, o punhado de euros com que vários milhões de franceses contavam para arredondar os seus já penosos fins de mês. A diminuição do poder de compra real das classes mais modestas é consequência directa da redução dos subsídios de alojamento, duma reavaliação por baixo das prestações sociais, dum aumento dos impostos sobre a energia e sobre o tabaco e duma pressão fiscal acrescida sobre as reformas mais baixas. Ao invés, e graças às revisões em baixa do crescimento, os franceses mais ricos preparam-se para ver os seus rendimentos crescer dum modo espectacular, tendo em conta, nomeadamente, a quase supressão do imposto sobre as fortunas (ISF), que tinha o mérito de introduzir alguma justiça fiscal. Segundo estimativas do Instituto das Políticas Públicas francês, os rendimentos de 1% (um por cento) das famílias mais ricas beneficiarão de um doping de 6% (seis por cento), e os rendimentos de 0,1% dos mais ricos entre os ricos de um doping de mais de 20% (vinte por cento). Nunca os mais altos patrimónios estiveram tão bem em França, graças ao antigo banqueiro dos Rothschild que se pavoneia no Eliseu.

Como denunciou a economista francesa Julia Cagé, professora na Faculdade de Ciências Políticas de Paris, muito antes dos graves acontecimentos ocorridos na capital francesa, a grande maioria dos cidadãos já não se sente escutada nem representada por políticos que abandonaram o seu eleitorado mal se viram eleitos e que, agora, estão mais preocupados com a “caça aos cheques” que os financiem do que em olhar para as duras realidades que enfrentam as classes populares. Tal como noutros países da Europa – ou nos EUA –, também em França a chamada esquerda de governo abandonou por completo as classes populares e quis fixar-se, em vão, como representante exclusiva das classes médias, numa incessante busca de quem lhe abrisse os livros de cheques para financiar os seus partidos. Ao mesmo tempo, as democracias passaram a ser cada vez mais dominadas por oligarquias políticas e financeiras, num perfeito conluio que as foi transformando em plutocracias, tal a dependência em que estão dos financiamentos privados que as fazem assemelhar-se às democracias censitárias dos primórdios.

A extrema violência física dos protestos a que assistimos, pela televisão, nas ruas de Paris – ao lado da qual a violência do Maio de 1968 foi quase uma brincadeira – não deve fazer-nos esquecer a extrema violência anti-social das políticas impostas a milhões de franceses por um presidente da República ao qual pouco interessa a maioria que o elegeu, estando mais interessado em satisfazer “o seu eleitorado”, nitidamente minoritário em todo o país mas infinitamente mais favorecido do que a média dos cidadãos. E, assim, Macron vai cavando cada vez mais o fosso que o separa da grande maioria dos franceses. Tornou-se mesmo um triste exemplo da “ascensão da insignificância” de que falava Cornelius Castoriadis.

Em Abril passado, o semanário francês “Marianne” acusava Macron de desprezar os sindicatos, ignorar os ferroviários, maltratar os funcionários, abafar o parlamento, provocar os laicos e bajular os católicos, numa brutal viragem à direita. Chamava-lhe “O Liquidatário”. E a arte oratória de pouco lhe servirá se continuar a proteger os ricos e a desprezar o povo. Nem sei se chegará ao fim do mandato…

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990