Na política não basta olhar, é preciso ver


Os governantes não têm muitas vezes a sensibilidade para estabelecer prioridades, em função das necessidades objetivas dos portugueses. Mas as oposições também falham, verificando-se agora que no governo-sombra do PSD não está prevista a cultura


1. Marcelo Rebelo de Sousa esteve mal no caso das crianças do Hospital de S. João, juntando-se aos protagonistas políticos que o antecederam desde que o problema existe. Foi vê-lo aparecer a dizer que conhecia o assunto. É verdade. Pelo que se sabe agora (graças a pais e jornalistas), a questão arrasta- -se há dez anos, sem que administração ou o Estado tenham encontrado soluções. Ora, Marcelo é Presidente há dois anos. E, se sabia, tinha a obrigação de ter atuado, nem que fosse simbolicamente, indo ao S. João mesmo sem aviso prévio, na companhia da imprensa, a fim de pressionar uma solução por parte do governo. Nos outros oito anos, na sua versão de comentador consagrado, não há nota de que Marcelo tenha denunciado a situação.

Confortar e mostrar afeto é fundamental num Presidente e Portugal precisa disso. Mas Marcelo faz o mesmo que qualquer cidadão português com bom coração que não tenha meios concretos de ação. Não é necessário que ocorram catástrofes para o chefe do Estado pressionar para soluções ou demissões, como sucedeu depois dos segundos fogos do ano passado. É, porém, essencial que o PR use a sua influência perante certos casos graves que não estejam à vista. Ora, em Portugal há certamente muitas outras situações iguais ou porventura até piores que as das crianças do S. João. Quem tem mais autoridade moral para lhes pôr termo é o Presidente da República, usando todos os meios ao seu alcance, começando no diálogo, passando à pressão de bastidores (Sampaio e Cavaco faziam-no muito), indo, se necessário, à truculenta denúncia mediática, como por vezes fazia Mário Soares.

Quanto à situação atual, a verdade é que toda a gente agora a conhece por via da denúncia pública e vergonhosa que se constituiu no passo que levou à proclamação governamental feita na segunda-feira de que a questão vai finalmente ser tratada. Ótimo! Mas nem por isso deixou de ser uma desumanidade e uma vergonha para um país que se pretende de vanguarda.

2. Cheio de si próprio por causa do desempenho da economia portuguesa e do impacto que isso permite nas contas públicas, Mário Centeno faz peito e desafia tudo e todos, começando por Marcelo e passando por Costa e pelos parceiros da geringonça. Parece uma versão democrática do homem providencial de Santa Comba, com a diferença de que este não quer ficar por cá. Anseia pôr-se ao fresco numa cadeira de sonho europeia, depois de já ter alcançado o trampolim da presidência do Eurogrupo.

É indiscutível que Centeno fez um grande trabalho. Como também o é a circunstância de ter imposto uma austeridade fortíssima e dissimulada, estabelecida à socapa, como neste espaço se denunciou, desde que chegou há dois anos. Era essa a solução óbvia: repor situações, estimular a economia e, simultaneamente, travar a despesa, cortando no funcionamento e no investimento.

À medida que ganhou peso no governo, Centeno tomou conta de tudo sem estabelecer prioridades, não vendo e não percebendo a realidade. Com uma falta de sensibilidade digna do sinistro Gaspar, cortou em tudo e, fundamentalmente, na saúde. É uma opção grave e quase criminosa porque ignora as circunstâncias de um povo que envelhece e sofre, tendo a saúde como primeira necessidade. Centeno tinha e tem muito por onde cortar. Mas não viu ou não quis ver. Avançou à bruta e levou quase tudo a eito. Ele, que terá sido um bom jogador de râguebi, não percebeu que a política é como aquele jogo em que dureza não se confunde com violência.

3. A Segurança Social leva cerca de sete meses para pagar as primeiras pensões a quem entra na reforma de novo. É mais um escândalo, uma forma de austeridade e uma demonstração de falta de sensibilidade do ministério de Vieira da Silva, que acumula problemas em todas as suas áreas. O mais curioso é o silêncio cúmplice do PCP e do Bloco perante este problema que se agrava cada vez mais.

4. Olhando com olhos de ver para o governo-sombra de Rui Rio, salta à vista que não há um responsável e um porta-voz para a área da cultura. Ninguém soube explicar o porquê da ausência de uma área que, por definição, envolve o património edificado, o teatro, o cinema, a música, as artes em geral e (no modelo do governo atual) a comunicação social enquanto veículo de transmissão cultural e elemento fundamental da vida moderna e da cidadania. É preciso notar que a cultura é um elemento-chave para a educação, mas também se constitui como um aliciante para trazer turistas para conhecerem o país mais antigo da Europa em termos de definição fronteiriça. Tão prodigioso como a ausência da pasta é o facto de ninguém na comunicação ou na vida política ter assinalado esta falha. É claro que Rio pode ter achado que não faz falta um ministro para este setor, tendo em conta o desempenho do atual titular.

 

Jornalista