Karl Kraus. O intempestivo inimigo da imprensa

Karl Kraus. O intempestivo inimigo da imprensa


Com a recente edição dos “Aforismos” de Karl Kraus, temos ao nosso dispor um dos mais interessantes laboratórios de fúria que o século XX conheceu. Fúria contra o seu tempo, contra a sua época, mas, acima de tudo, uma fúria excessiva contra a imprensa tagarela


Nascido na Boémia, em 1874, Karl Kraus é um dos mais furiosos cronistas de uma cidade e de um tempo – a Viena de entre guerras – que ainda hoje permanece pouco estudado entre nós – ninguém equacionou editar o livro do filósofo italiano Massimo Cacciari “Dallo Steinhof”, que dá desta “civilização vienense” uma imagem impressiva. Quando morre, em 1936, no dealbar da segunda guerra mundial, Kraus deixa-nos páginas imensas – “Die Fackel”, revista que edita sozinho a partir de 1911, conta com mais de vinte mil – onde uma fúria divina castiga de forma impiedosa todos os aspetos de uma “civilização” em que a experimentação artística – na música, com Schoenberg, na pintura, com Klimt, no pensamento, com Wittgenstein – encontra na decadência moral, política e social da antiga capital do império austro-húngaro terreno fértil. Não por acaso, Walter Benjamin, filósofo alemão que também faz parte desta constelação de “sismógrafos”, recorre ao imaginário bíblico para caracterizar este satirista para quem a Viena dos anos 20 do século passado era uma “estação meteorológica” de onde se avistava o fim do mundo: “Há gravuras antigas que mostram um mensageiro que chega, aos gritos, de cabelos eriçados, agitando na mão uma folha – uma folha cheia de guerra e pestilência, de crimes e de dores, de desastres provocados pelo fogo e pelas águas, dando conta das ‘últimas notícias’”.

Esta fúria divina que movia Kraus, tornando-o numa espécie de personagem que poderia ter saído do Apocalipse de João, transparece em todos os momentos tanto dos “Aforismos”, editados pela recente editora VS e com tradução de Lumir Nahodil, como na recolha de sátiras feita por António Sousa Ribeiro, especialista de longa data neste autor vienense, em “Nesta Grande Época”. Sobre o nacionalismo, por exemplo, que, como hoje, contaminava grande parte da Europa, sentenciava: “é aquele amor que me liga aos idiotas do meu país, aos que ofendem os meus costumes e aos que profanam a minha língua”; sobre a crítica literária, pensando talvez em “Die Neue Freie Presse”, um dos melhores jornais da sua época e um dos seus alvos prediletos – mas facilmente poderíamos dar o salto para o nosso tempo –, dizia que “nem sempre dá provas da sua habitual perspicácia: (…) ignora frequentemente as novidades mais destituídas de mérito”. E a lista interminável de alvos vai aumentando ao longo dos anos, não havendo nada, da política à religião, da escrita à música, que não tenha sido furiosamente condenado no tribunal que Kraus erige.

Em toda esta escrita apocalíptica, excessiva em todos os seus momentos, há uma relação à Viena de entre guerras que não pode ser ignorada e que lhe pode conferir um lado mais datado. Como refere António Sousa Ribeiro, no prefácio a “Nesta Grande Época”, o “caráter fundamentalmente local de toda a sátira” pode induzir a “impressão falsa de um interesse apenas circunscrito ou datado da obra krausiana”. E, de facto, grande parte destas páginas são sobre a hipocrisia moral da sociedade vienense, tema retomado mais tarde por Zweig em “O Mundo de Ontem”, julgamentos sumários de nomes hoje caídos em esquecimento, uma intensa discussão com Otto Weininger, autor vienense que se suicidou cedo e que ficou célebre por um escrito polémico sobre sexualidade; tudo isso concorre para que a obra de Kraus nos surja como intensamente devedora do seu tempo, como se fora daquela cidade e daquele curto espaço de tempo que vai do final da primeira guerra mundial até à década de 40 do século XX, ele não pudesse ser totalmente entendido.

No entanto, mesmo que o tom apocalíptico já não seja o nosso, mesmo que a ideia de um discurso sobre a época já não faça sentido, a escrita de Kraus é de tal forma furibunda, está de tal forma imbuída de uma raiva excessiva contra o seu tempo, que ele se pode contar entre os poucos intempestivos do século XX. Este termo, “intempestivo”, é tirado de um filósofo alemão que Kraus conhecia bem, Friedrich Nietzsche, e designa essa capacidade que certos autores têm de estabelecer um corte radical entre eles e o seu tempo, de o considerar odioso ao ponto de com ele não estabelecerem qualquer tipo de negociação, de ver nele uma baixeza intolerável – um outro pensador, Gilles Deleuze, afirmava que o grande problema do capitalismo contemporâneo é que nos obriga a estarmos constantemente a negociar com ele; e como se torna patente tanto nos aforismos como nas sátiras, não houve, no “apocalipse alegre”, como chamou Hermann Broch, ninguém tão intempestivo como ele, ninguém que esbracejasse tanto contra o intolerável do seu tempo.

Se esta fúria excessiva foi direcionada por Kraus contra todos os elementos da sua época, se não houve pormenor algum que não fosse avaliado e sintomaticamente encarado como um sinal do fim dos tempos, foi, no entanto, contra a imprensa que este autor vienense dirigiu os seus julgamentos sumários – diz, num dos aforismos: “não ter um pensamento e saber exprimi-lo – é isso que faz o jornalista”. Mais importante, no entanto, que os ataques satíricos com que destruiu grande parte da imprensa da sua época, foi a forma como mediu o caráter inflamado da linguagem que era usada por esta – isso explica, em parte, a recuperação da sua obra para a crítica dos media atuais. E não são tanto as mentiras e as fabricações que a imprensa produz que Kraus ataca, apesar da importância indesmentível que esta dimensão tinha, na altura, e cada vez mais tem; o que este autor vienense não deixou de sublinhar constantemente foi essa arregimentação da linguagem, a vozearia e a tagarelice que institui no espaço público, particularmente patente na monumental peça de teatro “Os Últimos Dias da Humanidade”. Esta tagarelice da imprensa, cujo diagnóstico, por parte de Kraus, é particularmente certeiro, corresponde a um dispositivo que torna cada vez mais difícil não termos uma opinião sobre todo e qualquer assunto, e é iluminado de forma bastante incisiva num dos aforismos de Kraus: “a ideia de que um jornalista escreve com a mesma pertinência tanto sobre uma nova ópera como sobre uma nova lei orgânica parlamentar tem algo de aflitivo. Certamente ele poderia dar, também, lições a um bacteriologista, a um astrónomo e talvez até a um padre. E se um especialista em matemática avançada cruzasse o seu caminho, ele provar-lhe-ia que trata por tu uma matemática mais avançada ainda”.

Nada escapa, de facto, a esta tagarelice opinativa que começa nos jornais e rapidamente emigrou para as redes sociais. E quem hoje acredita que o murmúrio bárbaro das redes sociais começa a contaminar o idílio do espaço público instituído pelos jornais teria de ler com mais atenção Karl Kraus, de forma a problematizar esta visão idealista – para recuar, talvez escandalizado, face a esta baixa origem da imprensa.

Da mesma forma, a vozearia e a redução da linguagem a palavras de ordem não começam nas redes sociais mas são anteriores a esta. No tempo de Kraus, foram uma decorrência da arregimentação da imprensa para a causa nacionalista, transformando a palavra em ordens onde o efeito é mais importante do que aquilo que é dito. Um exemplo particularmente elucidativo, e contemporâneo, desta vozearia é esta mot d’ordre absolutamente desprovida de sentido: “politicamente correto”. Quem queira estabelecer uma teoria a partir dela encontrará sérias dificuldades, mesmo que a encha com o fantasma do “marxismo cultural”, porque, na realidade, ela esgota-se no efeito de denúncia; é um moralismo linguístico, mais ou menos inepto consoante o uso, cujo intuito é proibir todo e qualquer questionamento.