A verdade: o seu palco, tempo, princípios e valores


Alguma discussão pública e demasiado mediatizada dos factos ou notícia deles e, bem assim, a dos elementos de prova que os sustentam podem condicionar o comportamento dos decisores e a credibilidade do próprio Estado democrático


As recentes peripécias das provas sobre o envolvimento russo no envenenamento de um espião duplo no Reino Unido não podem deixar de nos fazer refletir sobre o problema da verdade na sociedade atual.

Uma coisa, claro, é a questão da propaganda política e das agora modernamente chamadas fake news.

Sempre houve falsa propaganda nos confrontos políticos e militares internacionais – e mesmo nos nacionais – e a única novidade nesta matéria é a emergência dos atuais, fáceis e populares meios da sua difusão e o facto de, aparentemente, ela não poder, por isso, ser atribuída de imediato a uma fonte oficial ou oficiosa de um qualquer adversário.

Neste plano ainda, o problema passa também pela apropriação consciente, por parte das centrais de informação que alimentam os média tradicionais, das notícias veiculadas por tais fontes informais e pela ausência de tratamento crítico que estes fazem das notícias fornecidas por aquelas.

O problema da relevância da verdade e das suas consequências sociais e políticas não se resume, no entanto, apenas a uma dimensão política nacional ou internacional.

O problema reside na contaminação – se assim podemos chamar-lhe – que esta prática de manipulação da verdade ganhou, mesmo em ambientes institucionais que, precisamente, deveriam servir para a contrariar e, assim, devolver e garantir aos cidadãos alguma tranquilidade e instrumentos objetivos de reflexão.

O facto de toda a vida institucional ser hoje imediatamente acessível, através do sistema mediático, aos cidadãos – como recentemente aconteceu com a transmissão da sessão de deliberação do recurso de habeas corpus de Lula da Silva – pode favorecer a consideração ou desconsideração de factos e das suas provas não suficientemente amadurecidos.

A discussão pública e mediática de tais factos ou notícia deles e, bem assim, a dos elementos de prova que os sustentam podem condicionar – e condicionam mesmo, como se constata – o comportamento dos decisores.

Se, ao que dissemos, acrescentarmos ainda a volatilidade e inconstância de muitos elementos de prova consubstanciados hoje, cada vez mais, em documentos digitais, poderemos descortinar como a questão da verdade institucional – por exemplo, a da verdade prosseguida pelos tribunais – pode alcançar, no presente, uma dimensão fundamental para a coesão social.

Sempre entendi que a verdade jornalística e a policial se assemelham e se distinguem da verdade judicial.

As duas primeiras – embora por motivos diferentes – são para ser rapidamente publicitadas. Uma, porque é da sua intrínseca natureza, e a outra, porque importa assegurar aos cidadãos a capacidade de intervenção e pacificação do Estado.

Isso não significa, porém, que a sua afirmação seja necessariamente leviana ou puramente instrumental.

O comportamento rigoroso do laboratório militar inglês, que condicionou a verdade política adquirida sobre a origem do veneno que vitimou o espião duplo, é disso um bom exemplo.

A verdade judicial exige, todavia, uma outra ponderação, um outro tempo – e aqui refiro-me em especial à fase de ajuizamento e deliberação –, pois decorre de um conjunto de regras formais que não permitem que ela seja alcançada a qualquer preço: a sua constatação e declaração têm de respeitar outros princípios, de valor pelo menos equivalente ao da própria verdade.

A atual confusão de palcos, tempos, princípios e valores na formação da verdade pública institucional, proporcionada pela sobre-exposição mediática, mais do que contribuir para a transparência da vida política e social, tem, pois, esvanecido o valor da verdade e a credibilidade do próprio Estado democrático.

Escreve à terça-feira