Um animal de quatro patas nem sempre é um burro e vice-versa


Nos processos por vezes, e normalmente sob o uso (abuso) de institutos e figuras como a experiência comum, a prova indireta ou o sentir social, caímos facilmente no “está-se mesmo a ver” e numa “verdade” baseada quase só ou só no que parece.


É um lugar-comum dizer que vivemos tempos em que se fazem julgamentos, rápidos e sumários, com base no que parece. Mas não é de mais enfatizá-lo, sobretudo quando os lugares-comuns se referem a fenómenos perigosos e sobre os quais há que refletir. Tanto mais quanto mais este fenómeno não aparece só nas conversas de café, nalguma imprensa, nas redes sociais ou nessa medida perfeita e “científica” de um certo “sentir social” que é a conversa no táxi. Vai, aqui e ali, aparecendo onde menos devia, onde não podia aparecer, que é nas instâncias de investigação ou no julgamento de processos. Também aí, por vezes, e normalmente sob o uso (abuso) de institutos e figuras como a experiência comum, a prova indireta ou o sentir social, caímos facilmente no “está-se mesmo a ver” e numa “verdade” baseada quase só (ou mesmo confrangedoramente só) no que parece. Ora, poderia ocorrer-me usar a exortação de São Paulo aos Coríntios, para que (se) examinem, indo para além da superfície e da fácil e enganadora aparência, que leva a convicções, certezas e fés frágeis. Ou poderia ocorrer-me uma passagem de “Barranco de Cegos”, de Redol, quando ele diz (tempos politicamente incorretos) que a verdade é fêmea e precisa de retoques. Essa, a obtida com base na mera aparência, se verdade fosse, precisaria certamente de muito “retoque”.

Mas é a escrita de Graham Greene que mais me ocorre, em “The End of the Affair”. Aí, a dado passo, Parkis está a descrever a Bendrix o que terá apurado no seu trabalho de detetive (a quem cabia seguir a senhora e verificar as suspeitas de que a mesma teria um amante) e diz-lhe que se sentou num sofá próximo e observou que a senhora e o cavalheiro que a acompanhava estavam muito chegados e tratavam-se com afetuosa sem-cerimónia, parecendo-lhe que teriam a dada altura apertado as mãos. Coisa esta que ele confessa que não viu, mas afirma parecer-lhe seguro que assim fosse, pois a mão esquerda da senhora não se via, e a direita do cavalheiro também não, o que, segundo a lógica imbatível de Parkis, geralmente significa um gesto daquele género. Num táxi, dir-se-ia “está-se mesmo a ver”, num processo, porventura, dir-se-ia, com mais pompa mas não menos precipitação, que é a experiência comum ou o modo como as coisas costumam acontecer. E prossegue o relato, até que Bendrix, incapaz de conter-se, acaba por revelar a Parkis que o mesmo é fraco detetive, pois não o identificou a si, Bendrix, como o cavalheiro que estava com a senhora, e acaba por lhe dar a estocada final no amor-próprio quando lhe diz que até na dedução imbatível sobre as mãos se enganou, pois ele e a senhora não as apertaram sequer debaixo da mesa, ao contrário do que, segundo Parkis, a cena parecia querer significar. Donde se prova, entre o mais, que não só um animal de quatro patas nem sempre é um burro como também que há burros que não têm mais do que duas, além de que o que sobra a Parkis em preconceito e em empenho lhe falta em inteligência e em profundidade de análise crítica.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira