Círculos uninominais: problemas & soluções


Os círculos uninominais que defendo integram um sistema misto de representação proporcional personalizada: não decidem sozinhos, nem principalmente, o resultado das eleições; integram-se na operação de um sistema de representação proporcional, de que são uma componente muito relevante. Assim seja dado seguimento à previsão constitucional que já data de 1997. Não vale a pena bramar…


Os círculos uninominais que defendo integram um sistema misto de representação proporcional personalizada: não decidem sozinhos, nem principalmente, o resultado das eleições; integram-se na operação de um sistema de representação proporcional, de que são uma componente muito relevante. Assim seja dado seguimento à previsão constitucional que já data de 1997.

Não vale a pena bramar contra a enxurrada de caciques. Onde o caciquismo está bem aninhado é no actual sistema de listas plurinominais fechadas, degradado num paraíso do aparelhismo. O caciquismo tem vida difícil num sistema misto: o poder deixa de estar na corte de dependentes e seguidores; transita para os eleitores.

Maior fantasia é imaginar a Assembleia da República cheia de “limianos”, como se ouve. Olhemos para a Alemanha. Entre os “limianos” eleitos, em 2017, pelo seu círculo uninominal encontramos: Angela Merkel, Wolfgang Schäuble, Thomas de Maizière, Peter Altmaier, Sigmar Gabriel e Frauke Petry. Ditosa pátria que tais “limianos” tem! 

Outra crítica é a de muitos políticos de primeira linha serem afastados do parlamento porque, nos círculos uninominais, só um triunfa – e todos os adversários, candidatos relevantes de outros partidos, ficariam de fora. O facto é verdadeiro; mas a crítica, errada. 

Num sistema misto, os candidatos podem figurar em dupla candidatura, tanto num círculo uninominal como na lista plurinominal. Se não vencerem a eleição uninominal, guardam sempre a possibilidade de serem eleitos dentro da proporção alcançada no voto plurinominal do partido. Isto é muito frequente. Na maior circunscrição alemã (Renânia do Norte-Vestefália), que elege 128 deputados (64 círculos uninominais e 64 em lista plurinominal), os candidatos efectivos do SPD em 2017 tinham todos dupla candidatura, com excepção do líder partidário, Martin Schulz: tendo estado no Parlamento Europeu por mais de 20 anos, não era ajustado vinculá-lo a um território local. Os exemplos multiplicam-se, incluindo, na eleição de 2017, outros líderes e grandes figuras: Christian Lindner, Dietmar Bartsch, Sahra Wagenknecht, Katrin Göring-Eckardt, Cem Özdemir, Alexander Gauland, Alice Weidel, Heiko Maas, Katja Kipping e Bernd Riexinger. Não venceram o voto uninominal, mas foram eleitos pelas listas estaduais. 

É um sistema que consolida a coesão das candidaturas, tornando risível a crítica de haver candidatos de primeira classe (os uninominais) e candidatos de segunda (os plurinominais). Não há tal coisa.

Há, porém, o receio de o sistema potenciar o “voto útil”: eleitores de partidos médios ou pequenos votam num partido grande, seduzidos pela ideia de, já que o seu partido não ganha, ser “útil” ajudar um dos grandes a ganhar. Este marketing eleitoral é inevitável, seja qual for o sistema eleitoral. Mas a experiência mostra – e a inteligência explica – que o “voto útil” é menos intenso, e menos nocivo, no duplo voto (uninominal e plurinominal). 

Olhemos ao Quadro 1, que publico. Desde logo mostra como, na Alemanha, o sistema é mais proporcional que o nosso: a percentagem dos assentos parlamentares é mais próxima da votação – no sistema misto, recordo, a votação que conta é nas listas plurinominais. E mostra, na coluna do uninominal, uma deslocação de votos, como não podia deixar de ser, dos partidos mais pequenos para os maiores nos votos uninominais. Círculo a círculo, haverá movimentos pontuais em sentido inverso, dos maiores para os mais pequenos; mas, no conjunto nacional, o fenómeno agregado é o que o quadro representa.

Mas o Quadro 1 ajuda a compreender que, no sistema misto, o “voto útil” releva muito menos. No nosso sistema actual, o “voto útil” aconteceu e… está perdido. Num sistema de voto duplo, não: o “voto útil” acontece no uninominal, mas volta a casa no plurinominal. É difícil um eleitor “trair” duas vezes o seu partido na mesma eleição. E, como o voto que conta para a composição parlamentar é o voto nas listas plurinominais, a fuga no uninominal é irrelevante: vale apenas para o campeonato uninominal, isto é, para saber se, dentro da quota regional do partido de que se trata, entrará mais um da sua lista ou o candidato local. O “voto útil” é menos intenso: só acontece numa de duas votações. E é menos nocivo: só acontece naquela votação que não influencia a composição percentual do parlamento.

O problema maior do sistema misto é o dos deputados supranumerários (Überhangmandate), que vencem num círculo uninominal acima da quota de deputados a que, percentualmente, o seu partido ganhou direito. Este problema foi residual na Alemanha de 1949 a 1990. Mas, posteriormente, começou a pesar; e o Tribunal Constitucional determinou, a partir de 2013, que fossem abonados mandatos complementares (Ausgleichsmandate) que repusessem, estado a estado, a proporcionalidade do voto. O efeito em 2017 é, aos nossos olhos, um exagero: o Bundestag, com 598 membros, acabou por ficar com 709 deputados no total – houve, entre supranumerários e complementares, mais 111 mandatos. Esta contingência é de dimensão imprevisível: depende da percentagem do partido mais votado, da diferença para o segundo e terceiro partidos e da fragmentação do sistema partidário – tudo factores aleatórios. Mas uma coisa é certa: não pode passar–se em Portugal. Na Alemanha não há limite de deputados no Bundestag. Em Portugal, existe: 230. O sistema tem esta tranca e tem de funcionar trancado. 

A solução imediata seria proibir qualquer mandato supranumerário: nenhum partido poderia eleger, numa dada circunscrição regional, deputados vencedores uninominais acima da quota percentual a que a votação plurinominal deu direito. Ficaria o problema resolvido na raiz: os menos votados dos uninominais, em excesso, não conquistariam assento parlamentar. Pode parecer injusto, mas não seria: o sistema, cabe recordar, não é maioritário; o sistema é de representação proporcional personalizada. Por isso, atingido o tecto da representação proporcional, não há representação personalizada para mais ninguém.

Penso que esta solução é demasiado radical. A solução que preconizo – e estamos a trabalhar na iniciativa legislativa de cidadãos – usa o círculo nacional (com, por exemplo, 15 mandatos) como bolsa de compensação, gerindo estas incidências: admite espaço adicional para até sete ou oito mandatos supranumerários; e arbitra o remanescente para mandatos complementares, de correcção (seja de distorções que tenham resultado do apuramento territorial, seja do efeito adicional dos supranumerários ocorridos). A sensibilidade dominante na Assembleia da República pode afinar a sintonia: se quiser aumentar a compensação, pode reduzir a cinco o máximo nacional de supranumerários admitidos, sobrando, pelo menos, dez complementares para as compensações; se, ao invés, quiser dar mais peso à cidadania, pode folgar até dez o tecto de supranumerários, reservando, ao menos, cinco para acertos percentuais.

Todos os problemas têm solução. E cabe ter sempre presente que, onde ocorram, estamos a falar num número limitado de lugares, porventura residual. O nosso sistema actual está cheio de problemas, como a forte cláusula--barreira, matematicamente implícita na dimensão de vários círculos, e a acentuada desigualdade no número de votos necessários para eleger. Os problemas no sistema misto não só têm soluções como melhoram um sistema já de si muito bom. É um sistema em que a cidadania toma o poder. Como, afinal de contas, é o que queremos em democracia e constitui a única forma de ela funcionar com saúde, vigor e qualidade.

 

Advogado. Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade

O autor escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

 


Círculos uninominais: problemas & soluções


Os círculos uninominais que defendo integram um sistema misto de representação proporcional personalizada: não decidem sozinhos, nem principalmente, o resultado das eleições; integram-se na operação de um sistema de representação proporcional, de que são uma componente muito relevante. Assim seja dado seguimento à previsão constitucional que já data de 1997. Não vale a pena bramar…


Os círculos uninominais que defendo integram um sistema misto de representação proporcional personalizada: não decidem sozinhos, nem principalmente, o resultado das eleições; integram-se na operação de um sistema de representação proporcional, de que são uma componente muito relevante. Assim seja dado seguimento à previsão constitucional que já data de 1997.

Não vale a pena bramar contra a enxurrada de caciques. Onde o caciquismo está bem aninhado é no actual sistema de listas plurinominais fechadas, degradado num paraíso do aparelhismo. O caciquismo tem vida difícil num sistema misto: o poder deixa de estar na corte de dependentes e seguidores; transita para os eleitores.

Maior fantasia é imaginar a Assembleia da República cheia de “limianos”, como se ouve. Olhemos para a Alemanha. Entre os “limianos” eleitos, em 2017, pelo seu círculo uninominal encontramos: Angela Merkel, Wolfgang Schäuble, Thomas de Maizière, Peter Altmaier, Sigmar Gabriel e Frauke Petry. Ditosa pátria que tais “limianos” tem! 

Outra crítica é a de muitos políticos de primeira linha serem afastados do parlamento porque, nos círculos uninominais, só um triunfa – e todos os adversários, candidatos relevantes de outros partidos, ficariam de fora. O facto é verdadeiro; mas a crítica, errada. 

Num sistema misto, os candidatos podem figurar em dupla candidatura, tanto num círculo uninominal como na lista plurinominal. Se não vencerem a eleição uninominal, guardam sempre a possibilidade de serem eleitos dentro da proporção alcançada no voto plurinominal do partido. Isto é muito frequente. Na maior circunscrição alemã (Renânia do Norte-Vestefália), que elege 128 deputados (64 círculos uninominais e 64 em lista plurinominal), os candidatos efectivos do SPD em 2017 tinham todos dupla candidatura, com excepção do líder partidário, Martin Schulz: tendo estado no Parlamento Europeu por mais de 20 anos, não era ajustado vinculá-lo a um território local. Os exemplos multiplicam-se, incluindo, na eleição de 2017, outros líderes e grandes figuras: Christian Lindner, Dietmar Bartsch, Sahra Wagenknecht, Katrin Göring-Eckardt, Cem Özdemir, Alexander Gauland, Alice Weidel, Heiko Maas, Katja Kipping e Bernd Riexinger. Não venceram o voto uninominal, mas foram eleitos pelas listas estaduais. 

É um sistema que consolida a coesão das candidaturas, tornando risível a crítica de haver candidatos de primeira classe (os uninominais) e candidatos de segunda (os plurinominais). Não há tal coisa.

Há, porém, o receio de o sistema potenciar o “voto útil”: eleitores de partidos médios ou pequenos votam num partido grande, seduzidos pela ideia de, já que o seu partido não ganha, ser “útil” ajudar um dos grandes a ganhar. Este marketing eleitoral é inevitável, seja qual for o sistema eleitoral. Mas a experiência mostra – e a inteligência explica – que o “voto útil” é menos intenso, e menos nocivo, no duplo voto (uninominal e plurinominal). 

Olhemos ao Quadro 1, que publico. Desde logo mostra como, na Alemanha, o sistema é mais proporcional que o nosso: a percentagem dos assentos parlamentares é mais próxima da votação – no sistema misto, recordo, a votação que conta é nas listas plurinominais. E mostra, na coluna do uninominal, uma deslocação de votos, como não podia deixar de ser, dos partidos mais pequenos para os maiores nos votos uninominais. Círculo a círculo, haverá movimentos pontuais em sentido inverso, dos maiores para os mais pequenos; mas, no conjunto nacional, o fenómeno agregado é o que o quadro representa.

Mas o Quadro 1 ajuda a compreender que, no sistema misto, o “voto útil” releva muito menos. No nosso sistema actual, o “voto útil” aconteceu e… está perdido. Num sistema de voto duplo, não: o “voto útil” acontece no uninominal, mas volta a casa no plurinominal. É difícil um eleitor “trair” duas vezes o seu partido na mesma eleição. E, como o voto que conta para a composição parlamentar é o voto nas listas plurinominais, a fuga no uninominal é irrelevante: vale apenas para o campeonato uninominal, isto é, para saber se, dentro da quota regional do partido de que se trata, entrará mais um da sua lista ou o candidato local. O “voto útil” é menos intenso: só acontece numa de duas votações. E é menos nocivo: só acontece naquela votação que não influencia a composição percentual do parlamento.

O problema maior do sistema misto é o dos deputados supranumerários (Überhangmandate), que vencem num círculo uninominal acima da quota de deputados a que, percentualmente, o seu partido ganhou direito. Este problema foi residual na Alemanha de 1949 a 1990. Mas, posteriormente, começou a pesar; e o Tribunal Constitucional determinou, a partir de 2013, que fossem abonados mandatos complementares (Ausgleichsmandate) que repusessem, estado a estado, a proporcionalidade do voto. O efeito em 2017 é, aos nossos olhos, um exagero: o Bundestag, com 598 membros, acabou por ficar com 709 deputados no total – houve, entre supranumerários e complementares, mais 111 mandatos. Esta contingência é de dimensão imprevisível: depende da percentagem do partido mais votado, da diferença para o segundo e terceiro partidos e da fragmentação do sistema partidário – tudo factores aleatórios. Mas uma coisa é certa: não pode passar–se em Portugal. Na Alemanha não há limite de deputados no Bundestag. Em Portugal, existe: 230. O sistema tem esta tranca e tem de funcionar trancado. 

A solução imediata seria proibir qualquer mandato supranumerário: nenhum partido poderia eleger, numa dada circunscrição regional, deputados vencedores uninominais acima da quota percentual a que a votação plurinominal deu direito. Ficaria o problema resolvido na raiz: os menos votados dos uninominais, em excesso, não conquistariam assento parlamentar. Pode parecer injusto, mas não seria: o sistema, cabe recordar, não é maioritário; o sistema é de representação proporcional personalizada. Por isso, atingido o tecto da representação proporcional, não há representação personalizada para mais ninguém.

Penso que esta solução é demasiado radical. A solução que preconizo – e estamos a trabalhar na iniciativa legislativa de cidadãos – usa o círculo nacional (com, por exemplo, 15 mandatos) como bolsa de compensação, gerindo estas incidências: admite espaço adicional para até sete ou oito mandatos supranumerários; e arbitra o remanescente para mandatos complementares, de correcção (seja de distorções que tenham resultado do apuramento territorial, seja do efeito adicional dos supranumerários ocorridos). A sensibilidade dominante na Assembleia da República pode afinar a sintonia: se quiser aumentar a compensação, pode reduzir a cinco o máximo nacional de supranumerários admitidos, sobrando, pelo menos, dez complementares para as compensações; se, ao invés, quiser dar mais peso à cidadania, pode folgar até dez o tecto de supranumerários, reservando, ao menos, cinco para acertos percentuais.

Todos os problemas têm solução. E cabe ter sempre presente que, onde ocorram, estamos a falar num número limitado de lugares, porventura residual. O nosso sistema actual está cheio de problemas, como a forte cláusula--barreira, matematicamente implícita na dimensão de vários círculos, e a acentuada desigualdade no número de votos necessários para eleger. Os problemas no sistema misto não só têm soluções como melhoram um sistema já de si muito bom. É um sistema em que a cidadania toma o poder. Como, afinal de contas, é o que queremos em democracia e constitui a única forma de ela funcionar com saúde, vigor e qualidade.

 

Advogado. Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade

O autor escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990