“E diz o inteligente”…*


A tradição já não é o que era… felizmente. Conseguimos acabar com “n” tradições que só tornavam o ser humano mais repelente… e desumano. Acabemos com as touradas


“Tradição é tradição” é o lugar-comum… Todavia, é uma frase sem substância nenhuma e irrelevante do ponto de vista conceptual ou programático, porque poderíamos discutir o que é uma tradição, quanto tempo de repetição dessa prática a eleva a esse lugar, tão solene para uns, tão indiferente para outros, como é algo “ser tradição”.

A palavra tradição vem do latim traditio ou tradere, que significa passar aos outros, dar continuidade a uma doutrina, costumes ou valores de um determinado grupo social, contribuindo para a cultura. Nada diz, contudo, sobre a bondade ou a maldade da questão, ou seja, não inclui uma aprovação ética só por si.

Vem isto a propósito do invocar a tradição para manter certas situações na base do argumento de que “já se faz há muito tempo e há muitas gerações”.

Só que os tempos mudam, e é nisso que se baseia a riqueza civilizacional: evoluir, construir sociedade, ser mais justo, mais ético, mais respeitador dos direitos de todos. Quando eu andava no 1.o ciclo tinha um professor que batia nos alunos com uma régua dura e espessa a que apelidava, cinicamente, de “Mariana de Menezes”, incutindo medo nos alunos quando dizia: “Está na hora de teres uma conversinha com a Mariana.” A diretora da escola, os professores e os pais sabiam disto, como dos casos em que os alunos eram voltados para o canto da sala, com orelhas de burro. Quando descrevi ao meu pai uma cena em que um aluno com uma ligeira deficiência tinha levado com uma violenta conversa da dita “Mariana” e lhe pedi para mudar de escola, foi de imediato. Muitos pais discordaram da opção do meu pai: era tradição os professores mandarem na sala de aula e fazerem com que os alunos aprendessem… à pancada. Era essa a maneira “tradicional” de ensinar.

Durante a minha vida profissional confrontei-me com verdadeiras lutas contra “tradições” como a violência doméstica, o incesto, o direito de pernada – a exigência de prova de virgindade antes do casamento com a consumação do desfloramento da rapariga pelo próprio pai na presença do noivo, para mostrar como “o produto era original”… sim, em Portugal. Não vou dizer onde, mas posso dizer-vos que tive de lidar com um caso assim há 30 anos. Era a tradição. Neste último exemplo, recordo-me que a aldeia se quotizou para o pai da noiva poder viajar do local onde estava imigrado e “cumprir a sua função”, dado o bilhete de avião ser caro. Era tradição, como o era não respeitar as opções religiosas, ter um partido único, não haver liberdade ou as mulheres serem submissas, “boas esposas e mães de família”, e os homens poderem desancá-las, a elas e aos filhos quando o seu clube de futebol perdia, batizarem-se os filhos ou casar–se apenas pela igreja. Ou os maridos exigirem sexo quando queriam, e terem amantes, e até “lavarem a honra” dando tiros na mulher se a apanhavam na cama com alguém, coisa que não acontecia se fosse uma situação ao contrário.

Era tradição muita coisa de mau, de ínvio, de injusto. Felizmente, apesar de haver ainda tanta coisa errada, a sociedade portuguesa evoluiu para patamares civilizacionais mais elevados. Por muito que irrite alguns, que acham que “a tradição, infelizmente, já não é o que era”. Não se trata de tradições coisa nenhuma, mas quase sempre de maneiras de alguns perpetuarem o poder, de humilharem outros e de as castas mais elevadas manterem os mais humildes sob jugo.

Qual tradição, qual carapuça. As coisas devem fazer-se porque são corretas, honestas, divertidas, lúdicas, interessantes, entusiasmantes, promotoras do desen-volvimento e de gerações mais sábias, respeitadoras e cumpridoras dos princípios éticos. Também era tradição deitar-se os dejetos das pecuárias ou das fábricas nos rios. Era tradição fazer bolos de creme em casa e vendê-los cheios de moscas e de bactérias ao próximo candidato a uma gastroenterite. Tradição… uma ova!

É por isso que o meu professor do 1.o ciclo estaria hoje, provavelmente, preso por maus-tratos. E é por isso que pessoas, natureza, animais, ecossistema, etc., gozam de direitos. Sim, direitos que irritam muita gente porque se julgam os únicos detentores deles ou, por outro lado, que consideram que, por exemplo, crianças, mulheres, animais e natureza não os deveriam ter. Só quando há incêndios. Pois é… “Temos pena!”, como diria o outro.

Vem isto a propósito das touradas ou, dito de outra forma, “as corridas de toiros”. Sim, “toiros” e não “touros”, porque não é chique nem bem dizer touros, mesmo que o dicionário o permita. E “corridas” e não “touradas”, porque o povo é que diz desta última forma.

As ditas “corridas” são uma aberração aos olhos da atual exigência de direitos e de um mundo de direitos num Estado de direito. “Tradição!”, clamam os defensores, classificando as pessoas que estão contra como “os amiguinhos dos animais”.

Devo dizer que vi, ao vivo e na TV, centenas de touradas. Aprendi os diversos passes, o protocolo, a interpretação dos sons e da música, etc., etc.

Todavia, à luz de 2018, com a evolução do conhecimento científico, designadamente do sofrimento animal e dos efeitos psicológicos sobre as crianças, tenho a dizer que esta “tradição” deveria acabar, como tantas outras que subsistiram até se provar que eram contraproducentes. Ser tradição, só por si, não é razão, ou então chamamos outra vez a “Mariana de Menezes”. O argumento de que é espetáculo faz lembrar o grande médico humanista Guillotin, que inventou a guilhotina para abreviar o sofrimento dos condenados à morte e que foi vaiado e insultado quando a lâmina cortou a cabeça do primeiro guilhotinado, porque o povo queria espetáculo: ver o carrasco falhar e voltar a levantar o machado, e o condenado em estertores contínuos.

Afirmar-se que algumas raças de touros estariam extintas se não fossem as “corridas” é um argumento que não colho. Criar carne para canhão ou dizer que é uma honra para o animal ser morto numa praça por quem lhe recusa o estatuto de ser senciente é, no mínimo, contraditório. O que esse argumento revela é a vontade humana de se divertir com o sofrimento alheio: como já não se permitem gladiadores, então usemos os animais. Então vamos legalizar as lutas de cães, por exemplo, que são de raças criadas para a agressividade e o ódio aos outros canídeos.

Finalmente, a ONU e a investigação científica são taxativas ao declararem ser provadamente nocivo para as crianças ver espetáculos em que se faz sofrer animais para gozo e gáudio, em que se promove o combate (mesmo que entre um animal e um humano, muitas vezes pondo em perigo o humano e um outro animal, o cavalo) e em que muitos participam em escolas de toureiros ou afins desde tenra idade.

A tradição já não é o que era… felizmente. Conseguimos acabar com “n” tradições que só tornavam o ser humano mais repelente… e desumano. Acabemos com as touradas, até porque, como é o caso de Lisboa, a isenção de IMI da praça de touros e o dinheiro de transmissões televisivas da RTP e apoios públicos, que poderiam ser investidos na saúde ou na educação, mostram bem como o vil metal ainda é o primum movens de alguma da humanidade… e da manutenção destas “tradições”, pois!

O dia em que esta prática, tão rara no mundo e tão, tão escassa na Europa terminará está próximo. Não é um desejo, é a realidade dos factos. Felizmente! Olé!

 

*Do poema “Tourada”, de Ary dos Santos, cantado por Fernando Tordo

 

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