A esquerda e a cultura


Sem cultura, continuaremos a ser o país tacanho do “senhor doutor”


Antes de mais, um ponto prévio: sempre fui a favor de um forte apoio estatal ao setor da cultura e acho absurdo que nem 1% do Orçamento do Estado seja canalizado para esta área tão importante no desenvolvimento do nosso país. Talvez seja dos poucos temas, senão o único, em que tenho uma opinião menos liberal economicamente do que a maioria das outras pessoas de direita.

É óbvio que este setor, num mundo ideal, deveria ser autossustentável. Mas é ainda mais óbvio que Portugal não conta, na esmagadora maioria das artes, com um público suficientemente interessado em consumir cultura de qualidade.

Mais do que uma questão ideológica, esta é uma questão do mais puro e sincero pragmatismo. Sem público, tem de haver Estado para a cultura sobreviver. Sem Estado agora, nunca haverá público suficiente no futuro para fazer com que o setor da cultura se torne um negócio rentável. Sem cultura, continuaremos a ser o país tacanho do “senhor doutor”.

Se o poder político quer resolver este assunto, que comece então por intervir nas escolas e por formar jovens mais cultos e mais interessados. Se a sociedade acha mesmo que a cultura é algo importante para um país, que comece então por impedir que saiam das nossas escolas e universidades jovens que sabem a matéria toda das disciplinas curriculares, mas que não têm a mínima noção do que são artes plásticas, artes performativas e literatura, música ou cinema de qualidade.

Feito este ponto prévio (que já me ocupou a maioria dos carateres), escrevo este texto para me regozijar pelas acaloradas reações que tenho visto dos “artistas” nacionais contra o seu governo da geringonça. Ou muito me engano ou estes rostos são os mesmos (sempre os mesmos) que durante anos fizeram a vida negra ao antigo governo de centro-direita, salivando publicamente contra um governo que à época cortou na cultura da mesma forma que cortou em quase todos os setores, fruto da intervenção externa que Portugal vivia.

Vejamos o caso de São José Lapa e as suas declarações desta semana às televisões: “O meu querido António Costa tem de estar mais atento ao que se passa na classe artística.” A mesma pessoa que em 2013, a propósito das iniciativas do movimento “Que Se Lixe a Troika”, dizia que os protestos dessa vez tinham de “chegar aos ouvidos obsessivos de quem está no poder”. Ora, agora pergunto-me eu: se Passos e Costa cortaram ambos na cultura, porque é o primeiro é um obsessivo e o segundo um querido?

Obviamente que os agentes culturais têm todo o direito a exprimir a sua indignação contra este governo. No entanto, nas próximas legislativas, talvez devessem também pensar em não continuar a colocar os nomes e as fotografias nas comissões de honra do Bloco de Esquerda, da CDU, do Livre e do Partido Socialista. Talvez depois disso a sua luta pareça mais pragmática e menos ideológica, até porque, como vimos acima, do que o setor da cultura mais precisa é mesmo de pragmatismo.

 

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