As quatro imposturas intelectuais da arquitetura contemporânea


Seja por pretensiosismo elitista, por oportunismo económico ou por ignorância coletiva, as quatro imposturas intelectuaisda arquitetura contemporânea continuam e continuarão a fazer escola em Portugal e no mundo


Já leu algum livro onde muito pouco parece fazer sentido mas, devido à complexidade dos conceitos e palavras utilizados, somos levados a pensar que o autor está investido de uma autoridade intelectual acima da nossa limitada compreensão? Se esse é o caso, desengane-se: o autor não é intelectualmente superior mas ardiloso, e a complexidade do texto não passa de um embuste para impressionar quem o lê. A essa conclusão chegaram igualmente os cientistas Alan Sokal e Jean Bricmont no seu livro “Imposturas Intelectuais”, em que reúnem e comentam alguns textos que ilustram as mistificações de renomados autores das ciências sociais, mostrando que, por detrás de um jargão imponente e de uma aparente erudição científica, o rei vai nu. Semelhantes formas de impostura intelectual são utilizadas recorrentemente nos discursos de arquitetos, urbanistas e políticos que promovem as mais polémicas intervenções urbanas. Curiosamente, ninguém parece querer dizer que, também nestes casos, o rei vai nu: uns, porque não vislumbram essa nudez; outros, porque devem a ela o seu elevado estatuto na corte. Urge por isso desmistificar quatro imposturas cuja disseminação viral é responsável por muito daquilo que desqualifica as nossas cidades.

A impostura do tempo: “Este projeto é vanguardista e futurista.” Existe a ideia de que qualquer edifício ou espaço público que seja visualmente chocante ou diferente dos demais é original e vanguardista. Os defensores destas obras dirão que só no futuro elas serão reconhecidas, já que, no presente, as vozes que as criticam são retrógradas e não possuem capacidade para lhes atribuir o mérito que merecem. O erro desta falácia reside no critério usado para justificar o futurismo de uma obra: a sua aparência. A configuração insólita, a inovação dos materiais e a complexidade geométrica não garantem, por si, qualidades visionárias a um edifício. Tomemos como exemplo o Guggenheim de Bilbau; olhando para a sua forma estamos, aparentemente, perante uma obra vanguardista. No entanto, contextualizada no tempo em que vivemos, emerge uma contradição: o revestimento das superfícies ondulantes do museu foi feito de titânio, um material cuja produção exige um consumo energético de 900-1000 megajoules/quilograma (MJ/kg); um edifício convencional utiliza materiais (tijolo e cimento) cuja produção não ultrapassa 9 MJ/kg. Ora, para uma sociedade preocupada com a descarbonização e a sustentabilidade energética, um edifício cuja produção dos seus materiais constituintes exige um consumo energético cem vezes (!) superior ao de edifícios convencionais é um edifício do futuro?

A impostura do espaço: “Este edifício integra-se no contexto espacial e estabelece com ele um diálogo.” Este é o tipo de frase muito utilizado por projetistas e políticos para descrever edifícios que não se integram no contexto espacial e não estabelecem com ele qualquer diálogo. No entanto, estas incoerências passam incólumes pelo escrutínio público sob pretexto da subjetividade estética: cada um possui uma sensibilidade distinta que lhe permite ver aquilo que quiser e, como tal, a validação de um consenso é vista como atentado à criatividade artística. Neste pântano movediço da apreciação estética contemporânea, tudo pode ser válido: o mundo é feito de impermanência e novas configurações plásticas criam novos paradigmas de contemplação. Nos seus livros “Dinâmica da Forma Arquitetónica” e “Arte e Perceção Visual”, o psicólogo Rudolf Arnheim refutou este falso relativismo e demonstrou que não podemos fugir às regras universais de apreciação (simetria, profundidade, proporção, luminosidade, etc.) que são ditadas pela biologia humana.

A impostura da autoridade: “Eu sei que este edifício tem qualidade porque sou uma sumidade na matéria.” Se outrora foi possível a permanência de um “gosto” consensual (os três mil anos de constância estilística da arte egípcia são disso exemplo), hoje, qualquer insistência na ideia de “coerência” e “consenso” é vista como um atentado ao génio do criador: a realidade correta é como “eu” a concebo e não como “todos” a desejam. “Eu” sou, obviamente, o artista, o professor universitário, o técnico, o especialista, o político – em suma: a autoridade. A insegurança do senso comum, alimentada por décadas de ausência de educação estética, criou uma perversa e paradoxal dicotomia: ou tudo é possível porque tudo é subjetivo, ou só uma solução é possível porque foi apresentada por autoridades detentoras de influência e conhecimento. Estas figuras de autoridade são essenciais para a sociedade quando possuem o mérito para o exercício do seu poder, mas são particularmente nocivas e perigosas quando utilizam esse poder para a disseminação dos seus sofismas mistificadores, a sua promoção pessoal e a intimidação no debate público, em que a maior parte dos intervenientes não são especialistas.

A impostura do conceito: “Este projeto é pós-contemporâneo e hipereclético na sua mimética desconstrutiva.” A frase anterior, similar a tantas outras contidas em memórias descritivas dos projetos de arquitetura, é um exemplo simultaneamente hilariante e deprimente do ponto a que chegou o jargão pretensioso e inócuo do discurso arquitetónico. Contaminado pelo relativismo da sociedade contemporânea, também o debate sobre a melhor forma de fazer cidade enveredou pela mistificação. Aquelas que eram outrora as convencionais categorias de afirmação de valores éticos, estéticos e técnicos da linguagem arquitetónica/urbanística foram substituídas por platitudes cobardes que nada dizem – “disruptivo”, “desconstrutivo”, “conceptual” ou “icónico”. Aldous Huxley, no seu “Admirável Mundo Novo”, idealiza um mundo em que o excesso de conteúdos e entretenimento afogaria a verdade, transformando-a em algo desinteressante e irrelevante. De forma similar, a novilíngua arquitetónica afogou o essencial e criou uma maior desorientação na apreciação estética e maior desresponsabilização na apreciação técnica.

Conclusão: Seja por pretensiosismo elitista, por oportunismo económico ou ignorância coletiva, as quatro imposturas intelectuais da arquitetura contemporânea atrás descritas continuam e continuarão a fazer escola em Portugal e no mundo: as universidades irão promovê-las porque é através desta máquina de produção de lixo teórico que se edifica o seu estatuto; os municípios e o Estado irão promovê-las porque é através desta floresta obscurantista que mais facilmente conseguem escapar a um escrutínio exigente; os promotores imobiliários irão promovê-las porque é através de holofotes apontados a um produto distinto e estridente que mais facilmente conseguirão valorizá-lo; finalmente, alguns cidadãos irão promovê-las porque, da mesma forma que apoiam incondicionalmente um clube de futebol sabendo da corrupção em que está mergulhado, a propensão para se sentirem integrados num coletivo vencedor superará qualquer tipo de considerações que contrarie essa vitória – e, com tantos prémios ganhos pela arquitetura portuguesa no mundo, quem se atreverá a gritar que o rei vai nu?

 

Mestre em Ordenamento do Território e Planeamento Ambiental