Acerca do “totalitarismo invertido”


Termo criado pelo politólogo norte-americano Sheldon Wolin, o “totalitarismo invertido” designa um sistema onde poderosas organizações privadas investem o seu dinheiro no domínio público, compram os eleitos e corrompem-nos. Ao contrário do totalitarismo clássico, não é encarnado na figura de um demagogo ou de um líder carismático


Chris Hedges é um jornalista e ensaísta norte-americano praticamente desconhecido em Portugal, apesar de ter sido galardoado com o Prémio Pulitzer de jornalismo em 2002, coroando 15 anos de carreira como correspondente do “New York Times” em zonas de conflito como a Palestina e a Bósnia. Publicou, aliás, nesse ano, um livro intitulado “War Is a Force That Gives Us Meaning”, um ensaio bastante pessoal sobre a experiência que profundamente o marcou como correspondente de guerra em cenários de graves conflitos e de repressão violenta.

Chris Hedges haveria, também, de fazer publicamente um duro requisitório contra a invasão militar do Iraque, decidida em 2003 por George W. Bush e Tony Blair, à revelia da ONU e com base em argumentos completamente falsos, como veio a ser demonstrado: não havia quaisquer “armas de destruição em massa” nem qualquer base da Al Qaeda no Iraque de Saddam Hussein. Esse requisitório tinha algo de premonitório: “Acabámos de nos envolver numa ocupação militar que, se a História de alguma forma nos serve de guia, será tão prejudicial à nossa alma como ao nosso prestígio, ao nosso poder e à nossa segurança”. Chris Hedges previu, além disso, que o terrorismo iria tornar-se o modo de vida de certas populações (muçulmanas) mais pobres e entregues à sua sorte, o que, por seu turno, iria alimentar uma espiral de violência em que se precipitariam os Estados ocidentais.

Comecei a ler Chris Hedges graças a um amigo meu, o Manuel Brito, que há alguns anos comprou numa livraria de Paris, para me oferecer, um ensaio intitulado “La Mort de l’Élite Progressiste”, edição francesa do ensaio intitulado “Death of The Liberal Class”, publicado por Chris Hedges em 2010 (Nation Books, New York). Li depois, também em Francês (o Inglês não é o meu forte), um anterior ensaio dele intitulado “L’Empire de l’Illusion – La Mort de la Culture et le Triomphe du Spectacle”, tradução francesa de um ensaio de 2009 intitulado “Empire of Illusion – The End of Litteracy and the Triumph of Spectacle” (Nation Books, New York).

Tenho estado a ler, agora, uma série de entrevistas concedidas por Chris Hedges ao jornalista e ensaísta canadiano Pierre-Luc Brisson, reunidas num livro intitulado “L’Âge des Démagogues” (Lux Éditeur, Québec, 2016), nas quais ele aborda, entre outros temas, o conceito de “totalitarisme inversé”, criado e desenvolvido pelo politólogo norte-americano Sheldon Wolin (1922-2015) num livro de referência intitulado “Democracy Incorporated: Managed Democracy and the Specter of Inverted Totalitarianism” (Princeton University Press, 2008).

Criticando as duríssimas políticas de austeridade impostas nas últimas décadas por toda a parte em prejuízo dos mais pobres e desprotegidos, Chris Hedges invoca o que escreveu George Bernard Shaw ao afirmar que o maior crime deste mundo continua a ser a pobreza. Porque a pobreza destrói vidas, famílias e comunidades inteiras, destrói a coesão social e engendra invariavelmente consequências muito dolorosas. O servilismo do Estado perante o poderio das grandes empresas e da plutocracia em geral suga cada vez mais o sangue e o suor dos mais pobres. Chris Hedges refere-se, aqui, ao capitalismo das grandes organizações privadas, das grandes empresas, um capitalismo monopolista que não deve ser confundido com o que praticam pequenos comerciantes nos pequenos mercados de proximidade. E é a partir desta distinção que se segue a explicação do conceito de “totalitarismo invertido”.

Através deste conceito, o filósofo e politólogo Sheldon Wolin quis salientar que o sistema em que actualmente vivemos não é, obviamente, um sistema totalitário “clássico”, não é incarnado na figura de um demagogo ou de um líder carismático, mas sim, e sobretudo, no anonimato do Estado-empresa. Num Estado totalitário clássico, existe um partido reaccionário, ou revolucionário, ou mesmo fascista, que derruba uma estrutura política agonizante para estabelecer o seu próprio poder. Já num sistema de “totalitarismo invertido” existem poderosas organizações privadas, económicas e financeiras, que investem o seu dinheiro no domínio público, compram os eleitos, corrompem-nos, modificam a constituição e conseguem, assim, tornar os cidadãos completamente impotentes. O “totalitarismo invertido” não tem rosto, é anónimo. Um demagogo como Donald Trump, por exemplo, não é mais do que uma marca comercial, uma das faces visíveis de um Estado completamente enfeudado às grandes empresas. A dinâmica inerente a este sistema é, evidentemente, a procura do ganho pessoal, da maximização dos lucros, o que se traduz, inevitavelmente, na adopção de políticas que visam reduzir os custos do factor trabalho, sejam quais forem as consequências sociais dessas políticas.

Sheldon Wolin salienta que as duas formas mais significativas de controlo do sistema de “totalitarismo invertido” são a produção de bens de consumo de massas e um acesso fácil ao crédito. Complementarmente, este sistema caracteriza-se, também, pela concentração dos grupos de Imprensa e a constituição de grandes empresas mediáticas e de entretenimento, que têm por função reduzir o espectro do debate e das ideias. Claro que, com a grave crise económica e financeira que ocorreu entre 2008 e 2015, tornou-se evidente a possibilidade de se tornar cada vez mais difícil o acesso ao crédito e menos abordáveis pelas grandes massas os preços dos bens de consumo. O que pode resultar na emergência de formas de totalitarismo “clássicas”, e até formas tradicionais de “fascismo” em sociedades democráticas mais frágeis e vulneráveis. Nesta perspectiva, Chris Hedges considera que a ascensão de Trump é um sinal de que os velhos mecanismos de controlo social – sobretudo a dificuldade de acesso ao crédito e aos bens de consumo, tornando insustentável a manutenção de um determinado estilo de vida – estão em risco de desagregar-se. O que pode ter como consequência uma brutal regressão para formas cada vez mais tradicionais de demagogia política. E o sistema de “totalitarismo invertido”, do mesmo modo que a sua regressão, não são um exclusivo deste ou daquele país. Num mundo totalmente interdependente, o risco do “efeito dominó” é cada vez mais global.

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


Acerca do “totalitarismo invertido”


Termo criado pelo politólogo norte-americano Sheldon Wolin, o “totalitarismo invertido” designa um sistema onde poderosas organizações privadas investem o seu dinheiro no domínio público, compram os eleitos e corrompem-nos. Ao contrário do totalitarismo clássico, não é encarnado na figura de um demagogo ou de um líder carismático


Chris Hedges é um jornalista e ensaísta norte-americano praticamente desconhecido em Portugal, apesar de ter sido galardoado com o Prémio Pulitzer de jornalismo em 2002, coroando 15 anos de carreira como correspondente do “New York Times” em zonas de conflito como a Palestina e a Bósnia. Publicou, aliás, nesse ano, um livro intitulado “War Is a Force That Gives Us Meaning”, um ensaio bastante pessoal sobre a experiência que profundamente o marcou como correspondente de guerra em cenários de graves conflitos e de repressão violenta.

Chris Hedges haveria, também, de fazer publicamente um duro requisitório contra a invasão militar do Iraque, decidida em 2003 por George W. Bush e Tony Blair, à revelia da ONU e com base em argumentos completamente falsos, como veio a ser demonstrado: não havia quaisquer “armas de destruição em massa” nem qualquer base da Al Qaeda no Iraque de Saddam Hussein. Esse requisitório tinha algo de premonitório: “Acabámos de nos envolver numa ocupação militar que, se a História de alguma forma nos serve de guia, será tão prejudicial à nossa alma como ao nosso prestígio, ao nosso poder e à nossa segurança”. Chris Hedges previu, além disso, que o terrorismo iria tornar-se o modo de vida de certas populações (muçulmanas) mais pobres e entregues à sua sorte, o que, por seu turno, iria alimentar uma espiral de violência em que se precipitariam os Estados ocidentais.

Comecei a ler Chris Hedges graças a um amigo meu, o Manuel Brito, que há alguns anos comprou numa livraria de Paris, para me oferecer, um ensaio intitulado “La Mort de l’Élite Progressiste”, edição francesa do ensaio intitulado “Death of The Liberal Class”, publicado por Chris Hedges em 2010 (Nation Books, New York). Li depois, também em Francês (o Inglês não é o meu forte), um anterior ensaio dele intitulado “L’Empire de l’Illusion – La Mort de la Culture et le Triomphe du Spectacle”, tradução francesa de um ensaio de 2009 intitulado “Empire of Illusion – The End of Litteracy and the Triumph of Spectacle” (Nation Books, New York).

Tenho estado a ler, agora, uma série de entrevistas concedidas por Chris Hedges ao jornalista e ensaísta canadiano Pierre-Luc Brisson, reunidas num livro intitulado “L’Âge des Démagogues” (Lux Éditeur, Québec, 2016), nas quais ele aborda, entre outros temas, o conceito de “totalitarisme inversé”, criado e desenvolvido pelo politólogo norte-americano Sheldon Wolin (1922-2015) num livro de referência intitulado “Democracy Incorporated: Managed Democracy and the Specter of Inverted Totalitarianism” (Princeton University Press, 2008).

Criticando as duríssimas políticas de austeridade impostas nas últimas décadas por toda a parte em prejuízo dos mais pobres e desprotegidos, Chris Hedges invoca o que escreveu George Bernard Shaw ao afirmar que o maior crime deste mundo continua a ser a pobreza. Porque a pobreza destrói vidas, famílias e comunidades inteiras, destrói a coesão social e engendra invariavelmente consequências muito dolorosas. O servilismo do Estado perante o poderio das grandes empresas e da plutocracia em geral suga cada vez mais o sangue e o suor dos mais pobres. Chris Hedges refere-se, aqui, ao capitalismo das grandes organizações privadas, das grandes empresas, um capitalismo monopolista que não deve ser confundido com o que praticam pequenos comerciantes nos pequenos mercados de proximidade. E é a partir desta distinção que se segue a explicação do conceito de “totalitarismo invertido”.

Através deste conceito, o filósofo e politólogo Sheldon Wolin quis salientar que o sistema em que actualmente vivemos não é, obviamente, um sistema totalitário “clássico”, não é incarnado na figura de um demagogo ou de um líder carismático, mas sim, e sobretudo, no anonimato do Estado-empresa. Num Estado totalitário clássico, existe um partido reaccionário, ou revolucionário, ou mesmo fascista, que derruba uma estrutura política agonizante para estabelecer o seu próprio poder. Já num sistema de “totalitarismo invertido” existem poderosas organizações privadas, económicas e financeiras, que investem o seu dinheiro no domínio público, compram os eleitos, corrompem-nos, modificam a constituição e conseguem, assim, tornar os cidadãos completamente impotentes. O “totalitarismo invertido” não tem rosto, é anónimo. Um demagogo como Donald Trump, por exemplo, não é mais do que uma marca comercial, uma das faces visíveis de um Estado completamente enfeudado às grandes empresas. A dinâmica inerente a este sistema é, evidentemente, a procura do ganho pessoal, da maximização dos lucros, o que se traduz, inevitavelmente, na adopção de políticas que visam reduzir os custos do factor trabalho, sejam quais forem as consequências sociais dessas políticas.

Sheldon Wolin salienta que as duas formas mais significativas de controlo do sistema de “totalitarismo invertido” são a produção de bens de consumo de massas e um acesso fácil ao crédito. Complementarmente, este sistema caracteriza-se, também, pela concentração dos grupos de Imprensa e a constituição de grandes empresas mediáticas e de entretenimento, que têm por função reduzir o espectro do debate e das ideias. Claro que, com a grave crise económica e financeira que ocorreu entre 2008 e 2015, tornou-se evidente a possibilidade de se tornar cada vez mais difícil o acesso ao crédito e menos abordáveis pelas grandes massas os preços dos bens de consumo. O que pode resultar na emergência de formas de totalitarismo “clássicas”, e até formas tradicionais de “fascismo” em sociedades democráticas mais frágeis e vulneráveis. Nesta perspectiva, Chris Hedges considera que a ascensão de Trump é um sinal de que os velhos mecanismos de controlo social – sobretudo a dificuldade de acesso ao crédito e aos bens de consumo, tornando insustentável a manutenção de um determinado estilo de vida – estão em risco de desagregar-se. O que pode ter como consequência uma brutal regressão para formas cada vez mais tradicionais de demagogia política. E o sistema de “totalitarismo invertido”, do mesmo modo que a sua regressão, não são um exclusivo deste ou daquele país. Num mundo totalmente interdependente, o risco do “efeito dominó” é cada vez mais global.

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990