Um pouco de céu


Vale a pena visitar a igreja de Santa Isabel e, longe do rebuliço, contemplar aquele céu a abrir-se


Que bom quando Lisboa nos surpreende. A pintura do teto da igreja de Santa Isabel, inaugurada em julho de 2016, é um projeto bonito, de inspiração, dádiva, espiritualidade, arte e amizade. Nunca o tinha ido ver ao vivo e, agora que fui, posso dizer que há algum tempo que não ficava tão feliz com a cidade.

A história já foi contada muitas vezes mas vale sempre a pena partilhar, para que mais a possam descobrir. Em 2009 o pároco teve a iniciativa da recuperação da igreja, reuniu-se com os arquitetos Appleton e Domingos, Nova Conservação, Appleton Square e surgiram as primeiras conversas com o artista plástico Michael Biberstein, radicado em Portugal. O teto da igreja em Campo de Ourique era escuro, inacabado. Michael Biberstein imaginaria um céu a clarear, que aproveitasse a luz e completasse a igreja. Seguiram-se esquissos, estudos, uma angariação de fundos para o projeto. A morte súbita do autor, em maio de 2013, e quando estavam reunidas verbas para a obra, levou a que o seu céu se tornasse realidade também como forma de homenagem, acompanhado de perto por aqueles que lhe eram próximos.

Hoje o “céu de Mike”, como carinhosamente ficou conhecido, é mesmo um oásis na cidade. Pelo lugar onde está, no silêncio, atrás de uma fachada discreta, longe da confusão dos roteiros da moda. Pela calma que transmite, pela beleza e simplicidade e, ao mesmo tempo, pela profundidade com que nos chama a parar e contemplar. A desvendá-lo. Parece mexer-se, não nos sai da cabeça. Chovia a potes no dia em que o visitei – vi a bonança depois da tempestade. Será diferente num dia de sol?

Num texto de 2010, publicado no blogue do projeto, Biberstein falava da sua motivação para a obra. Além da sua formação ter passado pela arquitetura paleocristã e românica, o que lhe deixou um “duradouro amor pelos espaços sagrados”, ao longo da sua carreira a intenção das suas pinturas foi sempre a de provocar no espetador um estado de pacífica contemplação, escrevia. “Filosoficamente, é verdade que sou agnóstico e não católico. Não ateu, mas agnóstico. Considero-me igualmente uma pessoa profundamente espiritual e nisso não vejo qualquer contradição. Os espaços sagrados que visitei por todo o mundo deram-me um respeito profundo pelas manifestações da nossa (humana) necessidade de espaços que induzam à tranquilidade e à concentração necessárias para elevar os nossos pensamentos da rotina do quotidiano para os valores que fazem de nós humanos.”

Em maio, a propósito de uma mostra retrospetiva do artista, o curador da exposição na Culturgest, Delfim Sardo, resumiu que o objetivo da pintura de Biberstein era “desacelerar a perceção, contra a voragem constante” das imagens.

É também esse um dos encantos de olhar o céu: desacelerar a perceção. Um fascínio ancestral que nos cativa logo em miúdos e nos leva a devorar o céu azul de verão com farrapos de nuvens a serem soprados devagar ou a perdermo-nos num céu estrelado, cintilante, com a névoa da Via Láctea a lembrar-nos o quão pequenos somos aqui e, ao mesmo tempo, parte de algo maior.

Na cidade vemos cada vez menos o céu. Há os prédios, o trânsito, pessoas, montras, pessoas novas, montras novas, o telemóvel na ponta dos dedos, a vida no geral. Vale a pena respirar fundo uns instantes debaixo daquele céu a abrir-se da igreja de Santa Isabel, como descreveu na inauguração o Cardeal-Patriarca D. Manuel Clemente. Deixar entrar um pouco de céu, como canta a Mafalda Veiga, um pouco de luz.

 

Jornalista, Escreve à sexta-feira