Regressar às raízes


Do verão como tempo de encontro com as origens


Quando era mais nova e íamos em caminhadas pelo campo nos escuteiros, lembro-me de pensar que aqueles sítios mais remotos seriam sempre iguais mesmo quando não estávamos lá. As poucas pessoas que víamos deviam repetir todos os dias as mesmas rotinas: os velhos sentados à beira de uma fonte, o pastor com as ovelhas. Pareciam, mais do que a cidade – onde no dia-a-dia quase nem pensamos no espaço ou no tempo –, sítios de continuidade.

Na “terra” – e tenho a sorte de, sendo da cidade, ter duas terras no campo –, a sensação era parecida, com a diferença de ali voltarmos todos os anos para comprovar que pouco mudava, da configuração do espaço ao sossego do ambiente.

As férias de verão, que a certa altura passaram a ser mais pequenas, eram (são) um desses momentos de regresso e reencontro. Na Arega, na casa velha, começávamos sempre por escovar as sanguessugas do tanque. Lixávamos as portas de madeira para as deixar como novas. Andávamos de bicicleta até nos cansarmos e furávamos pneus todos os dias. Víamos o céu estrelado à noite, escondíamos tesouros – um verão escondemos um mapa atrás do quadro da sala e nunca tornámos a ir buscar a caixa de bolachas cheia de memórias enterrada algures no meio do pinhal. Por vezes via-se o fogo ao largo, a pintar a serra de vermelho. Íamos ao rio, apanhavam-se lagostins, comíamos travessas de batatas fritas sem culpa, esturricávamos tachos a fazer pipocas.

O fim de semana da festa, este fim de semana de agosto em que estamos, era o ponto alto, com a procissão, os bailaricos e a quermesse – rifas e mais rifas para voltar a casa com o fascinante prémio de pratos, canecas e terrinas, quilos de loiça para encher os armários.

Regressámos esta semana à Arega. Nem é preciso falar (mas como é bom ouvir histórias) quando todo o lugar é memória, antepassados a descer a vereda, fragmentos de episódios contados que se foram juntando num grande puzzle de recordações de família. O vento sopra nos pinheiros e nos eucaliptos e há uma sensação de que estamos em casa, na origem. Este ano ainda não há amoras – apanhar amoras é outra forma de voltar todos os anos às raízes. Estão verdes ou então secaram com o sol dos últimos dias. O tempo anda estranho, mas a natureza dá a volta – lá encontrámos uns ramos de silvas carregados, ainda que demasiado altos para lá chegarmos.

São Paio, na serra da Estrela, é a outra terra. Este fim de semana, Gouveia, ali ao lado, está também em festa com o Senhor do Calvário, uma festa daquelas mais arranjadas que anima por uns dias o interior abandonado com os artistas da moda e bancas de produtos artesanais – na Arega, a festa ainda é da velha guarda, mas têm as duas os seus encantos. Sobretudo, habituamo-nos a marcar o ano pelas festas da terra.

O verão na serra tem dias também quentes – de tarde, só em casa, a ler a coleção de Reader’s Digest da madrinha, a aprender o ponto pé de flor. Mais novos, metiam-nos num alguidar de chapa no quintal para tomar banho. À noite, nas minhas memórias mais antigas, sentava-se toda a gente à porta de casa no chão de cimento, à beira da estrada, a conversar, ou então à beira do tanque comprido, onde agora não se vê ninguém. Nos últimos anos, o fim de semana do Senhor do Calvário era um momento de reencontro, com a janela como se fosse um quadro, as vacas no pasto. Imaginar como seria se se comprasse a velha fábrica de lanifícios e se limpasse o rio, quem sabe um dia…

Mesmo nos lugares onde o tempo parece parar, sabemos que a vida corre. Gosto de pensar que há uma ligação às nossas origens que nada leva, essas raízes que ficam para além de nós e envolvem quem nos segue.

 

Jornalista

Escreve à sexta-feira