A poucos dias da comemoração de mais um aniversário da implantação da República, o espírito republicano contorce-se com tanto disparate, tanta divergência entre os princípios, os discursos e a realidade que, como se sabe, foram uma das causas que nos levaram à geração do caldo de cultura para a emergência do regime ditatorial.
O Estado permite espetáculos de relativização da legalidade, sem critério e sem sentido, estabelecendo, em função do poder dos cidadãos ou dos grupos de cidadãos, tratamentos diferenciados. Depois de uma semana de alapamento dos taxistas nas principais artérias de Lisboa, com a cobertura da Câmara Municipal de Lisboa – responsável pela “autorização” do exercício do direito de manifestação – e das forças de segurança, que poderão fazer se Mário Nogueira quiser montar uma sala de aulas na faixa do bus para protestar contra as expectativas geradas sobre o tempo de congelamento das carreiras ou se os camionistas de pesados quiserem estacionar os camiões para protestar contra os custos dos combustíveis e das portagens? É certo que, pelo contingente policial alocado ao protesto, a Avenida nunca esteve tão segura, mas quanto custa isso ao erário público e quantos serviços de patrulhamento de proximidade noutros territórios não terão sido postos em causa? E no quadro do espetáculo deplorável de um Estado de Direito vergado perante o protesto, considerando o perfil profissional em causa, alguém acredita que a paragem dos taxistas por mais de uma semana não está a ser objeto de alguma forma de compensação remuneratória por parte das associações representativas do setor?
Num contexto geral positivo, depois de quatro anos de uma solução governativa que contou com uma conjuntura nacional e internacional favorável, o Estado de Direito definiu a bitola do protesto: tudo é possível. É perigoso, mas é o significado da leviandade com que se permite o protesto dos taxistas. Como já afirmei, já no passado outros tentaram, mas não foram autorizados a alapar, para salvaguarda da mobilidade, das dinâmicas urbanas e das esferas de liberdade dos outros cidadãos.
Disparate também no inacreditável processo de transferência da sede do Infarmed para o Porto, para compensar a perda da localização da Agência Europeia do Medicamento. O governo anunciou, o governo reafirmou a localização a norte e agora recuou. Como diz o povo na sua infinita sabedoria “as cadelas apressadas parem os cães cegos”. Quando a política navega à bolina, corresponder aos baronetes locais ou à tentação populista de anunciar sem estudar previamente, o resultado só pode ser este. O problema é que há quem não aprenda. Falta ponderação e maturidade numa gestão política que quer acompanhar o ritmo das dinâmicas sociais, sem acautelar o bom senso, a sustentabilidade e uma visão integral do que está em causa. É por isso que processos anunciados como prioritários no início da legislatura não estão concluídos, da descentralização à avaliação das fusões das freguesias, e que se sucedem os casos em que as expectativas criadas não são correspondidas. Depois do tempo de carreia dos professores, agora é o recuo na equiparação das licenciaturas pré-Bolonha a mestrados. A conclusão de que o processo de Bolonha é um impulso europeu em que não pode cada estado membro não pode ter uma perspetiva estrutural tão diferenciada não era evidente quando se começou a gerar a expectativa? Por que razão deixou o governo que a expectativa se avolumasse?
É neste contexto que entramos na reta final da apresentação da proposta do Orçamento do Estado para 2019, um dos momentos importantes para avaliar se prevalece o senso, o consenso ou o dissenso. Por agora, apesar da gritaria pré-negocial, parece eclodir algum senso quando o governo avisa que o crédito ao consumo “tem de ser acompanhado de perto para evitar excessos” ou no alerta do governador do Banco de Portugal para os riscos de situações de euforia no mercado imobiliária.
No meio do nervosismo do espaço mediático e das redes sociais é fundamental que prevaleça algum senso e sentido de sintonia com os valores.
Apesar do laxismo instalado, cautela e caldos de galinha….
NOTAS FINAIS
Bandeira hasteada. O capitão Luisão acabou a carreira de jogador. A memória curta de alguns transpirou espirros de ingratidão, enunciando o tardio do impulso, mas prevaleceu uma cerimónia bonita, o sublinhar de um longo percurso de conquistas e o sentido solidário de valorização dos ativos da instituição. Deixou de ser o capitão jogador, passou a ser um dos capitães promotores.
Meia haste. Depois da UEFA, em que portugueses têm responsabilidade de direção, foi a vez da FIFA, tão fustigada por esquemas nas escolhas que faz. Objetivamente é escandaloso que Cristina Ronaldo não tenha ganho, no mínimo, o prémio de melhor golo do ano com o pontapé de bicicleta marcado à sua atual equipa. São muitos os casos em que alguns parecem gozar com protagonistas e instituições desportivas, até o dia em que o caldo verdadeiramente se entorna. Depois queixem-se.
Mastro sem bandeira. Multiplicam-se sinais preocupantes de degradação de algumas instituições relevantes para a sociedade portuguesa. Degradação moral e de valores, degradação de funcionamento. Como se comprova com o caso de Tancos, nem tudo são questões que se resolva com mais dinheiro ou com menos cativações.
Escreve à quinta-feira