Toni. Conversa entre pai e filho numa esquina do deserto

Toni. Conversa entre pai e filho numa esquina do deserto


António (pai): “Vejo nele muito potencial!” António (filho): “O meu futuro imediato não passa por treinar em Portugal”


KAZMA – Também chove no deserto, acreditem ou não. Chove e faz frio, e um vento que entra pelos ossos percorre todo o estádio de Sadaqua Wal-Salam. Lá ao fundo, o homem com a “disdasha” parece um fantasma.

Kazma não é Koweit City, como eles gostam de chamar à capital. Fica perto de Salmiya, a zona de blocos onde vivem os Antónios Oliveiras, pai e filho, mais Toni o primeiro do que o segundo – afinal, a antiguidade ainda é um posto. “Nunca é muito fácil trabalhar nestes clubes. Há sempre uma hierarquia média muito difusa. Vês aqui dois ou três dirigentes no estádio e a verdade é que não mandam nada. É o presidente que decide tudo.” Decide tudo ao ponto de este ano lhe ter posto nas mãos nove médios. Andam por ali aos pontapés. Já extremos, por exemplo, só há dois. Um deles adora o Quaresma. É Omar, um rapaz magrinho, de barba aparada: o Omaresma, como lhe chamam. “Este ano já fez dois passes para golo de trivela”, conta António Oliveira filho enquanto se prepara para orientar o treino. Cada vez mais é ele que se responsabiliza pela prática diária dos exercícios técnicos e táticos. Toni reserva-se para as palestras, para os jogos. “Eu já fui expulso. O meu pai pode entrar pelo campo dentro que não há árbitro que o ponha na rua.”

Na sala pequena de entrada para a zona técnica, um cubículo com algumas máquinas de exercícios. Depois, logo ao lado, uma sala maior, atapetada, rodeada de sofás. É a sala da reza. Enquanto sigo Toni pelos corredores, espreito pelo canto do olho alguns jogadores debruçados, virados para Meca. São quatro da tarde. O muezim não demorará a soltar, do alto do minarete, o “Al illah il Allah” que chama à oração.

Iguma acabou de chegar e essa é uma boa notícia para os Oliveiras. Internacional pelo Uganda, vem dar qualidade à equipa que caminha na quarta posição, mas espera que duas vitórias nos próximos dois jogos, frente ao Al Jahra e ao Al Tadhamon, a aproximem dos primeiros. Toni não tem grandes ilusões: “Perdemos pontos importantes que não nos dão grande possibilidade de lutar pelo título. Vamos à procura do segundo lugar. Também é preciso reconhecer que o Koweit tem uma equipa mais forte. Devíamos ter-lhes ganho aqui. Mas empatámos 3-3.” Al Koweit Sport Club: equipa com nome de país.

O Kazma, cujas instalações ficam porta com porta com as da Federação de Futebol do Koweit, não precisamente em Kazma mas em Adiliya, ali ao lado, é um clube eclético. Recebe auxílio governamental para promover a prática de diversas modalidades, do andebol ao basquete, da natação ao atletismo.

Enquanto os jogadores comandados por Oliveira pai e Oliveira filho vão cumprindo os esquemas de posse de bola e de desmarcações entre linhas, dois garotos de cerca de dez anos treinam corridas com barreiras. Atrás de uma das balizas há quem lance a vara. Dois gordalhões chocantemente avantajados dão voltas à pista de atletismo num passo estugado. Há exercícios para todos os tamanhos. E pesos.

Futuro Fico abrigado na boca do túnel. A chuva abrandou, mas será sol de pouca dura (pode dizer-se isto quando não há uma nesga de céu?). Um funcionário delicado e dedicado traz-me um chá que explode de açúcar.

“Há dois anos que vejo muito potencial no António como treinador”, diz Toni no regresso a casa. “Estarei aqui para o ajudar enquanto puder, mas vai ter de voar sozinho.” Alguém lá no alto se irritou e começou a despejar baldes de água sobre a cidade e sobre o trânsito confuso. “Não penso voltar já a Portugal”, diz António filho. “Sinto que é mais útil para mim tentar ir fazendo uma carreira por fora, mesmo em países mais marginais, como este, e reforçar a minha imagem como técnico. Depois pode ser que se abram outras portas.”

A vitória na Taça da Federação, na época passada, deu aos adeptos do Kazma uma alegria que há muito não sentiam. Afinal, o último título de campeão já remonta a 1996. “Como incutir-lhes o espírito vencedor num clube que não está habituado a ganhar?” Pergunta que fica sem resposta. Cordas de chuva grossa encharcam a Cidade do Koweit, caem com força sobre a baía e o Corniche e o porto pequeno dos velhos dows, barcos de pesca do Golfo. As Torres do Koweit, que sobreviveram à guerra, mal se veem naquela arquitetura estranha de duas bolas espetadas em dois paus de edifícios bicudos. Um relâmpago. Trovões. Deus deve estar a arrastar as mobílias.