Há uma descrição terrível de uma passagem de “All the Pretty Horses”, de Cormac McCarthy, a que cheguei em segunda mão e que, confrontada mais tarde com o original, me pareceu aí bem menos flagrante. Gostara bastante mais do bolo que fora mastigando e adensando a memória do leitor que a lera e ma contou, e como lhe aguçara os sentidos. A imagem era a de um homem a andar por uma região desértica e que, ao fim de dias, avista algo que lhe renova a esperança: uma figura parecia mexer-se à distância. Recobrando um pouco as forças, estuga o passo para descobrir que a mancha que lhe acenava com sinais de vida era, afinal, um cato no qual uma tempestade havia empalado uma série de pequenos pássaros. Agarrados pelos espinhos, alguns mortos, outros ainda vivos, contorciam-se gritando numa pintura de terror contra a qual aquele homem via estilhaçar-se a última réstia de esperança que o acompanhava.
A imagem ficou, e nem interessa aqui cotejar o seu desvio face à de McCarthy, mas, por agora, notar o tanto que ganha a literatura quando é despojada do seu disfarce, quando dá a ver o seu rosto verdadeiro. Cioran diz-nos que o maior perigo que corre a escrita literária é deixar os adornos, que seria o mesmo que ver a filosofia desapossar-se da sua algaraviada. “Limitar-se-ão as criações do espírito à transfiguração de bagatelas? E apenas existirá alguma essência fora do articulado, no rito ou na catalepsia?” (“Silogismos da Amargura”, edição Letra Livre, 2009.)
Rui Caeiro é um desses autores cujos textos, quase sempre breves, têm algo de bolo alimentar. Um naco fibroso de carne que custa a engolir, a pérola odiosa que nos ficava na garganta nos tempos de infância em que tantas refeições acabavam por nos ensinar muito sobre negociações de paz. A escrita deste autor é dessas que acabamos por apreciar tanto mais quanto já fugimos de idílios, quando levamos areia de alguns desertos nos sapatos e não temos paciência para as grandes esperanças ou para os embustes do estilo. Provoca até uma certa urticária dar com um texto muito inchado com os seus tiques nervosos, as peles e joias de que se enchem para passar a ideia de que são finos, têm classe. No Verbo, já se sabe, os aristocratas são os não agenciados, os batedores que já não voltaram para denunciar os movimentos do inimigo, os que foram arrastados por alguma verdade, às vezes para muito longe de si mesmos.
Voltando ao Cioran dos Silogismos, diz–nos ele que “quando nos recusamos ao lirismo, preencher uma página torna-se uma prova: de que serve escrever para dizer exatamente o que tínhamos a dizer?” Sendo o autor de muitas plaquettes – e um dos mais dignos nisso -, a característica distintiva da escrita de Caeiro é prescindir rapidamente desse estado de graça e inimputabilidade que usa a generalidade dos poetas. Uma espécie de farda como a dos malucos no hospício, mas que serve antes para assinalar o grau superior de tolerância que se deve observar ao lidar com este ou aquele proferidor de insanidades delicadas, doces impropérios, flores de ouvido ou, muito raramente, o género de observações tão ferozes que fazem das mais gerais ideias do mundo pequenas jaulas.
Muita edição de autor depois, e após muitas cumplicidades com a pequenada do meio da edição que vai traficando golpes de ar para dentro do reino bafiento, 30 anos depois de ter começado a publicar, Rui Caeiro não tem prémios, não se tornou um dos notáveis que figuram em todas as listas, não reúne grandes atenções ou auditórios para o ouvir dizer imbecilidades, até porque da convivência com os tantos gatos que deram aulas na sua sala ganhou aquele tipo de autovigilância que não deixa margem a um rato para escavar os túneis da vaidade (coisa que não deixará de ter, como todos nós). E três décadas depois de, aos 45 anos, ter publicado a sua primeira edição de autor, surge-nos uma das raras edições bojudas que deu à estampa. Um livro duplo, costas com costas: “Diálogos Marados” / “Um Maluco Vem Pousar-me na Mão”. A edição da Livraria Snob é um desses mimos de bolso, um pequeno cantil para goles de despertar caminhos.
“Diálogos Marados” é um repositório de coisas ouvidas, baralhos partidos, episódios, anedotas, aquele gesto de confidência que já conhecíamos de outros livrinhos, naquele tom de um “eu” descrito por Vitor Silva Tavares “que recorda e medita, a fala que sussurra e evita o grito, a delicadeza de focagem e tratamento de pessoas e anedotas, a subtileza do humor que de sobremaneira incide sobre o próprio para mais se autorizar”. Um livro de testemunhos, um balanço apurado entre os anos, entre diversos humores e estados de espírito, mil conversas tidas e recontadas, até ao grão que no seu diâmetro ínfimo aplica o seu peso de forma tão aplicada que, afundando-se na pele, vira um sinal. E surgem naturalmente cúmplices e amigos, alguns dos personagens da baixa mitologia marginal, que normalmente só aparecem na literatura na chave das libações e homenagens hoje tão vulgares quanto redondas e exageradas, nos cadernos de ajustes de contas, no rosário das mesquinhices em feicebuques e coisas que tais… (E disto, em alguma medida, a culpa no cartório está muito bem distribuída.) Agustina, Sophia, Natália, César Monteiro, Vitor Silva Tavares, António José Forte, Manuel de Freitas, Eduardo White, Chaguito e até Le Corbusier surgem nestas páginas na exigente companhia de malucos e putas, de pequenos danados mais ou menos anónimos, vivos e mortos trocando lembranças, mas vamos desconfiando que o protagonista não são eles, mas os acasos maravilhosos, a própria ementa da vida. Neste livro, o elogio é tirado do caminho, e passando a mão pelo pano também não se sentem engulhos ou a cabeça de alfinetes. É, de resto, um bom antídoto para o habitual registo sobre o meio literário, ficando margem para a sanação das aborrecidas quezílias que vigoram num tão minúsculo quanto espartilhado reduto.
Caeiro não deixa de ser uma mordaz testemunha, e ao longo dos anos foi fazendo pela paz – essa que não resolve grandes conflitos mas que, pelo menos, sabe rir-se deles, e alhear-se quando são insignificantes – o que Sun Tzu fez pela guerra. Não tanto para seguir uma linha de atuação, mas para trocar antagonismos por equações, estratégias, trazer perspetiva de fundo, a começar pela morte. Este livro tem essa presença, a de ter “respirado a Morte”, e o salutar desinteresse por tudo aquilo que faz da literatura uma zona de sofisticadas intrigas para não pensar nisso, não se ser avassalado por essa dolorosa certeza.
Num admirável texto a propósito de uma antologia que surgiu há três anos, o excelente crítico e poeta José Ángel Cilleruelo encontrou a mais justa definição desta singular voz na poesia portuguesa contemporânea ao notar que “Rui Caeiro age como um fabulista clássico com um toque minimalista”. E este livro é uma recolha dessas pérolas que a memória foi trabalhando, vestindo de cuidados e sentidos, com a força surpreendente da imagem do cato em que a tempestade pregou os pássaros, apanhados a meio do voo, ou pendurados por umas quantas penas, nesse balanço de vida e morte. E o que Caeiro consegue é não apenas recusar o lirismo, mas a própria literatura, para escrever o silêncio que é, no fim de contas, a verdadeira estrutura que liga o nosso espanto, essa força que ainda nos dá corda. No fundo, trata-se de operar nos sentidos uma inversão, escapando às grandes toadas para ficar atento – como disse Caeiro nuns versos publicados há 20 anos – a esses “ínfimos ruídos de importância extrema/ Que só os surdos/ ouvem”… Ruídos como o do próprio “tempo a passar, o interior da terra/ a tremer, [e] o bichinho do ouvido/ a escutar”.
É um best-of do que a vida deixou aos pés de Caeiro, um livro tocante e uma lição sobre o que o convívio da poesia lhe ensinou, não sobre a enxertia de variações, mas sobre calibre e precisão, mesmo em condições adversas. Nas costas deste livro temos um dos ciclos a que o poeta nos foi habituando, neste caso sobre a “Voz da razão dos loucos. Da razão perdida ou desperdiçada dos loucos./ Voz da sem-razão. Da razão silenciada, vilipendiada, razão inaudível, intrigante razão dos loucos./ Voz desrazoável, que eternamente busca o seu espaço, a sua lógica./ Lógica que todavia residirá algures, num nada evidente algures, que não se sabe onde seja (um farrapo de tempo que se desfez?). Desde sempre aguardando, cansada voz, a sua vez: um Colombo que a descubra.”
Este é um livro que nos reconcilia com a noção de que a arte, a poesia, qualquer que seja o desvario com que o coração se sobressalta e se embebeda ouvindo o seu próprio bater, podem ser também uma forma de fazer as pazes com a vida. Caeiro sacode o vazio e o terror trocando com a vida um daqueles abraços que, quando começam a ficar demasiado apertados e sentimentais, acabam com um apalpão.