Joaquim Manuel Magalhães. O regresso do mestre bonecreiro

Joaquim Manuel Magalhães. O regresso do mestre bonecreiro


Depois do radical corte que operou, em 2010, com a sua obra poética e crítica, a última grande figura tutelar da poesia portuguesa reafirma aquele gesto, e abre margem para novas visões e revisões num novo livro: “Para Comigo”


Para que o tempo se mostre, que outra perspectiva mais clara há do que colocar uma pedra entre coisas de natureza perecível? Como uma mágica, a sua imóvel ênfase levará a que, em seu redor, tudo envelheça. Uma pedra sobre um assunto basta, por vezes, como denúncia daquilo que deve o seu poder inquietante a um certo arranjo das circunstâncias.

No início de 2010, quando Joaquim Manuel Magalhães surpreendeu os seus leitores ao publicar “Um Toldo Vermelho” –  volume que terminava com um aviso de que esse livro excluía e substituía toda a obra poética anterior –, conseguiu provocar algum tumulto. Esse premeditado efeito veio subtrair aquela obra à cadeia de nexos que corporizara, numa articulação com os textos ensaísticos que este crítico-poeta publicou ao longo de décadas, nessa que permanece como a mais influente leitura da poesia portuguesa contemporânea.

Para a persuasão dos seus argumentos, JMM soube valer-se de um efeito de exemplaridade da sua própria obra poética, que sinalizava a par e passo as descobertas do seu exercício crítico, como quem prova a carne e, através da carne, sabe reflectir uma lição e modelo, instituindo também “uma certa genealogia”.

No “novo pacto” que preconizara – primeiramente numa recensão a um livro de António Osório, mais tarde transposta para versos, no poema “Princípio” –, Magalhães argumentava que, em face do desgaste a que se chegara numa urgência de arrancar a voz a “efeitos de recusa”, talvez só restasse, por fim, rejeitar esse precipício que via desenhar-se “no meio de frases destruídas,/ de cortes de sentidos e de falsas/ imagens do mundo organizadas/ por agressão ou por delírio”. Assim, e em nome da diferença, depois de um tão deslumbrado alheamento, a tarefa do poeta que buscasse “voltar junto dos outros”, talvez não pudesse ser feita senão num “regresso às histórias e às/ árduas gramáticas da preservação”.

Uma década mais tarde, num ensaio que integra o volume “O Mosaico Fluido”, de 1991, Fernando Pinto do Amaral devolve criticamente o eco que a poesia de JMM manifestou, e fala de “uma narratividade que não receia descer a pormenores de índole quotidiana ou biográfica; uma atenção descritiva que se volta para tudo o que rodeia e impressiona o sujeito, mesmo e sobretudo certas realidades menos tradicionalmente ‘poéticas’; uma vontade confessional que, sem atingir a ênfase umbilicalmente derramada de outros autores, não abdica, ainda assim, de conseguir uma comunicação afectiva de tom intimista com o leitor; enfim, algo a que, numa óptica global, poderíamos chamar, um pouco apressadamente (…) um retorno à ânsia de mimesis em relação ao real, perdidas as ilusões de fazer da escrita um instrumento radicalmente alterador, o poeta remete-se ao sábio uso de uma linguagem por vezes na fronteira com a música, essa especial conjugação de palavras, sons e ritmos, esse fluxo verbal ‘muito cantável’ que a tradição insiste em considerar poesia.”

“Um Toldo Vermelho” causou bastante perplexidade e mereceu as maiores reservas da parte da crítica, com Luís Miguel Queirós (crítico que deve a preponderância das suas leituras menos a uma fulgurante intuição pessoal do que à capacidade de realizar censos e representar uma opinião alargada) a mostrar-se céptico quanto à possibilidade de JMM impor a sua vontade, substituindo os antigos poemas pelas novas versões, que daqueles detinham meros vestígios, detritos, ecos aprisionados entre ruínas. Mas, entretendo essa hipótese, Queirós sustentou que, em termos práticos, o gesto sacrificial e prenhe de violência do poeta significaria apenas que “a poesia portuguesa contemporânea teria perdido um dos seus nomes mais relevantes e, triste contrapartida, teria ganho um poeta de uma deprimente mediocridade”.

Volvidos oito anos, e com um longo silêncio de permeio, Magalhães regressa para emendar a mão. “Um Toldo Vermelho” deveria ter sido o último livro, ou o único – a obra completa –, mas agora, segundo disse na primeira de duas entrevistas (as primeiras em décadas), também este já não vale, e é mais outro livro que deve ficar como vaso quebrado, porque (imagine-se) se tratou de um acto um tanto precipitado; e se o poeta não abdica do golpe de ruptura, começou a ver nele outros desacertos, portanto: “deitem-no fora, ignorem”. Aqui, o leitor diz, desculpe, sr. autor, mas: merda! Mais de não sei quantas revisões e reuniões, conselhos de guerra e o raio, tanta algazarra, tantas baixas, e não, ainda não era aquela; agora é que é!? Na justificada suspeita face aos caprichos do autor, o mais natural é que o leitor, ao saber da edição de uma nova reunião do que ficou para trás, pergunte qual será o prazo de validade de “Para Comigo”.

Estamos de volta às versões de antigos poemas – ex-poemas, no fundo –, como se o poeta os houvesse submetido a um efeito de penitência, entregando o corpo, para sair reduzido a detalhes carbonizados, num minimalismo grotesco, a gramática implodida, sínteses com o cilício à perna; a própria linguagem torna-se excremencial, e os poemas, que ainda temos impregnados na memória como melodia aparecem aqui reduzidos aos “ossos que não se desfazem quando um corpo arde”. Resta uma espécie de desgosto e luto, o ver sacrificados versos tão marcantes a uma teoria desfiguradora, num livro-tese que parece deleitar-se com uma forma de necrologia de um cada vez mais incerto passado poético.

No meio de arritmias, frases destruídas, da própria sintaxe macerada, e de uma variação que se fica por cortes de sentidos, estas versões parecem boas para telegramas enviados através de linhas inimigas, à espera que do outro lado algum leitor possa recompô-los, devolvê-los à sua digna e comovente força humana, em que é central um balanço entre a aspereza e o alto grau de sedução, entretecendo esses “recônditos rumores” que traduzem, a um tempo, as frases que escapam da boca de uma língua que sonha e os murmúrios que escuta de outras, num tão profícuo diálogo além fronteiras.

A estas novas variações do exercício de irada rejeição que começou com “Um Toldo Vermelho” está subjacente uma nova articulação crítica que, agora sim, soçobra nos seus vícios retóricos, na necessidade de forçar à sensibilidade dos leitores um laxante teórico que, se não deixa de ser curioso nas suas premissas, se mostra atrozmente limitante quando aplicado aos versos, os quais, na melhor das hipóteses, inspiram a nossa piedade: “Na cómoda/ um mortiço talher./ Eremita painel./ Lúdica inflação,/ gonorreia.// O malversado recoloca/ o sardónico pluvial/ no íntimo equinócio.// O nexo do planeta inunda/ bidé, hidrângea, a campina rubi./ Rútilo tumor/ de vaia folhetim.// O cardo, o rícino/ disseminam.// O promontório./ Um passe aflito./ Carbúnculo, assédio à prova./ O precipício.” 

JMM quer-nos dar a comer pão com vidros e ainda quer ouvir que o acepipe está uma delícia. É bom que o leitor e o crítico rasguem o canal digestivo todo, dêem quantas voltas forem necessárias para não lhe vir dizer simplesmente que isto não presta. Nem é que o leite esteja azedo, ou que a dobrada a tenham servido fria, é que o poeta pirou de excessos de teoria, de um desejo de radicalidade não acompanhado nem pelos poemas e nem sequer pela língua, que sai disto como se se estivesse a tentar aplicar-lhe princípios da cozinha molecular, mas não para enriquecê-la, antes para embrutecê-la em nome de uma austeridade tresloucada. Como se a alta cozinha pudesse dar um salto senil e permitir-se estratégias de alimentação forçada, uma vez que, como ficou claro, depois da publicação de “Um Toldo Vermelho” foi o público da poesia que não se dispôs a comer daquele pão.

Ainda que a prosódia imponha um gosto traumático à língua, exarando os versos de repetições, é o exercício que se torna repetitivo, como alguém que se converte a uma religião tarde na vida, e prova a sua fé por via de uma extrema devoção; devoto a um ponto em que se julga marcado por estigmas, se arrepende de tudo, revisitando o passado, numa purga brutal, produzindo uma poesia que mais não faz que auto-penitenciar-se. É evidente que, após o tumulto inicial, logo o desesperado golpe que se quis segundo uma disciplina de samurai, revelou a inquietação de um puro vândalo, ao sacrificar aquilo que tornava a sua poesia admirável, coesa, uma obra atravessada pela vida de um homem, entregando-a num eco estropiado, como se não houvesse mais a possibilidade de cantar fosse o que fosse, nem o desencanto nem outro real que não a experiência do martírio diante das hélices devastadoras do ruído. E tudo o que restasse fosse uma gravação cheia de cortes, sendo impossível escutar-se um só verso na sua inteira e disponível graciosidade, ficando apenas estilhaços, uma cadeia de absurdas mnemónicas. E o leitor, ao invés de amar os versos, agora é como se tivesse de aturá-los em nome de uma antiga afeição, ouvi-los gemer das mazelas de uma bomba de fragmentação…

A lição, diz o poeta que a foi buscar a Anton Webern. Terá pretendido alcançar o estilo mais depurado, cristalino, um extremo de concisão e intensidade, evitando repetições (?), mas o que se sente é a camisa-de-forças que a imobiliza, e a transposição parece demasiado literal, uma forma de fundamentalismo. O verso fossiliza-se, é um resto, um caco, e é demasiado fácil mostrar como o que se perdeu foi o ouvido, e a linguagem passou a ser o reflexo da própria catástrofe. “Sedimento depredado./ O físico perito na afronta.// Conluio de um infiltrado, presumo/ que de prerrogativa./ Tetina rebarbadora,/ um afrodisíaco sebento.// Tribo contrita e devoluta./ Ameno bário de harpia./ Não devoram na fome,/ não acumularam todavia/ pânico laboral.// Sábios em economia acessória,/ pelotão de acne no ripanço./ O vitríolo exímio/ na retina.// Aterro de continente falsário./ Degredam uma sobra./ A sarjeta.”

Entre os tantos enterros que proporcionou à sua obra, e as diversas vezes que voltou para profanar os sucessivos túmulos, a bibliografia de JMM tem a sua própria biografia, uma bastante dramática. Mas não são apenas os saltos daqui para ali, os cortes e emendas, são as disposições testamentárias de um autor que publica e logo se indispõe não só com o antes feito, os poemas, mas ainda, e até mais, com as leituras deles feitas. Por isso, não abdica da última palavra. Não só faz e desfaz, se pudesse talvez também perseguisse o leitor até casa, lhe desse indicações precisas, até a que horas, com que luz devem ser lidos os seus versos. E se ignorado, ralha, e ainda quer reaver os livros… “Não tinhas que gostar disto, não era isso o que quis dizer, dá cá, lê assim, não está muito melhor?, não está?, não está?, não percebes nada.”

Se há autores que fazem um silêncio atroador para não perturbar a leitura do que deixaram escrito, outros ficam ali, pendurados no ombro a querer explicar-se, e guiar o leitor; tornam-se controladores, possessivos não só em relação aos seus textos como às interpretações. A própria poesia tinha-nos já habituado às birras e desmandos de um autor que, não tão solitário assim, parecia na verdade ter a ambição de dirigir uma orquestra, e que também parecia querer compor a sua audiência, dizendo que queria ser lido por estes e não por aqueles. E parece haver, de facto, como também notou Luís Miguel Queirós, um Dr. Jekyll para o Mr. Magalhães, já que, em 2001, numa nota de lucidez na sua anterior reunião da obra que ficara para trás, no volume “Consequência do Lugar”, lembrava que “estes assuntos são secundários para o leitor ideal, aquele que só quer ler e partir para o que é dele com essa leitura. De qualquer forma ficam estes limites para outros leitores, que procurarão o inútil: vistoriar o que eu acolho, recolho ou despeço.” E talvez aqui já não fosse o poeta mas, num assomo de lucidez, o crítico, Dr. Jekyll, que, dando-se conta dos excessos do outro, introduzia esta ressalva, como um açaime para impedir que o outro se ponha a morder os leitores, aqueles que não cedem a mordomias para com os autores, e nem ligam aos anúncios afixados nas vedações e cercas da literatice.

Às tantas, talvez seja preciso lembrar que é o leitor quem, tendo os livros para lá, nas estantes, decide se os há-de ler e como, se de trás para a frente, se saltando, rasgando folhas, sublinhando este verso, riscando aquele. E o autor que sossegue, já que os livros publicados entram na jurisdição de quem dispõe deles para dar-lhes o sentido que bem entenda.

Mas se tantas vezes JMM fez questão de chamar a si de novo os livros, e tantas vezes com perda para os poemas, e se neste teatro fastidioso, depois de um tão enfático golpe, uma vez mais regressa e traz novamente uma revisão do programa (depois de dois livros em edições de autor, fora do mercado – cem exemplares distribuídos pelos amigos, agora reunidos em “Para Comigo”), o leitor questiona-se: o que vem a ser tudo isto? Que salsifré, que apoteose busca JMM? Porque vem dar por escrito uma entrevista, antecipando-se um mês à chegada do novo livro às livrarias, com o entrevistador e crítico que mais se dobra a oferecer as costas para que o poeta venha mandar uns recados, dar conta do que andou a fazer? Só faltou assinar ele mesmo a recensão, com tudo o que o outro veio repetir, como aluno de primeira fila debitando as palavras que salvou nos apontamentos. E que outra evidência podia comprovar melhor que o actual programa não se sustenta sem um pós-operatório complicado, sem que JMM sinta que tem de ser ele mesmo a preparar a sua recepção, fazer a caminha, usando lençóis com uma contagem de fios inaudita, servindo-se, para isso, de um delegado de propaganda literata, crítico de mão mole, dessas em que qualquer um pega, e de que tantos têm sabido servir-se para assinar o que gostariam de ver escrito sobre as suas obras?

E é afinal nesta entrevista, encenando um regresso depois do silêncio, que se colhem alguns indicadores cruciais para se concluir que “Para Comigo” é ainda um gesto mais do que um livro de poemas, e um que precisa ser prolongado, pois não pode ser lido ou apreciado sem orientação crítica. Ora, como o próprio Magalhães frisou em “Um Pouco da Morte”, “Há, no mais fundo da poesia, uma sinceridade inimiga da retórica”. Essa sinceridade é o que mais machucado sai na depredação a que os poemas foram sujeitos. O poeta que quis brincar aos mestres do silêncio, premeditou a sua reentrada em cena, isto depois do fracasso em provocar um flagelo, deixando órfãos os que tinham ido beber no seu charco o reflexo das estrelas. Mas ao contrário da imagem de serenidade, a do poeta desinteressado da mundanidade, o que transpareceu foi a inquietação de alguém que desafiou o esquecimento, convencido de que viriam mendigar-lhe sinais de fumo, fogo, só para ter o esquecimento a respirar-lhe junto ao pescoço, a fazer o que tão bem faz a tantos e tão admiráveis autores. E aqui apetece citar “O Homem que Falou”, de Jean Giono, num desses acasos que nos servem as mais furiosas rimas: “Como podem ver, este homem tinha uma espécie de sarna a roê-lo em sítios onde não podia coçar-se sozinho.”