Palitos à beira da estrada


Impressões de uma viagem pelo interior


No filme de Martin McDonagh que valeu o óscar de melhor atriz a Frances McDormand, três cartazes à beira da estrada são o gatilho de mudança em Ebbing, Missouri, localidade onde aconteceram coisas más mas que vive meio anestesiada na rotina do dia-a-dia. Dei comigo a pensar nisso no final da semana passada, de viagem pelo interior, pela A23 e A25. Em como a paisagem que só vemos quando saímos das grandes cidades – no meu caso, Lisboa – são como os três cartazes, em alguns pontos quase contínuos, a lembrar-nos que, não há muito tempo, ali aconteceram coisas más – e também ainda não há responsáveis, como gritavam os outdoors de Ebbing.

Os meses vão passando e o que se vê continua a ser desolador, agora um misto daquilo que a natureza conseguiu regenerar e as carcaças das árvores queimadas, palitos desramados, alguns aparentemente já com a distância legalmente correta e pontuados por cepos deixados para trás, imagino que depois dos trabalhos de gestão de combustível. Mas essas árvores inteiras queimadas que permanecem e agora parecem palitos continuam ainda pretas do fogo do verão passado. Na serra cheia de neve, a cena torna-se ainda mais perturbadora, como quando chegou a chuva depois do fogo e só pensávamos por que motivo não veio mais cedo.

Ao passar por essas montanhas e vales desfigurados, custa imaginar que o fogo regresse da mesma forma este ano, algo que qualquer perito dirá que é uma ilusão, por muito que se limpe – não é habitual haver dois anos próximos com grande área ardida, mas aconteceu em 2003 e 2005. Com certeza que o que ardeu tem menos probabilidade de arder, mas há muito que não ardeu. Nos locais por onde andei, da Barragem do Fratel às Portas de Ródão, seguindo para a serra da Estrela, ardeu muito, mas há zonas do país que continuam a ser de risco. E basta o verão ser quente, a seca regressar e continuar a haver gente mal intencionada ou descuidada, por vezes acidentes, para haver fogo.

Se os incêndios se vão tornando arma de combate político – esta semana ouvimos de novo, no parlamento, o ministro da Administração Interna dizer que “só o CDS e o PSD é que ainda falam em época de incêndios”, porque agora os incêndios são uma prioridade o ano todo (pena que em outubro ainda não fossem) –, custa andar pelo interior e ver que as marcas vão ainda demorar muito a sarar e que a paisagem, se ficou em teoria mais segura, fica seguramente mais pobre.

Há uns meses, numa viagem de carro de muitas centenas de quilómetros pelo interior da Alemanha, lembro-me de ter uma sensação de estar noutro mundo, de ver árvores de diferentes espécies misturadas, na altura com um tom alaranjado. Autênticos quadros. Certo que o clima será diferente do nosso, mas este fim de semana, em conversa com um investigador alemão que trabalha em Portugal, perguntei-lhe se foi sempre assim. Disse que foi um trabalho de gestão da paisagem que teve lugar nas últimas décadas, mas foi reforçado já este século. Outra medida que considera particularmente eficaz teve lugar também nos últimos anos e permitiu mitigar um dos problemas de gestão das áreas agrícolas, com o cadastro florestal a possibilitar a pequenos proprietários trocarem parcelas para assim ficarem com áreas maiores, mais rentáveis e, consequentemente, mais valiosas de gerir. Quanto à limpeza em si, há multas para quem não cumpre, mas isso veio depois de tudo o resto.

Uma brochura recente do Ministério de Alimentação e Agricultura alemão, disponível online, diz que as florestas representam 32% do território do país – em Portugal, a percentagem é idêntica. A maioria das florestas alemãs são influenciadas pela ação humana, mas desde 2002 aumentou a “diversidade estrutural através de uma gestão ativa”, lê-se. O setor florestal e madeireiro dá rendimento a cerca de dois milhões de proprietários e emprega 1,1 milhões de pessoas em 125 mil empresas, concentradas nas áreas rurais. A floresta divide-se assim: 42% do território é de gestão pública e 49% privada, cerca de metade de donos com menos de 20 hectares. Em Portugal, mais de 85% da floresta é privada. Segundo a mesma brochura do governo alemão, no ano passado, aproximadamente 430 mil proprietários estava organizados em 3600 associações para lidar melhor com as desvantagens de terem pequenas parcelas de terreno. As florestas são vistas como local de lazer e mitigação das alterações climáticas, o que por cá dificilmente se imagina, pelo menos no curto prazo, nos locais por onde o fogo passou. Basta uma viagem pelo interior a dois meses e pouco do verão para o ver.

 

Jornalista

Escreve à sexta-feira